terça-feira, 6 de maio de 2014

Império Caboclo: A literatura e o Contestado



Ao longo do século XX, não foram apenas os historiadores que se interessaram pelo Contestado. Vários escritores se dedicaram a fazer literatura tendo o conflito como mote. Entre eles, destacam-se Frederecindo Marés de Sousa, com Eles não acreditavam na morte (datado de 1958, mas publicado apenas em 1978); Noel Nascimento, com Casa Verde (1963); Guido Wilmar Sassi, com Geração do Deserto (1964); e Jean-Claude Bernardet, com Guerra camponesa no Contestado (1979). Dos mais recentes, sobressaem-se O Bruxo do Contestado, de Godofredo de Oliveira; e Império Caboclo, de Donaldo Schüler (1994). Cada uma das obras citadas possui as suas peculiaridades e, assim como os documentos jornalísticos ou historiográficos referentes ao conflito, muitas vezes caíram no binômio mocinho/bandido. Algumas delas reiteram o discurso oficial – entenda-se o discurso militar e político -, que muitas vezes delegou aos caboclos o papel de fanáticos e bandidos, tratando-os como agentes de uma barbárie que se situaria no oposto da civilização, entendida como superior ao universo sertanejo. Segundo essa visão, o “fanático” seria fruto de um “meio não-civilizado”, ou de uma “degeneração da raça” – concepção adepta das teorias científicas do final do século XIX e início do século XX. Outras obras, alimentadas por um discurso sociológico, polemizam, desconstruindo as narrativas tradicionais, invertendo os papéis, e consignando aos caboclos o título de vítimas ou heróis, visão que, de certa forma, “ao assumir a função de porta-voz do oprimido, em geral, cai no extremo oposto e equivalente, ratificando a divisão entre bons e maus” (WEINHARDT, 2000). Mas há ainda um terceiro caminho, aquele onde as veredas se bifurcam. É esse que escolhemos trilhar.
Dentre as obras citadas, uma chama a atenção, em especial, por embaralhar os pontos de vista, re-montando a história de uma maneira bastante criativa. Trata-se de Império Caboclo. Proponho neste artigo uma leitura do livro de Donaldo Schüler, levando em conta não apenas o diálogo entre a história e a literatura, mas principalmente entre as múltiplas vozes que se instalam em sua narrativa, bem como a montagem operada pelo autor.


 Penso que a prosa fragmentada de Schüler pode ser lida como um conjunto de imagens dialéticas, para usar uma terminologia de Walter Benjamin; imagens que desestabilizam não apenas a narrativa tradicional, mas também o próprio discurso histórico. Por lançar mão de várias vozes, a sinfonia polifônica e dissonante de Império Caboclo produz aquilo que Marilene Weinhardt chamou de saturação ideológica ou flutuação de ideologias, característica do discurso romancesco, aquele em que a significação surge da convivência e do embate das diversas ideologias: “Na medida em que o universo é constituído de uma multiplicidade de vozes, nenhuma é absoluta (WEINHARDT, 2001). E é nesse reino do não-absoluto, do entre-lugar e da diferença, que se situa a obra de Donaldo Schüler. Trata-se de um jogo literário que propõe uma forma de conhecimento não fascista da história.
Na mesma época em que a Guerra do Contestado eclodiu no sul do Brasil, o mundo preparava-se para a I Grande Guerra e a Europa assistia ao surgimento e à disseminação das Vanguardas Européias. Em 1912, no mesmo ano em que se dava o estopim do conflito armado entre os caboclos e os militares no Paraná e em Santa Catarina, o italiano Filippo Tommazo Marinetti publicava o segundo manifesto do movimento futurista, que glorificava na arte a máquina e a guerra. No mesmo ano, na Alemanha, Kurt Hiller lançava a primeira antologia de poetas expressionistas. O movimento vinha se delineando desde o final do século XIX, mas só ganhou força a partir de 1910, com a revista Der Sturm. O único manifesto verdadeiramente expressionista, escrito por Kasimir Edschmid, só seria publicado em 1918, algum tempo depois da assinatura do acordo de limites entre os Estados do Paraná e Santa Catarina.
Na obra expressionista, a representação expressiva da realidade física e psíquica ganhava a atenção dos artistas. O mundo interior, obscuro e ilógico era valorizado em detrimento do equilíbrio clássico. Podemos facilmente imaginar uma guerra como a do Contestado ganhando contornos expressionistas nas mãos de Edvard Munch. O semblante apavorado do homem retratado em O Grito (1893) poderia ser o de qualquer sertanejo que assiste ao terror desfilando em um campo de batalha. O Soldado Morrendo (1924), de Otto Dix, poderia ser o desenho de um subordinado do Coronel João Gualberto tombando no front. A xilogravura intitulada Memorial para Karl Liebknecht (1920), de Käthe Kollwitz, poderia ser a representação das exéquias do monge José Maria, em Irani. Mas não é só a guerra que poderia ser considerada surrealista ou expressionista. 


Soldado Morrendo (1924), de Otto Dix


Memorial para Karl Liebknecht (1920), de Käthe Kollwitz

A narrativa de Donaldo Schüler também, já que materializa as dúvidas e dores que eram traduzidas pelo expressionismo na mesma época. Gritos, mortes, cartas e depoimentos constituem uma prosa experimental, no que ela tem de fragmentária, elíptica e caleidoscópica.
O romance Império Caboclo, ao desmontar e re-montar a história, como o quebra cabeça de uma colagem cubista – Guernica de horrores no sul do Brasil -, ou mesmo como um quadro abjeto e expressionista, alcança, assim, uma dimensão não explorada pelo discurso histórico ou sociológico. Problematizando as verdades construídas ao longo dos tempos, o livro faz uma provocação não apenas aos mocinhos e bandidos, santos e pecadores, mas também àqueles que se encarregaram de escrever a sua história: “(...) a estória, em rigor, deve ser contra a história”, diria Guimarães Rosa.
A epígrafe apresentada por Donaldo Schüler em Império Caboclo é um fragmento do poema em prosa “Vulda”, de Cruz e Sousa, que integra o livro Evocações, publicado em 1898: “Ele evoca-me o colorido extravagante, exótico, de uma Flor selvagem e rara destas prodigiosas florestas da ampla e verdejante América”. Ele quem? O livro, a terra, o monge ou a luta? A presença do poeta de Desterro na epígrafe não é fortuita. O simbolismo foi o movimento poético fomentado no Brasil no final do século XIX e que sobreviveu nas primeiras décadas do século XX, época do surgimento do Contestado. Rubén Dario é outro poeta simbolista que aparece no livro, citado em um dos fragmentos que compõe o diário de Kaspar Hauser. 



Depois da epígrafe, apresenta um preâmbulo que, proliferando os sentidos da floresta citada por Cruz e Sousa, poderia ser lido como um discurso profético e alucinado do monge que motivou o messianismo sertanejo. O fragmento chama a atenção não só para o fato histórico, mas também para o desenvolvimento estético e lingüístico que percorre toda a obra: “Caminhos... a floresta tem mil caminhos e não tem caminho nenhum. Caminhos que se abrem e se fecham (...)”. A floresta do Contestado faz lembrar o sertão de Guimarães Rosa, que é todo lugar e lugar nenhum. Nesse sentido, a prosa de Donaldo parece, à maneira de Os Sertões, de Euclides da Cunha, transformar um conflito em literatura, mas, nesse caso, dando continuidade às conquistas estéticas da literatura no século XX, levando em conta as inovações das vanguardas européias, de Oswald de Andrade, de Guimarães Rosa, e até mesmo de James Joyce, escritor irlandês estudado e traduzido por Donaldo Schüler. Edélcio Lopes observou que a heteroglossia presente no universo do Contestado foi fundamental para a formação de Schüler como tradutor de James Joyce:

A mistura poliglota inserida pela Guerra do Contestado também faz o escritor perceber que ter vivido na região atingida pelo conflito e, por conseqüência ter tido relação direta com a história que dele restou, foram fundamentais para a tradução de “Finnegans Wake”, de James Joyce.A obra do escritor inglês, autor do clássico “Ulisses”, era, até então, considerada intraduzível devido à grande quantidade de neologismos inventados pelo autor. Schüler conseguiu decifrar linha por linha do volume, que foi composto utilizando 60 idiomas. “Só posso acreditar que a pluralidade da região de onde vim tenha ficado em mim de uma forma muito intensa. Por isso, acho coerente ter conseguido efetivar a tradução”, analisa (LOPES, 2010).

Depois do preâmbulo, há um prólogo que é de suma importância para o desenvolvimento da obra. Convém comentá-lo brevemente para situarmos a nossa leitura. O narrador, de nome Alfredo, se identifica como um marido querendo viajar para Florianópolis para comemorar dez anos de casamento com Evangelina. Ele se diz interessado nela história do Contestado. Está buscando farta bibliografia sobre o tema, por isso liga para Iaponan, especialista no assunto. O amigo lhe entrega vários livros e ainda indica lugares em que Alfredo poderia pesquisar. No mesmo dia, o narrador recebe de um “moço” misterioso um pacote contendo documentos inéditos sobre o conflito. Os textos foram encontrados na casa que pertencia ao coronel Henrique Rupp Júnior. Alguns instantes depois de receber o material, o narrador começa a ser perseguido pela polícia, por possíveis relações com Raul Teixeira, o jovem que lhe entregara os textos. O quarto de hotel em que estava hospedado foi invadido, mas os textos sobreviveram. Fica sugerida a ideia de que o acontecimento se deu em um momento obscuro de nossa história, a ditadura militar. Raul Teixeira preparava uma reportagem sobre o Araguaia. Para ele, Canudos e Contestado estavam ligados. Alfredo liga para o amigo César Aleixo, que lhe diz ter sido um erro se interessar pelo Contestado naquele momento, tendo em vista que foi o maior levante popular do Brasil. O narrador, então, abre o pacote:

Eram documentos reunidos por alguém das relações de Henrique Rupp Júnior – entrevistas, cartas, relatórios, diários... – para informar os Hauser, da Alemanha, sobre Kaspar, misteriosamente aparecido e desaparecido no Contestado. Poucos papéis estão identificados. Somos obrigados a contentar-nos com o documento sem conhecer o autor (SCHÜLER, 2005).

A estratégia de Donaldo Schüler é bastante sugestiva. O autor arma um mosaico anônimo que o permite passear pelo conflito com uma liberdade jamais conferida pelo discurso historiográfico ou sociológico. Segundo Lauro Junkes, a própria estrutura narrativa de Império Caboclo assume o novo, a ruptura da continuidade diegética e da concepção historicista de uma visão plena e acabada: “Dessa forma, por sua estrutura aberta e pelos enfoques a extrapolar o estrito episódio histórico, o romance convida o leitor a prazerosas andanças e parcerias construtivas” (2010). Essa estrutura aberta, pautada pela montagem, é semelhante à lógica cinematográfica:

(...) cada ato se fragmenta dinamicamente em inúmeras cenas, depoimentos, fragmentos individuais ou comentários avaliatórios, desconsiderando qualquer continuidade necessária, por autêntica montagem cinematográfica, quando a irrequieta e como que onipresente câmara recorta excertos de ações, lances de reportagens, ou assume a visão do interior de diferentes personagens, externando o fluxo do seu pensamento. Essa fusão de partículas narrativas torna-se responsável pela multiplicação de perspectivas, permitindo compor-se gradativamente um imenso painel, um mosaico multicolorido, integrado por incontáveis pedrinhas organizadas, uma vigorosa polifonia em que vozes diversificadas se associam, cruzam ou contrapõem, deixando ao leitor a tarefa de interligar, confrontar e concluir esses fragmentos para consolidar sua visão dos acontecimentos - o que pressupõe um leitor implícito de vasta cultura, sensibilidade, perspicácia e senso crítico. Não se espere, pois, que a estrutura do enredo se revista organicamente de continuidade lógica, aproximando-se mais do tipo globalizador, devido à descontinuidade fragmentária, à despreocupação com formalizações lógicas, aos saltos constantes, à mobilidade ágil da câmara cinematográfica nos seus registros de tomadas por vezes brevíssimas (JUNKES in LOPES et al., 2010).

Numa dos fragmentos de Império Caboclo, Schüler apresenta os dilemas do compilador, aquele que é responsável pela organização do arquivo, da coleção, chamando a atenção para a lógica teatral e cinematográfica da montagem:

- Você já notou que no seu quebra-cabeça há peças que não se ajustam? Você não violenta os fatos? A visão teatral ou cinematográfica é sua. Os fatos não são teatrais nem cinematográficos nem romanescos. Seu erro está aí. Os fatos não se ajustam a seu esquema.
- E os fatos o que são?
- Ora, os fatos são os fatos (SCHÜLER, 2005).

Nesse sentido, o romance se aproxima não só de uma montagem cinematográfica como a de História do Cinema, de Godard, mas também de livros-montagem como Guerra camponesa no Contestado, de Jean-Claude Bernardet, e O mez da grippe, de Valêncio Xavier. Marilene Weinhardt lembra que tanto Bernardet quanto Valêncio Xavier estão ligados à prática cinematográfica. Em ambos, o princípio da montagem é explorado com presteza e a narrativa é composta por um conjunto de reportagens, depoimentos, cacos da história que desconstroem a linearidade tradicional, bem como o discurso unívoco: “Contemporaneamente, quando o narrador se disfarça atrás de recortes e colagens, não busca a objetividade, mas pluralidade. Ele não aparece, mas existe, está sempre lá, em cada escolha, espiando pelas fendas entre os fragmentos (WEINHARDT, 2000). 


Os discursos contraditórios vão aparecendo a todo o momento no mosaico de Schüler. É o que pode ser percebido em duas passagens do livro. A primeira se refere à carta que um imigrante alemão que vivia na região do Contestado endereça a sua filha. O documento reproduz o discurso cientificista do final do século XIX, que perdurou na época do conflito:

O que me preocupa és tu, minha filha, o sangue que deverás conservar puro. Sangue, uma vez maculado, não se purifica nunca mais. A macha fica. (...) O caboclo é uma raça degenerada e doente, irrecuperavelmente doente. Há doenças que só se extirpam com o aniquilamento dos doentes. Vê a preguiça. A preguiça é a doença da raça inferior (SCHÜLER, 2005).

O segundo fragmento questiona a polarização do binômio civilização-barbárie, desconstruindo o discurso tradicional:

Não caia no equívoco de enquadrar o Império Caboclo na surrada antinomia civilização-barbárie. Se você quiser aplicá-la ao século XIX, vá lá. Mas tome cuidado. Se funcionou em José de Alencar, em Machado de Assis não funciona mais. (...) Bárbaro o caboclo não é. Quero acompanhá-lo em todas as suas contradições (SCHÜLER, 2005).

Os dois momentos, o tradicional e o crítico, se chocam, produzindo aquela flutuação de ideologias a que se refere Marilene Weinhardt. Em meio à narrativa de Donaldo, a montagem vai criando um estranhamento, desautomatizando, assim, a nossa percepção dos próprios fatos narrados. Entre o duelo de caboclos e militares, encontramos propagandas da época, documentos militares ou notas jornalísticas. No entanto, Donaldo não pretende fazer historiografia, mas sim literatura. 

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