sábado, 31 de maio de 2008

O FILME QUE VIROU POEMA


Poderia falar mil coisas sobre “O homem que virou suco” (1981). Dizer que é um filme político – como se isso fosse uma particularidade capaz de lhe conferir uma identidade –; um filme sobre a saga de um nordestino na São Paulo do final dos anos 70; um filme sobre a grande metrópole capaz de transformar a vida de um homem; um filme sobre o fracasso de um pobre paraibano. Mas não. Prefiro dizer que é um filme poético. Não esqueçamos que o paraibano protagonizado por José Dumont é um poeta. O fato de fazer poesia transforma Deraldo em um sujeito estranho numa cidade que coloca o “capital” em primeiro lugar. Mas é graças à poesia que o personagem consegue entrar e sair da mesma lógica que o faz um “marginal”.

Por que o poeta não consegue sobreviver na cidade grande? É que cada vez mais sua maneira de ver o mundo não condiz com a anti-lírica dos arranha-céus. Não que não haja espaço para a poesia na cidade (Não é à toa que o concretismo traduziu a urbanidade paulista com a força imagética do concreto armado e do lirismo des-armado). Espaço há, mas estão interditados.

Por que o poeta consegue sobreviver na cidade? É que o poeta paraibano faz da cidade um lugar fora do comum. Não que consiga criar uma saída. Ele consegue encontrar outras entradas. Circula por todos os lugares: do meretrício à luz da lua ao pátio da praça e da construção civil. Neles, vai deixando os “rastros”, as pétalas de fogo, as margens de uma linguagem além linguagem. A palavra do paraibano não mora em lugar nenhum, por isso em todos os lugares. Deraldo não cabe em um mundo sem literatura. O poeta sobrevive porque inverte o jogo. Sobrevive porque veste o "gibão" de um cangaceiro que encara de frente um bando de transeuntes.
Poderíamos também inverter o jogo e abolir o lamento. O nordestino não aceita o jogo selvagem das relações de trabalho da cidade da garoa (lembrar da cena em que chuta pau da barraca na reunião dos candidatos a um emprego no metrô, ou daquela em que se insubordina contra a patroa jogando um vaso precioso na piscina, o mesmo vaso que fora presenteado por um importante coronel do Nordeste).

Deraldo José da Silva (José Dumont), logo no início do filme, encontra uma vizinha, que o questiona: “Você pensa que a vida é só cantar, seu Deraldo? A vida é dura. É garrar no batente”. Ele responde: “Ôh, dona Mariazinha, na sua concepção isso aqui (poesia) não é trabalho, não?” “Isso é diversão, homem! Por que não faz igual o Zé, meu marido, que garra no batente desde as seis horas da manhã e só volta à noite.” O poeta, sem pensar, e vendo a condição miserável da vizinha, dá a Mariazinha um tapa de luva: “Descobri agora porque é que vocês vivem tão bem!”. A cena basta. O poeta esperto percebera que o valor pregado pela comadre não trazia felicidade nem conquistas; o discurso implícito na fala da vizinha, a de que o trabalho braçal dignifica o homem, só poderia soar como uma estranha falácia aos ouvidos do poeta que descobriu cedo que numa cidade como aquela o "trabalho braçal" só possibilitaria ao homem não morrer de fome.

Ao longo do filme, Deraldo é confundido com Severino, o operário que assassinara um rico industrial. As fotos de Severino estampadas no jornal levam Deraldo a sofrer uma série de preconceitos que se somam ao fato de ser poeta e nordestino. Poderia ser pior?
Deraldo, colocando em prática o que Nietzsche chamaria de Amor Fati, transforma a desgraça em graça, talvez por amor ao destino. Procura Severino e escreve o poema contando toda a história: “O homem que virou suco”. O filme virou poema.

"O homem que virou suco", de 1980, foi dirigido por João Batista de Andrade. Ganhou, entre outros, o prêmio de melhor filme, no Festival Internacional de Moscou, em 1981.

Caio Ricardo Bona Moreira

Um comentário:

Sophie disse...

quero ver esse filmeee
deve ser muito bom mesmo...

bjo amore

saudadess

valeu pelo cometário, sabe q seu comentário é de grande valia :)