terça-feira, 17 de novembro de 2009

Tempos de lama e monstros



Omar Calabrese, no livro “A Idade Neobarroca”, defende a tese de que muitos dos importantes fenômenos da cultura do nosso tempo são marcas de uma forma interna específica que pode trazer à mente o barroco. É claro que nunca entramos duas vezes no mesmo rio, como nos dizia o filósofo Heráclito. No entanto, acreditamos que as formas do barroco ainda podem ser equacionadas como problema. Severo Sarduy define o barroco não só como um período específico da história da cultura, mas como uma atitude generalizada e uma qualidade formal dos objetos que o exprimem; “nesse sentido pode haver barroco em qualquer época da civilização”. Calabrese entende esse movimento como categorizações que “excitam” fortemente a ordenação do sistema e que o desestabilizam em algumas partes, que o submetem a turbulências e flutuações e que o suspendem quanto à resolubilidade dos valores. São essas turbulências que nos interessam aqui, especificamente.
Entendido como arte do exagero, do excesso, o barroco deve ser lido também como arte do artifício. Uma das características do neobarroco, que opera a partir da repetição e da diferença do movimento do século XVII é o renascimento da figura do monstro. Calabrese parte de um dado real: “Nos últimos anos, temos assistido, e continuamos a assistir, à criação de universos fantásticos que pululam de monstros. Cinema, televisão, literatura, publicidade, música, têm-nos fornecido uma impressionante galeria de exemplares, embora assaz diversos entre si”. Pensem nos filmes A Coisa, Alien, Poltergeist, Ghostbusters, e Thriller, videoclipe da canção homônima de Michael Jackson, sem contar nos variados trabalhos de Stephen King. Todos eles recheados de monstros que representam não só o sobrenatural, mas o maravilhoso.
Lembremos que a palavra monstro etimologicamente vem do latim, do verbo monstrare, que quer dizer mostrar, indicar, designar, mas também dar a saber, dar a conhecer e expor, contar, referir, relatar, expor à vista, representar etc. Nota-se, então, que a palavra está totalmente ligada à imagem, que é imago, imitago, imitação. E se os tempos contemporâneos são tempos de imagem, são também tempos de monstros. Tempos de irregularidade e desmesura. Ou seja, um tempo neobarroco. A literatura não está imune a esses monstros.

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Na semana passada, na 3ª Feira Municipal do Livro, promovida pela Fundação Municipal de Cultura de União da Vitória, foi lançada a revista “Lama”, editada por Fabiano Vianna. No evento, Fabiano falou sobre a confecção do periódico, bem como sobre a paixão pelo universo pulp que influenciou a gestação da revista. Segundo o editorial, as revistas pulp, ou pulp fictions (quem não lembra do clássico de Tarantino?) foram publicadas primeiramente nos Estados Unidos entre as décadas de 1920 e 1950, e eram assim chamadas por serem impressas em papel vagabundo por alguns centavos: “as pulps eram um tipo de entretenimento rápido, sem grandes pretensões literárias, mas que faziam a alegria dos fãs do gênero. O leitores acompanhavam a trama, ansiosos pelos próximos capítulos”. A proposta da revista, que se insere numa vasta linhagem de revistas literárias produzidas no Paraná, é instigar a produção de uma literatura pulp brasileira: “Criaturas, psicopatas, vampiros, detetives. Todos estão presentes. Do terror ao suspense. Do realismo fantástico ao horror inimaginável”. Basta pensar na primeira composição que integra a revista, uma fotonovela intitulada “17 e 30 já é noite em Curitiba”, de Fabiano Vianna, em que uma prostituta é assassinada brutalmente por um serial killer, ou o conto “Dr. Hannibal apaixonado”, um dos melhores da revista, de Luiz Felipe Leprevost, em que o narrador sanguinário descreve o amor por Clarice, uma jovem por ele assassinada: “Olha, o abajur ilumina ainda o dia em que Clarice pôs os pezinhos pela primeira vez nessa casa e eu os decepei”. É claro que a monstruosidade apresentada aqui possui uma dimensão política muito forte, mesmo que inconsciente. Uma realidade abjeta que se materializa no literário. A maioria dos textos são de escritores amadores, o que demonstra que a intenção do periódico não é consignar autores renomados, mas revelar novos talentos. O gênero pulp, que geralmente é tratado pejorativamente como menor pelos críticos literários, é explorado com destreza e criatividade pela revista. Nesse sentido, “Lama” aproxima-se das experimentações literárias de colagem desenvolvidas por Valêncio Xavier, aliás, escritor muito apreciado pelo editor. Gostaria de chamar a atenção para o requinte gráfico da publicação, o que é tradição no Paraná desde as revistas simbolistas do final do século XIX. Aliás, há um pequeno detalhe em “Lama” que faz lembrar as revistas simbolistas. Na capa, sobreposta ao título que simula um sangue escorrendo pela parede, aparece uma pequena caveira, imagem fartamente explorada pelos poetas finisseculares. Lembremos que a capa da revista Pallium, lançada em Curitiba em 1898, apresentava também uma caveira, funcionando como um pingo do i. Se de um lado a caveira representa a natureza petrificada da morte, a decadência, por outro, representa o surgimento de algo novo, uma nova realidade. Walter Benjamin dizia que a decadência não implica necessariamente numa desaparição, mas sim no surgimento de alguma coisa que ainda não conseguimos definir. Esse “algo”, aqui, é Lama, uma lama neobarroca, barrocodélica, para usar uma expressão de Haroldo de Campos. Saúdo sua aparição e aproveito para parabenizar a iniciativa da Fundação Municipal de Cultura de União da Vitória, em promover acontecimentos literários como esse.
(publicado originalmente no Jornal Caiçara, de União da Vitória, 20 de novembro, 2009).

c.moreira

O ADEUS A LÉVI-STRAUSS



O pintor Paul Gauguin amou a luz da Baía de Guanabara
O compositor Cole Porter adorou as luzes na noite dela
A Baía de Guanabara
O antropólogo Claude Lévi-Strauss detestou a Baía de Guanabara:
Pareceu-lhe uma boca banguela.
E eu, menos a conhecera mais a amara?
Sou cego de tanto vê-la, de tanto tê-la estrela
O que é uma coisa bela?
O amor é cego
Ray Charles é cego
Stevie Wonder é cego
E o albino Hermeto não enxerga mesmo muito bem (...)


Caetano Veloso, em O Estrangeiro, música que integra o disco que leva o mesmo nome, cuja capa é a reprodução de uma pintura de Hélio Eichbauer para o cenário da peça de Oswald de Andrade O Rei da Vela na montagem do Teatro Oficina, em São Paulo,1967.

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Caetano Veloso, que há muito tempo vem se interessando em debater questões relativas à nação, apresentou Lévi-Strauss como personagem na música “O Estrangeiro”. Chamou a sua atenção o fato de o antropólogo não ter simpatizado com a Baía de Guanabara. O francês reaparece, mesmo que implicitamente, na música “Um índio”. O verso “num claro instante” foi extraído ipsis litteris da edição brasileira de Tristes Trópicos. Mas o fato é que a figura de Lévi-Strauss, ou melhor, de sua obra, no bojo do pensamento estrangeiro sobre o Brasil é uma constante na obra não só do tropicalista, mas de vários intelectuais. Em novembro de 1993, Caetano proferiu uma conferência no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro intitulada “Diferentemente dos americanos do norte” (No mesmo ano, a revista Veja - 16 de junho de 1993 - realizou uma matéria sobre o pai do estruturalismo. Nela, publicou fragmentos de uma entrevista em que ele observava de maneira pessimista as transformações sociais lembrando que chegaria o dia, e ele estaria próximo, em que os antropólogos serviriam de “tema de estudo para os índios que andam de carro e avião”. A matéria observa que a moda estruturalista passara. Sua vertente marxista não ressoava mais, e seu arauto, Louis Althusser, morrera louco. Seu veio psicanalista “esfacelara-se em mil igrejinhas já antes da morte de seu xamã, Jacques Lacan”. Restara Lévi-Strauss, pelo menos até essa semana). A conferência de Caetano foi publicada integralmente no livro O mundo não é chato, e também em uma versão reduzida, sob o título “Utopia Z”, na Folha de São Paulo, no suplemento Caderno Livros, em 1994. Em uma das passagens da conferência, Caetano levanta uma breve reflexão acerca da visão pessimista dos estrangeiros sobre o Brasil. Lembra de Contardo Calligaris, que, tendo se apaixonado pelo país, escreveu um “livro devastador das nossas possíveis esperanças”, em que vê nas projeções dos poetas populares da Bahia o nosso possível único esboço de um projeto de identidade e nacionalidade. Nesse contexto, Caetano enxerga no tropicalismo a regeneração do mercado de música popular no Brasil e a elevação do nível intelectual de sua produção e sua crítica, a outro tipo de diálogo com os estrangeiros. Lévi-Strauss reaparece na conferência. Caetano lembra que o antropólogo fez um retrato desalentador da vida intelectual brasileira. Em uma das passagens de Tristes Trópicos, sobre São Paulo, afirmou que no contato com seus alunos da então inaugurada USP, aprendeu, vendo-os “Transpor em poucos anos uma diferença intelectual que se poderia supor da ordem de muitas décadas, como morrem e como nascem as sociedades”. Aliás, nessa época, falo dos anos 30, depois de aceitar o convite de Célestin Bouglê para lecionar sociologia na USP e antes de voltar para a Europa em 1939, Lévi-Strauss vem para o Brasil e faz amizades importantes. Basta citar Mário de Andrade e Oswald de Andrade. A sua comunicação com os modernistas foi profícua. Segundo Fernanda Peixoto, “é Mário quem atrai o casal Claude e Dina Lévi-Strauss para os projetos culturais e científicos implementados em sua gestão (Mário dirigia entre 1935 e 1938 o Departamento de Cultura de São Paulo). Aliás, é a municipalidade de São Paulo, por meio do poeta, uma das financiadoras da expedição de Lévi-Strauss ao Brasil central, realizada em 1937 e 1938” (Folha de São Paulo, 22 de maio de 2005). Durante a expedição, Mário e o antropólogo trocam correspondência. Numa delas, Lévi-Strauss confessa que as condições materiais da expedição eram duras. Em outra, agradece ao material enviado por Mário – livro e ensaio, afirmando que o autor de Macunaíma permitiu que ele se aproximasse de mais um aspecto do Brasil, a música: “Sou-lhe mil vezes grato”. Na carta de 17 de janeiro de 1938, observa que os nambiquara exibiam uma nudez agressiva, o que era uma pena, pois “seus corpos não são bonitos”. E por aí vai.


Em Verdade Tropical, o fantasma do francês também aparece algumas vezes para confirmar o interesse de Caetano por seu pensamento. Mas se no primeiro momento Lévi-Strauss se decepciona com o que encontra nos trópicos, querendo talvez voltar logo para a sua terra natal, por outro, o país o faz repensar toda a sua postura como etnólogo europeu. Relembremos uma das cartas que trocou com Mário em 38: “Quanto à viagem, foi longa e difícil. Mas jamais esquecerei esses oito meses, repletos de experiências apaixonantes. Em termos científicos, creio que recolhemos um belo material, e muita coisa nova. O suficiente para alterar profundamente os conhecimentos atuais. Sinceramente, penso que a expedição marcará época”. Daí um otimismo até aparece para marcar presença. Em uma das passagens finais de Tristes Trópicos, afirma que o indivíduo não está sozinho no grupo e cada sociedade não está sozinha entre outras, o homem não está sozinho no universo: “Quando o arco-íris das culturas humanas tiver terminado de se abismar no vazio aberto por nossa fúria; enquanto estivermos aqui e existir um mundo, esse arco tênue que nos liga ao inacessível permanecerá, mostrando o caminho contrário ao de nossa escravidão, e cuja contemplação proporciona ao homem, ainda que este não o percorra, o único favor que ele possa merecer: suspender a marcha, conter o impulso que o obriga a tapar, uma após outra, as rachaduras abertas no muro da necessidade e a concluir a sua obra ao mesmo tempo em que fecha a sua prisão”. O estilo literário do livro só confirma o que o etnólogo defendeu algumas vezes: a idéia de que Tristes Trópicos surgiu em parte em um estado de raiva. Raiva de si mesmo. Sem perceber, ele cedia ao desejo de fazer uma obra literária.


A morte de um dos últimos grandes intelectuais do século XX (Ser tratado como um clássico e ser classificado entre os maiores pensadores do nosso tempo o comovia, mas ao mesmo tempo o incomodava e o irritava) não apaga o seu pensamento, que deixou rastros fortes nas ciências humanas em geral. Tristes Trópicos, publicado pela primeira vez em Paris, pela editora Plon, em 1955, continua sendo um dos principais livros de antropologia do século XX.
Jacques Derrida, que era um exímio leitor de Lévi-Strauss, soube “jogar” com seu o pensamento estruturalista, desconstruindo-o. O filósofo da différance, em um dos textos que integram A escritura e a diferença, lembra que em La Pensée sauvage, Lévi-Strauss apresenta com o nome de bricoleur aquele que utiliza “os meios à mão”, isto é, “os instrumentos que encontra à sua disposição em torno de si, que já estão ali, que não foram especialmente concebidos para a operação na qual vão servir e à qual procuramos, por tentativas várias, adaptá-los, não hesitando em trocá-los cada vez que isso parece necessário, em experimentar vários ao mesmo tempo, mesmo se a sua origem e a sua forma são heterogêneas”. Derrida lembra que o termo bricolagem foi associado ao princípio de escritura da crítica literária. No entanto, vai mais longe. Para ele, toda a operação de texto é uma operação de bricolagem, pois nenhum sujeito é a origem absoluta do seu próprio discurso. A bricolagem estaria para a noção de procedimento, tal como Aira desenvolve em seus romances e “teoriza” em Pequeno Manual de Procedimentos. Ready-made como procedimento e bricolagem. Nesse sentido, o próprio Tristes Trópicos vai mais longe. Não se trata apenas de um relato, mas de procedimentos de leitura, desenvolvidos a partir do contato com o outro – que é ele próprio. Somos estranhos para nós mesmos. Acender uma vela para o estruturalismo, rezar para Saussure, por mais estranho que pareça, foi uma forma de desmontar o discurso tradicional das ciências humanas. As reflexões de Lévi-Strauss sobre o poder da escrita em comunidades selvagens foram mote para Derrida desenvolver seus argumentos de Gramatologia, obra fundamental do teórico franco-argelino. Derrida faz um elogio a Lévi-Strauss no texto “A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas”. Observa que La Pensée sauvage é o momento em que o seu discurso sobre o mito se reflete e se critica a si próprio. Mas qual seria, assim, a virtude mitopoética da bricolagem? O desconstrutor responde: “Efetivamente, o que parece mais sedutor nesta pesquisa crítica de um novo estatuto é o abandono declarado e toda referência a um centro, a um sujeito, a uma referência privilegiada, a uma origem ou a uma arquia absoluta. Em Gramatologia, Derrida lembra das páginas que o antropólogo escreveu sobre a escritura: “Poucas páginas, sem dúvida, mas notáveis sob vários aspectos: belíssimas e feitas para espantar, enunciando na forma do paradoxo e da modernidade o anátema que o Ocidente obstinadamente retomou, a exclusão pela qual ele se constituiu e se reconheceu, desde Fedro até o Curso de Lingüística Geral.


Lévi-Strauss, que fez sobreviver o pensamento primordial de Rousseau, de certa forma, perpetuou certas concepções de linguagem que remontam a Platão, no que se refere à violência da escritura. Os Nambiquara que não escrevem são considerados bons, puros. Possuem um poder fantástico de mnemotécnica. O antropólogo, numa das passagens dos seus estudos, lembra de um índio que para exercer poder sobre os outros, fingia que sabia ler. Daí poderíamos supor a crítica endereçada aos jesuítas, que através da escrita, teriam violentado esses bons selvagens. Derrida percebera que o campo da fala não-escrita também deveria ser tratado como escritura, o que colocaria em xeque certas noções platônicas: “Isso quer dizer que, se é preciso ligar a violência à escritura, a escritura aparece bem antes da escritura no sentido estrito: já na diferência ou na arquiescritura que abre a própria fala”. Neutraliza-se assim a fronteira entre os povos dotados de escritura e os povos desprovidos de escritura. Derrida não destrói Lévi-Strauss. Pelo contrário, desconstrói o seu sistema, ou seja, percorre suas linhas até chegar a um ponto nevrálgico. Lá, inverte-o, reinventa-o. As oposições são questionadas pelo filósofo, portanto é comum encontrar abraços e socos aos longo das referências a Lévi-Strauss. Minha hipótese (a de um humilde e reles leitor que se considera um simples aprendiz) é a de que se Lévi-Strauss é o pai do estruturalismo (Saussure seria o seu avô e Hjelmlev seu padrasto), Derrida é o pai do pós-estruturalismo (estranho chamar Derrida de pai, tendo em vista toda a sua crítica em relação ao PAI FUNDADOR (Ver a Farmácia de Platão). No entanto, não podemos desconsiderar que o pós-estruturalismo não destrói o estruturalismo. Desconstruir, para usar uma explicação de Derrida, “significa” pensar a genealogia estrutural de seus conceitos “de maneira mais fiel, mais interior, mas, ao mesmo tempo, a partir de um certo exterior, por ela inqualificável, inominável, determinar aquilo que essa história foi capaz – ao se fazer história por meio dessa repressão, de algum modo, interessada – de dissimular ou interditar”. Em outras palavras, RELER. Ora, reler não é uma das mais bonitas formas de render homenagem? Então, digam o que disserem, que o estruturalismo já morreu, e Lévi-Strauss continuará suscitando uma série de questões fundamentais não só no âmbito da antropologia, mas da lingüística, da literatura, da filosofia, entre outras áreas. E para não perder a poesia: Imagino que os pais do etnólogo, vendo o filho embarcar para o Brasil em 1934, desejaram-lhe boa viagem. Agora, alguns dias depois de sua morte, resta-me dizer: Boa Viagem! A essa hora, ele deve estar em alguma tribo do vasto universo, sentado ao lado de Foucault, Lacan e Barthes, tal como aparece no desenho de Maurice Henry. Todos vestindo uma bela tanga e discutindo as estruturas elementares de parentesco. Lacan, é claro, com gravata borboleta.


c.moreira