quarta-feira, 7 de maio de 2008

FOGO NO LIVRO


Numa das passagens decisivas do romance “O Nome da Rosa”, de Umberto Eco, o guardião da biblioteca, Jorge de Burgos, decide impor o silêncio por meio do fogo. A revolta é contra o exemplar “A Comédia”, de Aristóteles. Diz Jorge, antes de queimar a biblioteca secreta: “A comédia pode fazer com que as pessoas percam o temor a Deus e, portanto, faz desmoronar todo esse mundo.” A decisão é tomada com a coragem de quem queima uma biblioteca para calar um livro e salvar a humanidade. É em nome dessa salvação que grandes atrocidades ocorreram ao longo dos tempos. No livro, o que faz “desmoronar” não é necessariamente a “rosa” do preceptor de Alexandre, o Grande, mas o veneno (phármakon) inserido em suas pétalas - rosa púrpura de Alexandria, que, por sinal, soube muito bem do fogo que destruiu seu império intelectual.

Eco imagina que o livro perdido do filósofo havia sido escondido em um mosteiro, local que o semiólogo italiano usa como cenário para sua trama, temperada com o traço policial legado por Conan Doyle. Mas a questão não se resume apenas a uma ilustração dos fatos misteriosos que acontecem na trama. É em torno do livro que o fio da história se desenrola. Poderíamos dizer que em “O Nome da Rosa”, o livro sobrepõe-se em relação aos próprios personagens. Algo semelhante acontece no filme Fahrenheit 451, de François Truffaut (1966). Baseado no romance homônimo de Ray Bradbury, Fahrenheit 451 pode ser considerado como uma interessante metáfora do guardião da biblioteca, o cego que queima os livros em nome de uma verdade com V maiúsculo. Aliás, com o personagem Jorge, o cego, Eco rende homenagem ao escritor argentino Jorge Luis Borges, um dos seus escritores prediletos.

Se a história de Eco se passa na Idade Média, a de Bradbury e Truffaut acontece num futuro distante. Nessa sociedade, todos os livros são proibidos. Cabe a um poder soberano procurar os leitores-infratores e puni-los com a severidade de um regime extremamente autoritário. Sobra aos livros, de Sade a Sartre, um fogo que queima a 451 graus Fahrenheit. Mas nem calor tamanho consegue apagar o fogo, aliás símbolo também do conhecimento, alimentado por uma tradição que subsiste apesar da tropa. Ironia: quem acende o fogo é o bombeiro. Sintomática inversão de valores. Das fogueiras da Santa Inquisição à decisão da justiça brasileira, que proibiu a comercialização da biografia não autorizada do Rei Roberto, o fogo parece simbolizar não apenas a tentativa de apagar os rastros do próprio homem, mas também, ironicamente, uma transcendência que lhe confere um poder quase sobrenatural, já que o que se queima aqui é um instrumento que abalou estruturas de um poder determinado, por isso deve ser queimado - por isso não consegue ser queimado. O livro, considerado um veneno, tão maligno quando o de Jorge, o cego, faz lembrar da restrição severa imposta à palavra escrita, em Fedro, de Platão.
Abolir a literatura, em Fahrenheit, levaria a duas consequências imediatas: a primeira é positiva e se personifica no próprio filme. Por meio da abolição, exercitaríamos a mnemotécnica. É o que os personagens fazem nas cenas finais. A segunda consequência seria a perda de toda uma tradição que poderia ser registrada em livro. Entre Toth e Tamuz, o bombeiro e Truffaut.

No entanto, os dispositivos de poder, no filme, são complexos. A cobra morde o próprio rabo. Um dos bombeiros é contaminado pelo gosto da literatura. É obrigado a fugir, refugiando-se num lugar onde os livros não existem na sua materialidade física, todavia são memorizados, a fim de que a humanidade não esqueça que eles podem existir na mente de quem os guarda. Lá, as pessoas já não possuem seus nomes. Restaram os nomes dos livros. Cada pessoa deve memorizar a obra que recebeu como nome. Se você estivesse lá, qual seria seu nome?

Caio Ricardo Bona Moreira

3 comentários:

Sophie disse...

A Metamorfose - Franz Kafka

disse...

minha namorada conseguiu resgatar o farenheit nas americanas (na minha dificuldade de ter acesso a esses bons filmes, esse foi moleza).

desde que assistimos tenho pensado em qual livro eu seria. To na dúvida entre O Silmarillion ou O Guia do Mochileiro das Galáxias, hehehe. Ou então aquela biografia dos Beatles gigantona do Bob Spitz. Nada muito sério, to longe disso, hehehehe.

Até pensei em escrever sobre o filme, mas eu não teria capacidade para escrever como você fez nesse post. Gostei da associação que você fez entre o filme e O Nome da Rosa.

abraço Caio!

Anônimo disse...

o som e a fúria, do faulckner