Há traduções que só encontram seu
verdadeiro "tom" e "medida" quando são feitas por artesãos
específicos. Quem, senão Donaldo Schüller, seria a pessoa certa para traduzir o
Finnegans Wake, de Joyce, para a nossa língua mátria? Arnaut Daniel, em
português, sem Augusto de Campos, o que seria? Paradiso, de Lezama Lima, sem
Josely Vianna Baptista, só Haroldo de Campos.
Em um momento em que os índios são
desrespeitados e continuam sendo exterminados (direta ou indiretamente), a Roça Barroca, de Josely Vianna
Baptista, ganha ressonâncias não apenas literárias mas também políticas. O
livro presenteia o leitor com três cantos sagrados dos Mbyá-Guarani do Guairá,
traduzidos, ou melhor transcriados, pela mão inventiva da poeta, bem como
alguns poemas de Josely que dialogam com as traduções. A introdução é de
Augusto Roa Bastos. O paraguaio relembra, no texto, que os cantos dos
primitivos Guarani do Guairá são peças de um povo que celebrava a palavra como
vínculo fundamental entre o homem e o universo. Logo, o sentido a eles
atribuído em sua cultura, transcende a mera arquitetura verbal, colocando-se
misticamente a serviço da espiritualidade do povo. Para os Guarani alma e
palavra são inseparáveis, não havendo então uma separação entre o universo
mítico e o universo poético. Esses índios, que erroneamente poderiam ser
considerados ágrafos (como se a fala não fosse uma espécie especial de escrita),
preservam uma relação com a palavra que há muito a nossa cultura abandonou. As
traduções de Josely mostram o quanto temos a aprender com eles. Para começo de
conversa, esses cantos são por eles considerados sagrados. Talvez por isso, os
textos, durante séculos foram interditos a qualquer "intruso"estrangeiro.
Para nós, a palavra sagrada continua sendo apenas aquela que ouvimos durante a
liturgia religiosa.
Mbyá é um dialeto do guarani, língua
aglutinante, não flexionada, composta
pela união de vocábulos. Aproxima-se, nesse sentido, da escritura ideogramática
oriental que permite uma outra relação do sujeito com a linguagem. A forma de
estruturação do guarani em constelações
rítmicas e semânticas leva cada partícula a "assumir, por seu valor
posicional e modulatório, a função de um sema ou mitema", segundo palavras
de Roa Bastos. Para Josely, "essa configuração constelada, em que a língua
opera por um sistema de justaposição e síntese, e sua arquitetura imagética e
rítmico-sonora conferem ao guarani uma alta potencialidade poética, realizada
nos mitos cosmogônicos mbyá, repletos de palavras-montagem, assonâncias,
paronomásias, ritmos icônicos, metáforas e onomatopéias". O processo de
tradução, muito interessante, é descrito minuciosamente pela poeta-tradutora no
texto que abre a publicação. Lembro apenas que ela cotejou o texto-base
original com a versão para o espanhol de Cadogan, revista e anotada por
Bartolomeu Melià. Josely contou também com o apoio de Teodoro Tupã Alves,
ex-cacique que é professor em São Miguel do Iguaçu. A transcriação permitiu que
Josely prezasse pela forma ideogramática, em um "exercício
escritural" no qual tentou infundir no português um pouco do
"sussurro ancestral"da língua guarani.
Os cantos transcriados apresentam mitos
cosmogônicos dos guarani. É o caso dos primitivos ritos do Colibri. Segundo a lenda, o deus supremo foi de si
mesmo se desdobrando e se abrindo em flor. O sol ainda não existia. O deus se
vê no escuro iluminado pelo seu próprio coração: "O Colibri, em adejos sobre a
fronte do deus, farta de flores, respinga água em sua boca e o alimenta com frutos
do paraíso"(BAPTISTA, 2011). Nos outros dois cantos, o deus faz brotar a
fonte do amor e do som sagrado, fazendo a "fonte da fala aflorar de si e
fluir por seu corpo". Surgem, então, os homens e tudo o mais.
As primeiras palavras do primeiro canto
dizem:
Ñande Ru Papa tenonde
gueterã ombojera
pytú ymágui
Yvára pypyte
apyka apu'a i,
pytú yma mbytére
oguerojera
(Nosso primeiro Pai, sumo, supremo,
a sós desdobrando a si mesmo
do caos obscuro do começo
As celestes plantas dos pés,
o breve arco do assento,
a sós foi desdobrando ereto,
do caos obscuro do começo )
Com tino de poeta, Josely traduz de
forma magistral, re-criando versos com uma beleza cara a sua própria escrita:
"seu sol era / o saber contido em seu ser-de-céu", resolvendo, assim,
o seguinte enigma: oyvásrapy mba'ekuaápy (oyvásrapy: dentro de seu céu - em sua
divindade; py: dentro de); (mba'ekuaá: ter conhecimento das coisas, visíveis e
invisíveis).
Com um vocabulário relativamente escasso, os guarani criaram nos cantos uma gama incrível de variações. Como a língua é aglutinante, a criação de desdobramentos vocabulares permite à poesia uma versatilidade semântica de grande valor: "No caos obscuro do começo / tudo oculto em sombras / o princípio de um som sagrado ele, a sós, criou"; "Depois de muito meditar / com o saber contido em seu ser-de-céu, / e sob o sol de seu lume criador, / desdobrou-se em quem refletia / seu ser-de-céu".
Com um vocabulário relativamente escasso, os guarani criaram nos cantos uma gama incrível de variações. Como a língua é aglutinante, a criação de desdobramentos vocabulares permite à poesia uma versatilidade semântica de grande valor: "No caos obscuro do começo / tudo oculto em sombras / o princípio de um som sagrado ele, a sós, criou"; "Depois de muito meditar / com o saber contido em seu ser-de-céu, / e sob o sol de seu lume criador, / desdobrou-se em quem refletia / seu ser-de-céu".
Tão importantes quanto os cantos são os poemas de Josely,
que mantém a dicção neobarroca característica de seus trabalhos anteriores.
Todos os poemas que integram a publicação estão direta ou indiretamente ligados
ao tema dos Guarani de Guairá. Se por um lado os textos dialogam com a
ideogramática escrita dos cantos indígenas, devidamente assimilados pela poeta
como forma de homenagem e/ou diálogo, por outro reivindicam uma dicção (neo)barroca.
Do confronto pacífico e ao mesmo tempo (des)dobrado e sangrento entre a poesia do
colonizador e a potência poética do Guarani colonizado, depreende-se uma
espécie de "arte da contra-conquista", como quis Lezama Lima, aliás,
mentor intelectual de Josely. Há uma política que se desdobra desses poemas,
pondo em funcionamento uma postura ao mesmo tempo racional e delirada na
escritura de uma poeta que sabe o que está dizendo. Referências a Gôngora,
Manuel da Nóbrega, Antônio de Gouveia, chegam na hora certa nesse "engenho
de sins"que é a poesia de Josely. Ora brota a decadência do projeto
jesuítico, que faz eco em versos como: "carunchos e cupins roem, / vorazes, a
choupana de ripas"; ora aparece a partir da vitalidade poética indígena materializada: o solo é
árduo mas alado. Poemas como "guirá ñandu" fazem referência ao fim do mundo tal
como é concebido na poética-cosmogônica Guarani.
Josely Vianna Baptista
Encantou-me em especial o nome do livro, uma referência a
culturas ameríndias de terras brasileiras que, por serem seminômades, fazem a
sua roça em um determinado local e tempos depois seguem viagem. A dimensão e a
importância política e literária das traduções de Josely - fundamentais nesse
momento em que o desmatamento e o alto índice de suicídios entre os guarani demonstram a falta de respeito do poder público e da sociedade em geral com as
comunidades indígenas -, impõem-se com uma força e importância sem tamanho.
Josely Vianna Baptista encerra um dos textos que compõe o livro observando que
o maior mistério a cercar os guarani está no fato de conseguirem sobreviver à
margem da "barbárie" contemporânea: "Olhando a névoa, a nuvem, o orvalho, o alento do roçado em que respira a
neblina vivificante, eles vêm mantendo com dificuldade seu tekoha, onde
praticam o teko (modo de ser) de seus antepassados, enquanto buscam preservar
na pouca terra que lhes restou, a natureza e a fala indestrutível que os deuses
deixaram aos seus cuidados".
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