domingo, 6 de março de 2011

a masturbação da crítica


Várias das críticas dirigidas ao Cisne Negro, de Darren Aronofsky, insistiram em “malhar” algumas cenas consideradas bizarras e grotescas, como a do nascimento de penas pretas nas costas da bailarina Nina, protagonizada pela linda Natalie Portman, e a da masturbação. Paulo Roberto Pires, na Bravo! (Fevereiro), argumentou que a obra mais recente de Aronofsky vai da tensão psicológica ao horror gótico e obtém um “resultado francamente cafona”. João Pereira Coutinho, no Caderno Ilustrada, da Folha de São Paulo, escreveu que ao confundir a natureza da arte com a arte da masturbação, “tudo que resta de Cisne Negro é um ecrã viscoso e sujo. Como um lençol de adolescente”. Ambos destacaram a bela interpretação de Portman, mas lamentaram o resultado final.

Antes mesmo de assistir ao filme, achei estranha a opção dos dois críticos, colaboradores de dois veículos informativos de grande circulação nacional, em reiterar lugares comuns, não apenas do filme, mas da própria crítica: Isso é ruim, isso é bom. E o pior, a transformarem a crítica em uma sátira de mau gosto. Não estou defendendo aqui uma crítica bem comportada, aquela que acende uma vela para o objeto que se propõe analisar. Pelo contrário, creio que uma crítica deve fazer faísca, produzir uma energia capaz de transformar a própria arte que julga necessário criticar. Não estaríamos aqui distante do Princípio da Incerteza, tal como formulou Heisenberg, cientista alemão que descobriu que o observador influência com o seu olhar o comportamento das partículas observadas. Ao modificar a obra, o crítico pode modificar um filme, bem como a nossa percepção da própria realidade. Situar-se em um lugar “de fora” da arte, como se não fizesse parte dela,  é um erro inocente de uma crítica que se julga apta para condenar ou louvar. Não seria fortuito aqui observarmos que são também os críticos masturbadores de plantão.

João Pereira Coutinho parece que só assistiu a cena da masturbação. Foi infeliz. Paulo Roberto Pires chegou a afirmar que a tensão produzida pelo filme ficaria melhor em A Bruxa de Blair. Há exageros no filme, concordo. No entanto, não devemos esquecer que o bizarro e o grotesco apontados pelos críticos fazem parte da materialização da “paranóia” de Nina. Qualquer indício de transbordamento do copo cheio é sintoma de um mergulho profundo no horror vivido pela bailarina perfeccionista. Exigir coerência interna da obra é uma coisa, cobrar sanidade de um filme que coloca em "xeque" a sua própria razão é outra. Prantear o fato dela extrapolar no bizarro pode ser infrutífero, já que estamos na ordem de uma personagem que não nos garante nada mais do que restos de uma luta interior.

Penso que não devemos olhar o filme como quem vê uma alucinada, mas como quem, alucinado, assiste a um balé de horrores. Em outras palavras, devemos assisti-lo com olhos de Nina. Se olharmos com olhos de “fora” o filme parecerá uma versão barata de um suspense-terror B. E tudo será arranhões à Bebê de Rosemary e corredores escuros de Stephen King. Se olharmos de “dentro” (e haja psicanálise para isso!), com os olhos dos dedos de Nina, tocando fundo os pêlos pubianos de um Cisne Branco/Negro, outras coisas poderemos ver. Trata-se de um filme-música. Uma obra que insiste em marcar uma zona de indiscernibilidade entre vida e arte. E mais do que isso, entre a vida que se deve viver e a arte que insiste em nos apavorar. Aí, então, poderemos perceber a transformação gradual e trágica na qual Nina se vê envolvida. Não estamos diante de um capricho, dos exageros de um diretor de forte expressão. Uma artista como ela (a Bailarina) poderia muito bem romper a fina linha que separa verdade e ficção (linha que alguns insistem em desconsiderar). Se por um lado as linhas separam, por outro, unem. Perceber a sua rápida metamorfose, acompanhada da música – como se o filme fosse o próprio balé – nos ajuda a entender melhor o que está em jogo aqui: uma reflexão sobre o limite entre o palco e a vida. E os exageros aqui podem ser criticados – eu mesmo considerei algumas cenas bastante esdrúxulas (como aquela das pernas se quebrando ou a do hospital em que a ex-bailarina interpretada por Winona Ryder tem um acesso de fúria, ou terá sido mais uma dos delírios de Nina?). Mas não podemos esquecer que estamos diante de uma razão em frangalhos. Nina é engolida pelo próprio personagem. Julgar a loucura do diretor e da bailarina, considerando o filme simplesmente como algo cafona (o que é pouco para uma crítica séria) é colocar-se em um lugar seguro – um lugar pleno de razão e sentido – o que, diga-se de passagem, não deve ser o lugar da arte e nem da crítica. Critico logo sou, masturbo-me logo existo. Por que grande parte da crítica insiste tanto em dizer sempre as mesmas coisas, em buscar os mesmos resultados, em chegar em um acordo comum? Desconfio de unanimidades. Quero ler outras coisas sobre o mesmo filme. O registro do esperado - tudo o que não espero do cinema - tudo o que não quero ver em uma crítica. Entre a masturbação de Nina e a dos críticos, fico com Natalie Portman. Fico com a música de um largo Lago dos Cisnes e com a pesada impressão de que sobrou cafonice nos comentários.

c.moreira

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