A orelha-poema que integra os
livros da coleção Ciranda da Poesia, organizada por Italo Moriconi, e editada
pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, é bastante explicativa:
"Poeta que lê poeta que lê poeta / Crítico que lê poeta que lê poema /
Poema leitura de poema, poesia / e crítica, poesia é crítica / leitura /
escrita em movimento". Trata-se de um conjunto de pequenos-grandes livros
interessados no exercício de análise "literária" das obras de poetas
contemporâneos. Propor uma análise "literária" da literatura
significa para o crítico não só se debruçar com atenção no objeto que está
disposto a ler, mas também se debruçar com imaginação, já que a poesia é tomada
ali como crítica e a leitura entendida como uma escrita em movimento.
"Celebrar o trabalho do poeta.
Estimular o trabalho da crítica". Esses são os objetivos principais da
Ciranda. Não é à toa que alguns dos críticos selecionados para compor a
primeira fornada (outros livros estão chegando agora (2011 e 2012), somando-se aos sete
lançados em 2010) sejam poetas, como é o caso de Alberto Pucheu, Renato Resende
e Paulo Henriques Brito. Na Coleção, mesmo aqueles críticos que não são
necessariamente poetas, não deixam de flertar voluptuosamente com o objeto em
questão, a poesia. Essa parece ser uma tendência da boa crítica contemporânea
que, inevitavelmente, é flagrada na Coleção.
Depois de ler os sete livrinhos,
tenho a impressão de que estou diante não apenas de livros coloridos (a capa de
cada livro possui cor diferente), mas também de ensaios coloridos. Explico!
Voltemos rapidamente no tempo. Antonio Candido, no texto "Ironia e
Latência", que integra o livro "O albatroz e o chinês", parafraseando
Mefistófeles, afirma que a "crítica é cinzenta, e verdejante o áureo texto
que ela aborda". O argumento sisudo soa estranho vindo justamente de um de
nossos maiores críticos. De um lado está a crítica, cinza, e de outro, o texto
colorido que ela analisa. De um lado está uma coisa, de outro, outra. O corpo -
escritura - é o mesmo, mas a mistura
impossível, já que óleo e água são duas soluções incompatíveis entre si. Há uma
concepção de autonomia que está implícita no argumento de Candido em relação a
esses domínios específicos, o crítico e
o poético. Em uma República está o filósofo, o crítico, na outra o poeta,
exilado e manco feito o albatroz de Baudelaire. No entanto, o aparecimento da
Ciranda da Poesia permite que essa a questão seja revista justamente no ponto
central, lugar que ela imaginava sólido e estável.
Se a crítica pode ser colorida
como nos mostram os ensaios da Coleção, isso se dá, penso, por dois motivos.
Primeiro, por não considerar a crítica como cinzenta (resto sem cor de um corpo incendiado
e já sem vida). Nesse sentido, não concorda com Candido, que vê a crítica,
indiretamente, como "segundo plano" em relação ao objeto analisado. Ou seja, não sofre do complexo de vira-lata. Segundo, por pensar a crítica e a poesia não como territórios circunscritos,
delimitados, autônomos, impassíveis para um namoro, ou pelo menos para uma
conversa inteligente. Assim, a Coleção parece colocar o argumento de Candido em
xeque, porque pensa a crítica como "leitura em movimento", ou seja,
também como pensamento criativo, ou ainda, como "poema leitura de
poema". Não se trata de fazer crítica com versos, como se ela tivesse a
intenção de ser aquilo que não é, mas de remover, ou pelo menos ensaiar (não é
este também o objetivo do ensaio?) a cisão que separa os dois domínios, o
crítico e o literário. Por isso, falo de um ensaísmo colorido.
O ensaio colorido a que me refiro
aparece com mais frequência nos livros sobre Antonio Cicero, de Alberto Pucheu;
sobre Carlito Azevedo, de Susana Scramim; e sobre Sebastião Uchoa Leite, de
Franklin Alves Dassie. Pucheu encontra em Cícero a experiência poética de
vários tempos, sujeitos e lugares, cujos poemas guardam ressonâncias do que
"iluminando-nos, foge de nós e nos ofertam a potência de nossa própria
atualidade". Ou seja, uma poética do "agoral", ou ainda,
extemporânea, intempestiva. Heterotópica e heterocrônica, a poesia de Cicero,
passa a ser vista pelo crítico como eminentemente contemporânea. Estamos diante
de um poeta falando de poeta. Crítico falando de um crítico (Cicero é também
ensaísta), crítico falando de poeta, poeta falando de crítico, crítico-poeta
falando de poeta-crítico. Resultado: uma experiência colorida.
Em uma das passagens mais bonitas
de seu ensaio, Pucheu escreve sobre a poesia com "pinta" de poesia:
"O poema é o limite que guarda o ilimitado oculto da poesia na resplandecência
de sua superfície. O poema é uma forma que guarda o informe oculto da poesia na
resplandecência de sua superfície. O poema é o corpo que guarda o incorporal
oculto da poesia na resplandecência de sua superfície. O poema é o determinado
que guarda o indeterminado oculto da poesia na resplandecência de sua
superfície. O poema é alguma coisa que guarda o nada oculto da poesia na
resplandecência de sua poesia (...)." A sequência é longa. Não se trata de mero charme ou de uma "maneira
bonita de dizer", mas de uma escrita cujos objetivos podem ser imaginados
aqui. Impossível tocar no poema sem ser por ele tocado. A crítica olha com
presteza para o poema na exata medida em que é por ele olhada. A crítica é
entendida aqui como solução imaginária para os impasses com os quais se depara
o leitor. A crítica como leitura criativa, e o poema como
"ensaio-teórico-crítico-experimental", para usar uma expressão de
Roberto Corrêa dos Santos, poeta-professor-crítico que é analisado com minúcias
por Pucheu em seu mais recente livro.
Susana Scramim, por sua vez,
discute a poesia de Carlito Azevedo como potência. Está à altura do
contemporâneo na medida em que é um ser sem substância. Para Scramim, não são
poucos os poemas de Carlito em que a experiência empírica, a vivência, não gera
o poema: "gera em vez disso um poema que poderia ter sido, uma experiência
no limite da morte, ou seja, a da não existência". Ou seja, a poesia como
imagem - fantasma - de sua própria finitude. Ao pensar na finitude da poesia e
nos dos limites a ela inerentes, da poesia como possibilidade, como
procedimento, ou mesmo como potência passiva, Carlito faz de ser trabalho uma
pictografia, uma "coisa mental". Por trás dessa experiência radical,
há aquilo que Susana considera como a propulsão do trabalho do poeta carioca, a
"noção de vida e seu entrelaçamento com a noção de vida da poesia", o
que pode ser verificado em seu mais recente livro Monodrama (2009).
Franklin Alves Dassie, desde o
início de seu estudo sobre Sebastião Uchoa Leite, demonstra, indiretamente, que
está pensando não só a obra do poeta, mas o próprio fazer crítico que é também
o seu. Como fazer uma apresentação? Como apresentar o poeta? Para quem
apresentá-lo? Para que apresentá-lo? Essas são perguntas que movem o crítico e
que são centrais não só para este livro, mas para qualquer experiência crítica.
O que se destaca em sua leitura é a possibilidade de ler Uchoa tendo em vista
uma subjetividade em permanente conflito. Entram aí figuras bastante
interessantes que, além de fazer parte do universo do poeta, passam a ser
personagens do próprio crítico: a máscara, a marionete, o vampiro, etc. A
imagem do duplo na poesia de Uchoa é o eixo sobre o qual se move a crítica de
Dassie. O jogo entre o "eu"e o "outro, se por um lado é o
motor do poeta, passa a ser também o motor do crítico que, posicionando-se
em relação àquilo que lê, e investindo nos sentidos da leitura, acaba cúmplice
- e até parceiro - do próprio poeta, já que os poemas ganham outras
possibilidades de leitura a partir do trabalho de leitura criativa. Assim, as
máscaras são também do crítico: "Posso ser muitos e ser um só usando
máscaras, mas não tento esconder a dupla identidade; ao contrário, pretendo
ressaltá-la, umas vez que a intenção é lembrar que alguém fala por trás delas,
diria o ventríloquo". A frase que é dirigida à poesia de Uchoa pode, sim,
ser lida como dirigida por Dassie a ele mesmo: a dupla identidade, crítico/poeta,
é ressaltada, afirmada, e não negada. Quem fala, o ventríloquo-poeta, ou aquele
que opera a máquina ensandecida de leitura, o crítico? Onde acaba a voz de um e
começa o voz do outro? Não seria interessante remover a barra (/) que cinde as
duas atividades, potencializando, assim, outros modos de ler?
Resta-nos desejar vida longa à Coleção,
e esperar os próximos livros, os próximos poetas, os próximos críticos.
Coleção Ciranda da Poesia: Antonio Cicero por Alberto Pucheu (100 págs); Carlito Azevedo por Susana Scramim (110 págs); Chacal por Fernanda Medeiros (116 págs); Claudia Roquette-Pinto por Paulo Henriques Britto (84 págs); Guilherme Zarvos por Renato Rezende (80 págs); Leonardo Fróes por Angela Melim (64 págs) e Sebastião Uchoa Leite por Franklin Alves Dassie (92 págs)
Em 2011 e 2012, foram lançados livros sobre: Angela Melim, Ana Cristina Cesar, Armando Freitas Filho, Marcos Siscar, Douglas Diegues, Ingeborg Bachmann, Ghérasin Luca, Zbigniew Hertbert, Salgado Maranhão, Afonso Henriques Neto, Roberto Piva, Nathalie Quintane.
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