segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Darcy e Berta: O diário como carta de amor




No prefácio de "Diários Índios", livro que reúne os escritos produzidos durante duas expedições à tribo dos Urubus-Kaapor (1949-1951), Darcy Ribeiro escreve uma de suas mais comoventes páginas. Confessa serem as páginas do diário escritas como uma carta a sua mulher na época, Berta. Tratava-se, segundo ele, da carta de amor mais longa que já se escreveu. Os diários, publicados nos anos noventa, marcavam um tempo não só de reconciliação entre marido e mulher, mas também da decadência de seus corpos, abatidos pelo câncer. A forma de como Darcy tratou o assunto é comovente no que tem de trágica, logo triste mas afirmativa diante da vida:
"Então, no tempo deste diário, éramos jovens ou apenas maduros. Envelhecemos depois, uma pena. Saltamos já a barreira dos setenta. Ao fim, fomos atingidos por dois tiros: câncer. Estamos ambos lutando, cada qual contra o seu. O de Berta a pegou na cabeça, justamente na área da fala. Não pôde ser extirpado, porque ela perderia a memória e o ser. Viveria um vegetal em coma perpétuo. Mas aguenta bem. Voltamos até a namorar, depois de vinte anos de separação. Eu a beijo na boca e prometo casar de novo com ela. Meu câncer, o segundo que tenho, é melhorzinho. Salvei-me do primeiro vinte anos atrás, arrancando o pulmão descartável e jogando fora. Agora, tenho câncer de próstata. Lamentavelmente, quando descobrimos, já tinha dado metástase, carunchando minha caveira. Não podia ser operado. O tratamento é pior do que a doença. Tão ruim que me fez internar numa UTI, onde morreria se não fugisse. Berta e eu mantemos o riso atarraxado na cara e os corações abertos às alegrias alcançáveis. Tudo bem"
Nas fotos: Darcy Ribeiro, os índios Urubus-Kaapor, e Berta

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