domingo, 31 de agosto de 2008

DENTADURA

Petit poème en prose


PARTE 1
Quando menino descobri no meio de escombros papéis velhos escondidos numa gaveta há muito fechada uma dentadura de minha vó não me recordo se era a parte superior ou inferior só sei que o objeto me impressionou tal como se eu tivesse desenterrado a minha própria avó dos fundos do quintal talvez hoje a impressão não fosse a mesma seria apenas uma dentadura mas nos meus idos de menino em que a vida não parecia mais que um grande pote de sorvete ou um baú cheio de surpresas sempre agradáveis aquele objeto era como um suplemento vivo que meu avô guardava talvez por esquecimento talvez por consideração ou mesmo até fosse um costume mórbido de mantê-la por perto mas acredito que não só sei que nunca tive coragem de perguntar creio que o encontro com a dentadura guardada de minha avó foi meu primeiro contato com a morte


PARTE 2
Outra vez encontrei os seus óculos a impressão não foi a mesma poderia também encontrar outras coisas e não seria a mesma coisa os dentes eram para mim uma espécie de fantasmagoria capaz de suscitar todos os assombros possíveis o objeto parecia me olhar como que pedindo para ser tocado atitude que não tive coragem de executar alguns dias depois voltei ao seu encontro e para minha surpresa não mais o encontrei já sabia naquele tempo que objetos concretos não apareciam e desapareciam por acaso o que ainda não sabia era que objetos abstratos as lembranças também não desapareceriam talvez a segunda mulher de meu avô tenha também se deparado com a dentadura e julgando desnecessário e até ofensivo conservá-la tenha tido a coragem de consumir com ela talvez a tenha enterrado ou até jogado no lixo o que seria lamentável pois uma dentadura não é só um bocado de dentes da boca talvez meu próprio avô tenha repensado o fato e dado um destino diferente ao objeto em respeito a minha vó e a segunda mulher talvez a dentadura nunca tivesse estado lá mas acredito que não – sei que não imaginei – eu poderia imaginar mil coisas como os motivos que levaram o objeto até ali e os motivos que o fizeram desaparecer

PARTE 3
Alguns anos depois encontrei no meio de escombros uma propaganda antiga de um dentifrício e imediatamente lembrei dos dentes amarelados que compunham a dentadura – talvez a lembrança do objeto tenha sido uma desculpa para lembrar de minha avó – minhas lembranças de seu rosto de sua voz de seu sorriso eram vagas senão nulas – imagino que em algum dia de sua adolescência quando ainda nem pensava em usar dentadura tenha se deparado com um desses anúncios – aquele texto me dizia mais sobre ela do que qualquer poema nostálgico em que a saudade mais parece a flexa de Zenão – descobri com o tempo que a dentadura mais do que uma fantasmagoria da morte era para mim o contato mais próximo com alguém que não estava mais aqui

c. moreira

Nenhum comentário: