A chuva que aqui cai, dia a dia, quase sem parar, transformou este que vos escreve em um chuvoso nefelibata. Do que escrevo aqui, nada preciso se anuncia. Destas palavras apenas sei que guardam carinhos, pingos de chuva, a que o vulgo chama lágrimas. O leitor guarde para si as respostas convenientes e as mesuras esclarecedoras que não ouso dedilhar. Nada sei, apenas sinto. Não me julgue pela imprecisão. São apenas períodos derramados, parágrafos que caem chuvosos. Vivo intensamente essa chuva sem deixar de imaginar que um arco-íris ainda nos dará o prazer de uma bela visita. Chover palavras ainda nos resta.
Certa vez, escrevi aqui no blog que só consigo escrever sobre aquilo que amo (mesmo que seja para falar mal). Outra vez, perguntei-me: “Por que sinto tanta necessidade de escrever sobre as pessoas que amo justamente quando elas vão embora?”. E hoje, pergunto: “Por que adio tanto escrever sobre aquilo que mais amo?”. Tenho mil coisas pra falar, mas deixemos o que há de mais íntimo nas profundezas das tardes e noites mornas ou frias de domingos e feriados. Tropeço no fim de semana e já estamos nas intermitências da segunda-feira (agora quase final de semana). Enquanto tenho alguns nós na garganta, brotados nas alegrias e tristezas da vida, vou tecendo gestos de uma escrita quase. De todos os meus adiamentos, há um que também trata do amor. Ele não se resume a este texto. Seria preciso pensar bem mais, imaginando uma forma justa e honrada de fazê-lo existir. Não estou falando só do amor. Estou falando de Wilson Bueno.
Quando fiquei sabendo – por meio de uma pessoa queridíssima – da morte do autor de "Mar Paraguayo", além de ficar extremamente triste, pensei imediatamente em escrever-lhe uma homenagem, como aquela que rabisquei para Dorival Caymmi e Valêncio Xavier. A mensagem me chegou como pedra. Talvez uma carta, talvez um tableau. Wilson Bueno foi um daqueles que produziu em mim um abalo sísmico. No entanto, minha admiração por ele é tão grande que me calei com a notícia de sua trágica e violenta partida. Como aqueles indígenas descritos por Freud em “O Totem e o Tabu”, intentei silenciar o meu luto com o silêncio. Há nomes de mortos que são impronunciáveis. Esse, é claro, não é o caso de Wilson Bueno. Como professor de literatura, faço questão de pronunciar seu nome e suas palavras – sobre-nomes, nomes de outros nomes – sempre que suas imagens brotam no meio dos meus dias, nas margens das minhas aulas. Mas não é só o luto que transformou minha homenagem em papel branco. Wilson Bueno é daqueles que, ao hesitarem constantemente entre o som e o sentido, deixam aos comentadores, ao mesmo tempo, um belo presente e um desafio constante: a impossibilidade de olhá-lo sem que sejamos imediatamente por ele transformados e a incapacidade de devolver um olhar à altura.
Mas ao invés de escrever um tableau para Wilson Bueno (Uílcon Blanco diriam os mais agressivos), prefiro tomar um banho de chuva. Quem não se lembra daquelas brincadeiras de infância. Como bichos corríamos pelo quintal à procura da felicidade antes de um raio de sol.
“Esses animais, eu vos convido, era uma vez”. Assim começa “Os Chuvosos”, poema-fábula, poema-música. Eu já sabia da existência desse livro, mas nunca prestei muita atenção. Até que encontrei no sebo uma bonita edição confeccionada pela Jussara Salazar, para a editora Tigre do Espelho. Conversando com ela, fiquei sabendo que só existem 50 exemplares dessa edição. Ela me contou que Bueno lhe pagou uns trocados para que os chuvosos começassem a cair. Depois caíram numa outra editora e na net também. Os 50 exemplares me fizeram lembrar daqueles poetas que antes de serem reconhecidos, bancam as suas edições em tiragens mínimas. Mallarmé é um bom exemplo. Quem serão os outros 49? Onde estarão chovendo?
Pois bem. Não foi só por isso que o livro me chamou a atenção. Quando li pela primeira vez, desde o primeiro momento, percebi que estava diante de um nefelibata falando sobre nefelibatas. A associação com os simbolistas foi imediata, tendo em vista que esses poetas finisseculares foram, muitas vezes, tratados pejorativamente como homens que viviam nas nunves, uma referência aos seres imaginados por Rabelais... Como, a meu ver, a poética simbolista sobrevive no trabalho de Bueno, a relação, por meio do livro, foi inevitável. Bueno, além de produzir uma escritura que devolve potência aos poetas simbolistas do Paraná, afirma-se também como um nefelibata, em “Os Chuvosos”. O sentido que o autor dá aos imagistas aéreos, no entanto, não é negativo. Nefelibata, aqui, não é aquele que é alienado porque recusa viver o mundo que vivemos. É aquele que, sobre a nuvem, consegue ver com mais clareza e de forma panorâmica o mundo em que habitamos. Nefelibatas são aqueles que se transformam em Chuvosos e, ao se transformarem, fazem da manhã uma “festa de luz e passarinho”: “O mais lindo nesta história, contudo, é o dia em que os Chuvosos sobre a Terra caem... múltiplos, gasosos, incessantes, transformados na névoa que deste lado se vê e que, feito um encanto, coroa os postes das madrugadas bêbadas de neblina... e vai pelas frestas das janelas e sobe à copa do velho pinheiro e ali fica, halo gentil que a noite abriga, até que o primeiro sol da manhã a dissolva... numa festa de luz e passarinho”. O poema, por mais estranho que pareça, parece ser uma visita do poeta contemporâneo aos nefelibatas da belle époque.
Sobre o texto, Adriana Peliano, escreveu um belo depoimento: "Quando eu era pequena, sonhava em saltar da janela do avião para brincar com os moradores do reino das nuvens. Meu amigo Wilson Bueno me mostrou que não era sonho, pois eles existem mesmo!" Em uma entrevista concedida a Cláudio Daniel, ao ser perguntado se depois do divertido texto voltado às crianças, o autor pretendia se dedicar mais à literatura infantil, Wilson Bueno respondeu: “Eu diria que Os Chuvosos se destina, ao menos este é o meu desejo, a leitores dos 0 aos 100. E tem sido esta a recepção dos escassérrimos 50 exemplares “fabricados”, um a um, à mão, como se fossem gravuras. Gente de todas as idades fica encantada com este livro. Mas ali tem o toque mágico da Jussara Salazar que reinventa o texto e faz dele no papel uma literal fulgurância”. Em uma conversa com Rodrigo de Sousa Leão, o chuvoso Bueno disse que não escreveu "Os Chuvosos" pensando especificamente nas crianças, pelo contrário - era até, em princípio, para integrar o seu livro "Jardim Zoológico", mas então Bueno e Jussara decidiram que o livro seria destinado às crianças e como ele o tinha escrito para uma menina, Kaira, então com 5 anos, e tinha a ela dedicado o texto, "Os Chuvosos" ficou sendo mesmo um título de literatura infantil.
Poderíamos aceitar que estamos diante de um texto de literatura infantil, mas apenas na medida em que, ao lermos o texto de Bueno, comportamo-nos como crianças a brincar com um caleidoscópio. Imagino que todo bom leitor é um leitor infantil. Eis a minha tese. Walter Benjamin defendia que o pensador deveria se colocar diante da história como uma criança a girar um caleidoscópio. Não seria diferente ao lermos esse texto de Wilson Bueno. Assim como os nefelibatas do final do século XIX e início do século XX, o autor de “Os Chuvosos” inventa uma máquina de produzir imagens, "múltiplos gasosos", a partir de cores e cacos. Eis a moralidade do nosso brinquedo.
Vale lembrar que o livro foi lançado em 1999, ou seja, trata-se da obra de um outro fim de século. Teria sido essa uma mera coincidência? Estamos, aqui, diante daqueles “dois umbrais” a que se refere o crítico argentino Daniel Link, no ensaio que compara os dois finais de século, tendo Rubén Darío como guia. Trata-se do texto: “Utopias: dois umbrais”, que integra “Como se lê e outras intervenções críticas”. Sobre “Os Chuvosos” apresentarei um trabalho em um Congresso de Literatura, em Buenos Aires, ainda este ano. Vamos ver quanta chuva ainda cairá até lá. Trata-se de uma homenagem tardia que pretendo fazer àquele que poderia ter inspirado Drummond a escrever: “A chuva me irritava até que um dia descobri... era Bueno que chovia... a chuva era Bueno... e cada pingo de Bueno ensopava o meu domingo".
c.moreira
6 comentários:
belo texto, preciso ler ele algum dia.
Não o texto, o W Bueno
Lindo texto/homenagem e maravilhoso livro de Wilson Bueno.
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