terça-feira, 2 de agosto de 2016

QUARENTA CLICS EM CURITIBA: ENTRE A POESIA E A FOTOGRAFIA, O DIA DO JUÍZO


Caio Ricardo Bona Moreira


A própria foto não é em nada animada
(não acredito em fotos “vivas”)
mas ela me anima:
é o que toda aventura produz.

R. Barthes

“Fotografia” quer dizer “escrever com a luz”.
Fotos. Grafeim. É o que o Pires faz.
 Um poeta que escreve com a luz. Logo vi.

P. Leminski




1 INTRODUÇÃO


Esse artigo é o resultado de uma aventura.
Posso interrogar-me inicialmente para ver se descubro o motivo de tal escolha. Por que falar sobre a relação entre fotos e poemas? Em que momento a palavra deixa de cumprir seu desígnio, entregando-se às impressões imediatas da fotografia, que assume a função de dizer? Por que a foto me anima se não é em nada animada?
Num primeiro momento, bastaria desenvolver uma reflexão para descobrir que a relação entre a fotografia e a poesia, que transcende um método de análise, não é uma simples questão de código. Fotos e poemas escapam daquilo que caracteriza cada uma de suas peculiaridades, aproximando-se daquela afirmação do fotógrafo Mário Rui Feliciani: “O homem fotografa o que não consegue descrever e descreve o que não consegue fotografar”. 
O objetivo dessa aventura é pensar o livro Quarenta clics em Curitiba, como um passeio pela cidade de Curitiba, bem como pelo Dia do Juízo, anunciado por Giorgio Agambem. A publicação é o resultado de uma parceria criativa entre Paulo Leminski e Jack Pires.
Pesquisando na Fundação Cultural de Curitiba, entre alguns dos textos originais de Leminski, encontrei Quarenta Clics em Curitiba[1]. Há alguns anos alimentara o desejo de manuseá-lo. Quarenta clics não era mais visto em livrarias, bibliotecas, ou em sebos. No Brasil, muitos textos interessantes deixaram de ser reeditados, chegando ao esquecimento do grande público. Ao mirar as fotografias do livro, imaginei a cidade de Curitiba reinventada pelos dois poetas, um da palavra, outro da foto. A história que vemos na imagem é também nossa, aquela que inventamos no texto.
A Curitiba do livro é uma cidade de gente simples, dos pipoqueiros, dos menores abandonados, da velha senhora que, sentada no banco na praça, olha para lugar nenhum. É uma Curitiba que não existe mais, apesar de os personagens, mesmo escondidos, continuarem sendo os mesmos.   


 

 

2 QUARENTA CLICS EM CURITIBA




O projeto do livro nasceu no final do inverno de 1976. Toninho Vaz lembra que a iniciativa foi do empresário Luiz Henrique Garcez de Oliveira Mello, que fundara a Editora Etecetera e escolhera como trabalho de estréia a edição de um livro de Leminski (2001, p. 191). Jack Pires vinha tirando fotografias da cidade de Curitiba há algum tempo. A idéia era de misturar as fotos com poemas. Para a época, a idéia era inovadora, pois não era comum que poetas realizassem esse tipo de experimentação. Nesse caso, as fotografias exerciam uma outra função, não funcionando apenas como elementos meramente ilustrativos, mas como um fator constitutivo de seu conjunto. Logo, não são as fotos que ilustram os poemas. Ambos dialogam na construção de um terceiro texto, aquele que demonstra que a cidade é feita de imagens e palavras, e o livro é a própria cidade.
Jack Pires era um paulista especialista em fotos do cotidiano. Toninho Vaz lembra o encontro do fotógrafo com o poeta:

(...) certa vez ele apareceu na Cruz do Pilarzinho com dezenas de fotos 18 X 24, que seriam espalhadas pelo chão para permitir um a visão global do material. Leminski buscou uma pasta de poemas no escritório e, junto com Alice, passaria horas selecionando os textos que se identificavam melhor com as fotos (VAZ, 2001, p. 192).

As páginas não foram numeradas, o que criou a idéia de que esse mapa urbano não teria centro, periferia, começo e fim. O livro da dupla saiu um ano depois de Catatau, aquele que seria considerado o texto mais significativo da produção de Leminski. Quarenta clics parece ser uma tentativa de transcender as maneiras tradicionais de dizer. Logo, o lançamento do livro participa daquilo que chamo de pós-literatura, pois Leminski não se satisfaz com a literatura tradicional. O trabalho imprimiu-se num espaço em que o processo de criação estava além do que tradicionalmente se caracteriza como literatura. Esse exercício permitiu que o poeta se lançasse numa produção intersemiótica, não se contentando com as “maneiras convencionais de dizer”, apesar de, ao mesmo tempo, nunca abandoná-las, visto que a idéia de velho/novo, em Paulo Leminski, tem uma outra dimensão[2]. No mesmo período, Leminski voltou-se para a música popular compondo, por exemplo, como Ivo Rodrigues, do grupo Blindagem; Marinho Galera; Moraes Moreira; Itamar Assunção  e Guilherme Arantes. Não foi por acaso que o poeta afastou-se do Concretismo, partindo da alta racionalidade prevista pelo movimento para a radicalidade da poesia feita para ser cantada: “quero fazer uma poesia que as pessoas entendam” (LEMINSKI e BONVICINO, 1999, p. 111).
Foi nessa época, depois da publicação de Catatau, em 1975, que começou a trocar cartas com Régis Bonvicino, um amigo responsável por estabelecer uma ponte entre a capital paranaense e a efervescência cultural do eixo Rio-São Paulo. Numa das cartas, o curitibano afirmava serem os tropicalistas os responsáveis por essa mudança estética: “[...] foi Caetano e Gil quem furou o papo do concretismo, e veja que a revolução do Caetano e do Gil dependeu enormemente do plano pragmático: do livro para o disco, para o show” (idem, p. 111). Pode ser percebida nessas cartas a paixão do poeta que não separava a arte da vida. Essa paixão apontou para a urgência da comunicação e da fomentação de uma produção cultural séria e contínua. É o que pode ser lido no fragmento em que Paulo Leminski coloca seu trabalho num horizonte além da literatura:

[...] acho que estamos depois da literatura / não é preciso mais combatê-la / o que nós estamos fazendo já não é ela / a produção dos signos / de bens simbólicos / de mensagens / já ultrapassou a barreira da cultura verbal / em plena conquista de um espaço intersemiótico (idem, p. 33 – 34).

Influenciado pelas leituras da semiótica desde o início de sua relação com os concretistas, passando pela forte presença que a reflexão sobre linguagem marcou em Catatau em toda a sua poesia, Leminski levava agora ao extremo a idéia de que a revolução da poesia passava necessariamente pelo plano pragmático. Esse gesto em que a comunicação começa a ganhar peso na discussão de Leminski, falo da década de 70, faz com que o poeta afirme a necessidade de escrever para muitos, tomando cuidado, ao mesmo tempo, para não deixar que a arte perca o rigor. Basta lembrar que Catatau foi considerado por muitos, como um texto difícil, o que fez com que o poeta repensasse o seu trabalho num contexto de aproximação da poesia com o universo do cotidiano: “quero ser claro. Quero ser comunicação. Banal – nunca. Óbvio – jamais” (1999, p. 149). Nota-se agora o motivo do imediato entusiasmo que levou Leminski a trabalhar com Jack Pires. 


3 IL GIORNO DEL GIUDIZIO 


 O que chama a atenção na fotografia não é propriamente o ato de parar o fluir da vida, permitindo que alguém observe atentamente cada detalhe, mas principalmente a sensação de movimento que não cessa com a fotografia, projetando seus efeitos numa dimensão quase mágica, aquela do “isso ainda está aqui”, ou “isso realmente aconteceu”. O momento da rápida impressão se estende num reflexo daquilo que ainda poderia estar acontecendo e também sobre a maneira como determinado ato está sendo interpretado. Aqui, o que interessa, então, não é apenas o significado de uma imagem, tomado como o outro lado de um determinado significante, mas a própria expressão que engloba a si mesma como constituinte da significação. Nesse caso, poesia e fotografia acabam criando um universo próprio, como se o livro não fosse nada mais do que uma cidade, e a cidade, nada mais do que palavras e imagens.
Mas o que a fotografia reproduz? A resposta vem de Barthes, um escritor apaixonado pela Fotografia:

O que a fotografia reproduz ao infinito só ocorreu uma vez: ela repete mecanicamente o que nunca mais poderá repetir-se existencialmente. Nela, o acontecimento jamais se sobrepassa para outra coisa: ele reproduz sempre o corpus de que tenho necessidade ao corpo que vejo; ela é o Particular absoluto, a Contingência soberana, fosca e um tanto boba, o Tal (tal foto, e não a Foto) em suma a Tique, a ocasião, o Encontro, o Real, em sua expressão infatigável (BARTHES, 1984, p.13).

O registro fotográfico do cotidiano seria impossível na metade do século XIX, pois o movimento das pessoas, marcado na cadência dos transeuntes, ficaria ausente da imobilidade das coisas; as casas, praças e esquinas não andam. Logo, o cotidiano não seria nada mais do que dois tipos de fantasmas, os que não aparecem[3], pois não estão parados, neste caso, os homens, e aqueles que ganham um semblante fantasmagórico justamente por estarem parados, como o francês que engraxava seus sapatos em Boulevard du Temple. É esse gesto ínfimo de “ficar parado” que revela a grandiosidade do registro do cotidiano por meio da fotografia. É o que Agambem cita como Il Giorno del Giudizio:
                                                           
Non saprei fantasticare un’immagine piú adequata Del Giudizio Universale. La folla degli umani – anzi l’umanità intera – è presente, ma non si vede, perché il giudizio concerne uma sola persona, uma sola vita: quella, appunto, e non altra. E in che modo quella vita, quella persona è stata colta, afferrata, imortalata dall’angelo dell’Ultimo Giorno – che è anche l’angelo della fotografia? Nel gesto piú banale e ordinario, nel gesto di farsi lustrare le scarpe! Nell’istante supremo, l’uomo, ogni uomo, è consegnato per sempre al suo gesto piú infimo e quotidiano. E tuttavia, grazie all’obiettivo fotografico, quel gesto si carica ora del peso di un’intera vita, quell’atteggiamento irrilevante, persino balordo compendia e contrae in sé il senso di tutta un’esistenza (AGAMBEM, 2004, p. 8).

O que se coloca como fundamental nessa relação entre a fotografia e a poesia é a relação que cada uma mantém como a realidade. A foto possui a teimosia do referente, no dizer de Barthes. Insiste em “copiar” a realidade. Nela, as coisas do mundo estão representadas com uma fidelidade não encontrada nem mesmo nos melhores pintores renascentistas. Nela, os homens continuam repetindo eternamente o gesto irrepetível, o Dia do Juízo, como diria Agambem. Esse paradoxo com o qual convive a fotografia é indispensável para a sua própria existência. E a poesia?
A relação da palavra com a realidade é bastante difusa. A teimosia do referente está exilada da palavra. E essa noção, parece-me, só pode ser entendida como um jogo. A palavra hesita em copiar o real, funcionando como um distanciamento. Esse fato é julgado desde a Antigüidade clássica com a cautela de quem tem medo da palavra, da violência dessa linguagem, já que a palavra tem o poder de distorcer a realidade. Não é à toa que os poetas são expulsos do paraíso da República, em Platão. O que explica tal violência é a noção de Phármakon, significando ao mesmo tempo o veneno da escritura e o seu remédio. A escritura foi vista pela metafísica ocidental como um mero suplemento da fala, e na maioria das vezes, entendida como um perigo. Convém lembrar que a expressão phármakon, polissêmica por natureza, deve ser pensada além das oposições que se constituíram no seio da metafísica. A carga polissêmica da palavra acabou direcionando-se para a idéia de veneno. Nesse sentido, não seria um remédio, pois a fala perderia seu poder mnemotécnico, sofrendo o jogo da escritura, distanciando-se das verdades da alma. Por isso, a tentativa de conter a escritura não conjurando-se o “ouvir-se falar”. Nesse olhar, a fotografia parece ser menos “rebaixada” do que a escritura, pois nela o referente marca a sua presença. Mas não seriam as fotografias também mentirosas? No Dia do Juízo, foto e poesia parecem fazer um acordo. Já não interessa discutir qual dos dois elementos melhor se relaciona com a realidade já que tudo passou a ser um grande texto, que a princípio destrói a realidade para então reconstruí-la no jogo das diferenças. Tudo agora parece se transformar naquela faísca de que fala Leminski no prefácio de Quarenta clics em Curitiba: “(...) aproximamos fotos e poemas como ideogramas japoneses. Entre foto e poema – a faísca de uma nova poesia (LEMINSKI; PIRES,1990).    
 Se o homem fotografado de Jack Pires insiste em continuar existindo, o homem na poesia de Leminski é afastado por meio dos jogos de linguagem que transformam as fotos em poesia. A foto faz da coisa uma imagem. A palavra faz da imagem um texto e das coisas uma morte, julgando a capacidade da imagem de “copiar” o real, como no dia do acerto de contas.


4 UM PONTO ENTRE A POESIA E A FOTOGRAFIA



Os poemas de Quarenta clics em Curitiba aproximam-se muito da forma do haicai, tipo de poesia japonesa muito explorada por Leminski. Os textos podem ser caracterizados como fragmentos.
Roland Barthes dedicou grande parte do curso “A preparação do Romance”, mais especificamente todo o volume 1,  na análise da importância do fragmento no processo de criação de um romance. O haicai, fragmento poético por excelência, clic fotográfico verbal, é bastante comentado pelo escritor francês.
A impressão causada por apenas três versos pode ser comparada, mesmo em se tratando de códigos diferentes, à apreciação de uma fotografia.
No prefácio do livro A preparação do romance, em que foram compiladas as aulas do curso homônimo ministrado por Barthes, no Collège de France, Nathalie Léger observa que as análises expostas na aula de 17 de fevereiro de 1979, que abordavam a relação entre a fotografia e o haicai, motivaram o escritor a escrever A câmara clara (BARTHES, 2005, p. XVII).[4]  
Na aula citada, o haicai e a fotografia foram comparados:

Minha proposta é que o haicai se aproxima muito do noema da fotografia: “Isso-foi " cinema também; mas é uma aproximação mentirosa, que é muito diferente da aproximação mediatizada por um significante heterogêneo, as palavras, portanto não falsa, mas de uma outra ordem de credibilidade. (...) Portanto mina proposta de trabalho é que o haicai dá a impressão (não a certeza: urdoxa, noema da fotografia) de que aquilo que ele anuncia aconteceu, absolutamente (2005, p. 148).

Esse é apenas um dos fatores que aproximam os dois tipos de texto. Outros poderiam ser apontados. A proximidade entre eles pode ser observada também na idéia de que em ambos nada pode ser acrescentado: “(...) o haicai não pode se desenvolver (aumentar), a foto também não, não podemos acrescentar nada a uma foto, não podemos continuá-la: olhar pode insistir, se repetir, recomeçar, mas ele não pode trabalhar (...) (BARTHES, 2005, p. 151).
Barthes situa o exercício de anotação (prática de anotar) como uma importante experiência na preparação de um romance. Ao considerar o haicai como uma forma exemplar de anotação, elege este tipo de escrita como o “ato mínimo de enunciação”.
Se o objetivo do curso era analisar o processo de confecção de um romance, caminhando do primeiro gesto de representação de um momento até a caracterização de um ponto final que transforma as anotações em um conjunto chamado romance, nada mais justo do que partir do haicai. É nesse mesmo caminho que tento ler nas linhas de Quarenta clics, e também em suas fotos, ecos da manifestação desses átomos que concatenados disseminam no texto os sabores e saberes daquilo que chamamos “fragmentos”.
Na tentativa de conceituar o haicai, deve-se levar em consideração inicialmente que não se trata apenas de escrever três versos – dois deles com cinco sílabas e um com sete. Esse esquema de metrificação nem sempre é seguido pelos escritores. O haicai acabou por sofrer transformações e Leminski é um dos poetas que criaram haicais fora desse esquema tradicional. No dizer de Barthes, o haicai é “a conjunção de uma ’verdade’ (não conceitual, mas do Instante) e de uma forma” (2005, p.52), o que Leminski representa num de seus poemas de Quarenta clics:

  
1º dia de aula
na sala de aula
eu e a sala

(LEMINSKI; PIRES, 1990)


Os fragmentos, vistos sob esse aspecto da anotação que concatena verdade e forma, almeja representar fortes impressões vividas num determinado instante, imprimindo-as em poucas palavras, como uma espécie de clic fotográfico.
A abertura dos sentidos é um passo importante nesse estado de poesia “estalo”. A imagem agora é a de um homem olhando para uma mulher que olha talvez para lugar nenhum:



isso?
aqui
já?
assim?

(LEMINSKI, 2000, p. 171).


O poeta passa a ser o tradutor desse instante entre o pulo do sapo e o barulho da lagoa – o próprio silêncio. Nesse poema, a foto mostrava uma mulher sentada num banco de praça ao lado de uma sacola de compras :



Domingo
Canto dos passarinhos
Doce que dá pra por no café

(LEMINSKI; PIRES, 1990).


A presença do sujeito dá lugar a uma espécie de rarefação do ser na linguagem. Talvez por isso Leminski tenha considerado o haicai como o melhor meio de expressão do “satori”, uma espécie de momento de iluminação. O satori seria uma das manifestações do neutro.
O “satori” está além do campo da racionalidade e é analisado por Barthes como uma espécie de Insight, “aquilo que não pensamos (...) = o que não está numa continuidade lógica prevista” (BARTHES, 2004, p.240). Logo, o haicai transcende a lógica da cultura ocidental, preocupada com a abstração de conceitos em busca de uma racionalização. O bom haicai seria uma experiência de iluminação – um “satori” – “luz interior da superação dialética dos contrários” (LEMINSKI, 1997, p.89).
Essas informações já bastariam para mostrar que a mesma atenção que Leminski direcionava a mitologia grega poderia ser enfocada também na prática do haicai.
Vendo a poesia como bem mais do que somente palavras, Leminski, na sessão kawa cauim – Desarranjos Florais – de Distraídos Venceremos apresenta o ideograma kawa que sintetizaria para o poeta a experiência do haicai: “o ideograma de kawa, ’rio’, em japonês, pictograma de um fluxo de água corrente sempre me pareceu representar (na vertical) o esquema do haicai, o sangue dos três versos escorrendo na parede da página” (LEMINSKI, 2001, p. 76).
O valor atribuído à cultura oriental pressupõe a disciplina e o rigor de um “samurai”. Leminski, na adolescência, estudou no mosteiro São Bento, em São Paulo. Lá, ele pôde entrar em contato com outras línguas, com a religião, com a literatura clássica e toda a fonte de saber que jorrar dela e, que mais tarde, seria base para a erudição de Catatau. O silêncio do mosteiro serviria de inspiração para o aprimoramento.
A impressão que esse momento causara seria tema de um de seus poemas (2000, p.34):

 (...) a ordem sabe que tudo é santo
a hora a cor a água
o canto o incenso o silêncio
e no interior do mais pequeno
abre-se profundo a flor do mais imenso.

A disciplina praticada no mosteiro se estendeu ao longo de sua vida, pelo menos no que se refere à prática poética: “Trabalho à noite. Todas as noites. A disciplina de um copista beneditino. Até as cinco da manhã. Essas horas da madrugada, quando escrevo as minhas coisas, eu não entregaria por nada”. (LEMINSKI 1999, p. 06).
Esse processo metódico que sempre moveu vários poetas serve como condição para o já citado aprimoramento. Para Barthes (2005a, p.242), grandes escritores foram “animados de uma vontade incessante: vontade de trabalho, de correção, de cópia, exercendo-se em todas as condições possíveis: de saúde, de desconforto, de miséria afetiva, energia verdadeiramente corporal”. Cada um, dentro de sua “teimosia”, estabelece seus horários particulares. Leminski, assim como Flaubert, adormecia geralmente depois das cinco horas da manhã. Essa teimosia, para quem queria que tudo fosse poesia, não escapou à regra:

carrego o peso da lua,
três paixões mal curadas,
um saara de páginas,
essa infinita madrugada:
viver de noite
me fez senhor do fogo
A vocês, eu deixo o sono.
O sonho, não.
Esse, eu mesmo carrego

                              (LEMINSKI, 2001, p.40)


5 tentando fotografar uma conclusão


A caminho de um quase-método, a tentativa aqui é de abandonar, pelo menos provisoriamente, as questões históricas e culturais, para perceber aquele lugar onde poemas e fotos se transformam em poesia. Em Quarenta clics, várias fotos que podem surpreender devido a sua capacidade de mostrar as chagas sociais, mas é somente interagindo com o poema que surge aquela faísca citada por Leminski.
O exercício de deixar de lado a cultura, a história, permite que, mesmo momentaneamente, as páginas avulsas possam ser experimentadas em si mesmas. 
O que permite abandonar o olhar técnico sobre a fotografia é justamente o “sentimento”: “(...) vejo, sinto, portanto noto, olho e penso” (BARTHES, 1984, p. 39). E é esse olhar que se estende aqui. O pensamento sobre a foto e o poema não pode ser analisado sem olhar para o motivo da escolha: “gostei dessa foto e não aquela”. Essa escolha, portanto, não está distante do sentimento que elas podem provocar. 
Uma marca que pode chamar a atenção numa cena captada pela experiência de um fotógrafo que mira todos os horizontes possíveis e que serão captados pela máquina é justamente a espontaneidade do cotidiano, fruto talvez de um “satori urbano”. É aquela situação que é captada inocentemente pelo fotógrafo que chama a atenção de Barthes: “Certos detalhes poderiam me “ferir”. Se não o fazem é sem dúvida porque foram colocados lá intencionalmente pelo fotógrafo” (BARTHES, 1984, p. 75).
O interessante entre esse misturar poemas e fotos, que acontece de uma maneira quase mística, é o elo criado entre o mundo da foto e o mundo da imagem, pois cada um criou seu texto na solidão de quem não sabe aonde esse trabalho chegaria. As fotos parecem indicar para mim um certo apoio mágico para os poemas e estes parecem interferir em meu olhar sobre a foto, como se o poeta, mesmo sem saber, me assoprasse um sentido. Buscá-lo só pode ser uma aventura.
  

6 REFERÊNCIAS: 


AGAMBEM, G. Il Giorno del Giudizio. Roma: Nottetempo, 2004.
BARTHES, R. A Câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
______ A preparação do romance I. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
______. A preparação do romance II. São Paulo: Martins Fontes, 2005a.
______. Neutro. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
LEMINSKI, P. Anseios Crípticos. Curitiba: Pólo Editorial do Paraná, 1997.
______. DIÁLOGO. In: Série Paranaenses. Curitiba: ed. UFPR, nº 2, 1994.
______. Distraídos Venceremos. São Paulo: Brasiliense, 2001.
______. La vie em close. 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 2000.
LEMINSKI, P.; BONVICINO, R. Envie meu Dicionário. Cartas e alguma crítica. 2. ed. São Paulo: editora 34, 1999.
LEMINSKI, P.; PIRES, J. Quarenta clics Curitiba. 2 ed. Curitiba: Etcétera, 1990.
POUND, E. ABC da Literatura. São Paulo, Cultrix, 1970.
VAZ, T. Paulo Leminski – o bandido que sabia Latim. Rio de Janeiro: Record, 2001.


[1] A primeira edição do livro é de 1976, contando com apenas 300 exemplares. A segunda edição é de 1990 e patrocinada pela Secretaria de Estado da Cultura do Paraná. 
[2] Influenciado por Ezra Pound, Leminski defendia que a vanguarda não se incompatibiliza com o velho, mas sim tem melhores possibilidades de mostrar o que ela tem de novo (1999, p. 63). Advém dessa perspectiva a noção de Paideuma. Ezra Pound, em ABC da Literatura (1970, p. 32), afirma que a literatura é “linguagem carregada de significado”. Para ele, a literatura não existe no vácuo: “os bons escritores são aquêles que mantêm a linguagem eficiente” (1970, p. 36). O conceito de “paideuma”, enfocado como uma tradição revisitada, pode ser mais facilmente compreendido se associado com algumas das classes de pessoas que buscam “elementos puros”, trabalhadas pelo teórico. Ele as classifica em: inventores, aqueles que descobriram um processo de criação; os mestres, que combinam um certo número de processos; os diluidores, que vieram depois dos dois primeiros e são capazes de realizar bem o processo; os bons escritores sem qualidades salientes; os beletristas que realmente não inventaram nada, mas se especializaram na arte de escrever; e os lançadores de moda, que, para Pound, são incapazes de ordenar o seu conhecimento sobre a arte. Enfocando a importância de alguns autores clássicos, Pound passa a ser bastante revisitado pelos poetas que integraram o concretismo. A valorização do conceito de paideuma demonstra que os concretistas estavam muito preocupados com a questão histórica. Essas posições se delineiam como um subsídio teórico no pensamento de Leminski sobre a produção literária. Na década de 70, Leminski começa a defender o abandono da preocupação com o Paideuma, é o que pode ser observado em Envie meu Dicionário (1999).
[3] As imagens gravadas em daguerreótipo não registravam as pessoas em movimento. Era necessário que o fotografado ficasse em repouso para que sua imagem pudesse ser gravada.
[4] Em A câmara clara, Barthes não desenvolve uma análise profunda entre a relação haicai-fotografia, limitando-se a fazer alguns comentários. No entanto, algumas das idéias presentes na aula do dia 17 de fevereiro foram prolongadas no livro, como sua meditação sobre o tempo, o desvanecimento das formas e a cintilação de algumas fantasias (BARTHES, 2005, p. XVII). 

 "Quarenta Clics em Curitiba: entre a poesia e a fotografia, o Dia do Juízo", publicado originalmente em "FACE em Revista", nº9, em 2006)

Nenhum comentário: