Hoje, depois de ver um pequeno cão ser atropelado e morrer na minha frente, na rua Matos Costa, senti vontade de reler Até o dia em que o cão morreu, do Daniel Galera, livro que me impressionou muito mais do que o filme Marley e eu. Antes, porém, pensei em ligar para alguém... bombeiros, Coala, veterinário, alguém que assoprasse um pó mágico e fizesse aquele cachorro levantar, abanar o rabo, latir e continuar... Aproximei-me da criatura - sim, cachorros são criaturas - e não tive coragem de ampará-lo, tocá-lo, tirá-lo do meio da rua. O corpo morto, seja o de um homem, o de um pássaro ou o de um cachorro sempre me pareceu sagrado e abjeto. No fundo mesmo, é a minha morte que tenho medo de tocar no corpo de um outro. O problema sou eu e não o morto. Primeiro, foi a batida. Imaginei o choque de dois automóveis. Procurei a colisão e nada encontrei. Depois o forte latido de dor. Entendi. Tratava-se da morte. O bicho ainda encontrou forças instintivas - ou foram reflexos? - para levantar as patas traseiras. E, então, ele me olhou. Ou apenas imaginei que ele me via enquanto eu o olhava? Ele me olhou por pouco tempo. Seu corpo era magro mas bonito. Seu pêlo, branco acinzentado. Aos poucos a respiração foi cessando. E um senhor corajoso se aproximou. Olhou para mim: "Está morto". Puxou o corpo inerte pelas patas trazeiras até o canto da calçada. Instisti: "Será que não está vivo? Parece que respira. Talvez possamos ligar para alguém". O homem não esboçou reação alguma, o que não representou desumanidade alguma. Pelo contrário (foi ele quem tocou no animal e não eu). O homem afirmou o destino, a morte é apenas a morte, uma tautologia que não nos fornece solução. Talvez ele agisse da mesma forma se o acidente fosse com uma pessoa, o que não caracterizaria uma desumanidade, mas apenas conferiria mais humanidade à reação frente ao bicho. Tudo resolvido. Morri junto com aquele cachorro. Quem escreve aqui é um morto. Um cadáver adiado que procria. Um leitor de Fernando Pessoa e um homem que não tem a mínima coragem de encarar e tocar um morto, e por metonímia, a morte. Para isso veio o cão, para a inutilidade de nascer, como o tucano morto que Drummond registrou em seu último poema. O motorista que o atropelou não parou o carro. É sempre isso que nos apavora. As rodas continuarem girando depois de nossa viagem. O mundo continuará depois, frio e cego como o morto que insiste em ignorar. Os carros continuarão trafegando, homens e mulheres funcionando regularmente, as flores do bem e do mal se abrindo, qual pernas de mulher lasciva. Isso é pior que morrer. Quem disse isso? Pois bem... no livro de Daniel Galera, o protagonista, em uma determinada passagem, descobre que seu cão está morrendo: "Fiquei olhando nos olhos do cachorro, tão de perto que conseguia ver minha própria imagem refletida na superfície do olho, depois de dois ou três minutos, a imagem foi sumindo, enquanto os globos oculares ressecavam". A relação entre o personagem e o cão, no livro de Galera, é linda, pois vai da companhia gratuita até a estimação recíproca. Para finalizar, quero dizer que é a nossa imagem que vemos nos olhos de um morto: a faccies hipocratica da morte - como viu o jovem personagem. Esse foi o dia em que o cão morreu: 02/03/2011. Perdoem o texto cafona e pouco elaborado. Não estou querendo fazer literatura aqui. Quem leu as entrelinhas, entendeu que falo também de mim e de você.
Elegia a um tucano morto
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Carlos Drummond de Andrade
Ao Pedro
.
O sacrifício da asa corta o voo
no verdor da floresta. Citadino
serás e mutilado,
caricatura de tucano
para a curiosidade de crianças
e a indiferença de adultos.
Sofrerás a agressão de aves vulgares
e morto quedarás
no chão de formigas e de trapos.
Eu te celebro em vão
como à festa colorida mas truncada
projeto da natureza interrompido
ao azar de peripécias e viagens
do Amazonas ao asfalto
da feira de animais.
Eu te registro, simplesmente,
no caderno de frustrações deste mundo
pois para isto vieste:
para a inutilidade de nascer.
Um comentário:
Hoje vi um cão se contorcer no meio da rua, o grito era desesperador, o mesmo a pouco havia sido atropelado. (por alguém que também não parou para socorrer). Fiquei sem reação, não sabia se parava o carro e descia para ajudá-lo. Pensei que se o fizesse o cão iria me morder... (já aconteceu isso uma vez quando fui apartar uma briga de cães). No fim, segui para meu destino, com o coração apertado. A imagem da criatura ainda sofrendo ainda está fresca na minha mente.
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