domingo, 25 de fevereiro de 2018

A praia como um convite ao devaneio poético



Em tempos de verão, calor e praia, nada como colocar entre nossos (in)utensílios de viagem um bom livro para companhia nas horas de pura vadiagem ou momentos íntimos de solidão. Uma boa literatura nos convida ao contato com o outro quando estamos sozinhos, ao passo que nos permite um mergulho nesse mar que somos cada um de nós, proporcionando uma forma de deixar-nos a sós em meio à algaravia do mundo. Nessa temporada, para quem vai ou já voltou da praia, ou não foi nem irá, vale a pena pisar nas areias do livro de ensaios “A vida descalço” (Cosac Naify, 2013), de Alan Pauls, traduzido por Josely Vianna Baptista. O autor é uma das referências da atual literatura argentina, já tendo publicado no Brasil romances como “O Passado”, que foi adaptado para o cinema por Hector Babenco, bem como a bela trilogia sobre os anos 70, “História do pranto”, “História do Cabelo” e “História do dinheiro”, que foge do lugar comum do revisionismo dos anos de chumbo, promovendo uma singular experiência literária e afetiva.


“A vida descalço” apresenta ensaios que têm a praia como tema e referência. Até aí nada de muito interessante. No entanto, as imagens do livro, postas em movimento, produzem uma constelação que faz de sua escrita um bem armado quebra-cabeça cultural. Alan Pauls, em seus longos parágrafos, estabelece relações curiosas entre objetos variados. Praia, corpo, erotismo, pele, beleza grupal, desejo, literatura e cinema geram signos que inusitadamente se expandem à medida que são postos em contato. A geografia da praia é a geografia do branco, da virgindade, da nudez e é justamente devido a essa pureza que ela nos convida a “reescrituras variadas”. Cada um enxerga no mar o que deseja. Essa parece ser a lógica do ensaio também, gênero que se oferece sempre como uma escrita livre e imaginativa. E explorar poeticamente um tema é uma forma, não só de expandi-lo, mas também de colocá-lo em rede. Tal escrita faz lembrar por vezes o ensaísmo de Roland Barthes.

Alan Pauls na praia de Copacabana

As referências do livro vão desde o “Tubarão” (Steven Spielberg) até “À praia” (Danny Boyle), passando pelo cinema de Fellini, Antonioni, Rodolfo Kuhn e Zinnemann. A cena clássica do beijo entre Burt Lancaster e Deborah Kerr na praia de “A um passo da eternidade” é evocada, bem como os protetores solares da Nívea e da Copertone. Pauls lembra da Roma de Justiniano, o primeiro imperador que regulamentou o “espetáculo do mar e da areia e que proibiu as edificações a menos de trinta metros da costa para proteger as vistas”. Com a queda do Império Romano, a cultura judaico cristã passará a questionar severamente o hedonismo, promovendo uma repressão contra o corpo. A praia passa a ser vista como sintoma de monstruosidade. Essa censura parece sobreviver até os anos 60 e 70 do século vinte quando as roupas de banho deixam de ser tão pudicas e o corpo volta a ser assumido em sua plenitude, a ponto de hoje ficar escondido apenas por poucos centímetros do biquíni. 


Em um dos textos, Pauls relaciona a praia com o reino do sonho e do cinema. O autor observa que sonha-se muito na praia. Isso porque ela é um território livre de imagens: “os sonhos, com suas imagens virtuais, são para a praia o que as miragens são para o deserto: a outra cena de um espaço. (As imagens não podem coexistir com o espaço: só aparecem quando o espaço real se dissipou no sono ou na alucinação)”. Nesse sentido, como sugere em um texto seguinte, se a praia fosse um tela de projeção seria uma tela em branco, “cinema virgem”, que não fascina pelo que irradia, e sim “por todas as imagens que era capaz de suscitar”. Essa liberdade é a mesma que faz com que a praia seja o único espaço público onde, segundo Pauls, “a nudez quase completa não é uma exceção nem uma infração provocadora, e sim um princípio de existência, uma forma de vida, a lei – tácita e unânime, mas não coercitiva – que rege a convivência humana”.


Alan Pauls na infância, na praia

Segundo Pola Oloixarac, Alan Pauls, desafiando os lugares-comuns tanto do pensamento como do prazer, “apresenta a praia como o ambiente de imaginação”. O livro nos conduz “à praia da infância do narrador, às ficções estivais de François Ozon e Eric Rohmer, às areias do Rio de Janeiro dos anos 70, às fantasias ascéticas da antipraia invernal”. Em todos os casos a praia parece produzir um “outro lugar” à margem da vida que costumamos viver.    
Alan Pauls encerra seus ensaios relembrando uma passagem vivida em sua infância quando, doente e impossibilitado de ir à praia, ficara em casa lendo um livro. Para ele, esse livro é o verdadeiro “outro lugar” que tem a forma da felicidade. Segundo o autor, talvez não tenha havido dias em nossa infância “mais plenamente vividos do que aqueles que passamos com o livro pelo qual mais tarde, uma vez que o tenhamos esquecido, estaremos dispostos a sacrificar tudo”. Uma boa praia e um bom livro parecem ser assim o sinônimo da própria felicidade perfeita. Em ambos, a liberdade plena é condição para a própria existência.


Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória, em 23 de fevereiro de 2018

sábado, 10 de fevereiro de 2018

Carnaval, samba, malandros e heróis: coisas nossas




Entrando nos dias de folia carnavalesca, há quem troque a bagunça por um retiro no campo ou aproveite para ler aquele velho livro desejado com direito a pausas para assistir na TV ao desfile da Escola de Samba preferida: Mangueira, Portela, ou Salgueiro (esta, apreciada incondicionalmente pelo meu amigo Jessé), só para citar as mais tradicionais. Eu, evocando aqui os meus tempos de piá, trocaria a Sapucaí por um desfile da “Vai quem quer” ou da “Zé Totó” (extintas e saudosas Escolas de Samba de nossas cidades, cuja lembrança reforça em mim o sentido dessas singelas e autênticas manifestações de nossa cultura popular), que faziam a festa na Avenida Manoel Ribas, com direito a Rei Momo, passistas e carros alegóricos. Onde andam seus ritmistas? Essas reminiscências evocam outras. A memória é uma teia infinita tecida pela aranha do tempo.
Lembro de uma crônica sobre o carnaval escrita por Lima Barreto e publicada em fevereiro de 1920 (mais tarde reunida no livro “Feiras e Mafuás”), na qual o autor lamenta pelas transformações da festa já em seu tempo. O seu aborrecimento era em específico pela falta de inteligência das músicas que circulavam na época durante o evento. Menos preocupado com a “imoralidade” e a “chulice” que apresentavam e mais com o aspecto intelectual e artístico, Lima apontava para cantigas sem nexo algum, nas quais predominava uma “pobreza de pensamento”. Ele se referia a canções como “Fala meu loro”, um partido alto de Sinhô, tradicional compositor carioca. Sabe-se da qualidade musical não só desse baluarte do samba, mas de tantos outros músicos populares da época, possivelmente ainda incompreendidos por Lima Barreto e certamente depreciados por boa parte da cultura oficial.

Sinhô

O autor de “Triste fim de Policarpo Quaresma” valorizou amplamente a cultura popular, mas não conseguiu aprovar com unanimidade a produção musical carnavalesca da época. Isso se deu possivelmente pelo baixo nível de complexidade das letras desse cancioneiro, menos preocupado com a sofisticação estética e mais com o desejo de “cair na boca do povo”, sendo assim facilmente conhecido, memorizado e apreciado. Fico imaginando o que Lima Barreto pensaria do carnaval atual no qual impera o gênero sertanejo universitário e o funk. Os carnavais agora são bem outros e de longe se parecem com os bailes do Clube Aliança ou do Concórdia de vinte ou trinta anos atrás.

Carnaval antigo em Porto União da Vitória

Para quem prefere nesses dias de folia se exilar do “proibidão” (termo que segundo Liliam, minha colega de trabalho, refere-se ao funk carioca) e do sertanejo universitário (nada contra os dois estilos – sou eclético -, mas carnaval é tempo de samba e marchinha), sugiro a leitura do romance “Desde que o samba é samba” (Planeta, 2012), de Paulo Lins.
Ambientado no Rio de Janeiro dos anos 20, e tendo como pano de fundo o surgimento do samba em casas de macumba como a da Tia Ciata, bem como a Praça Onze, o livro retrata a história de um triângulo amoroso entre uma prostituta, Valdirene, um malandro cafetão, Brancura, e um português, Sodré. Misturando realidade e ficção, a obra de Paulo Lins conta com uma narrativa ágil (que beira o cinematográfico), com uma linguagem popular – com direito a expressões típicas da época -, bem como com uma exímia reconstituição geográfica, a do belo Rio antigo.

Foliões no Rio de Janeiro dos anos 20

Silvio Fernandes, vulgo Brancura, por exemplo, existiu e fez parte da Turma do Estácio, grupo de sambistas que foram responsáveis pela criação de uma tradicional escola de samba e pela consolidação de seu gênero musical. Baiaco, Bide, Ismael, entre outros, integraram o grupo, sendo agora transformados em personagens. Modernistas como Mário de Andrade e Manuel Bandeira também. Carmem Miranda, por exemplo, aparece visitando um terreiro de Umbanda, religião que estava se disseminando pela cidade junto com o samba. Segundo Heloísa Buarque de Hollanda, “Desde que o samba é samba” é uma incrível cartografia do mundo da malandragem (e mesmo da violência) nos bairros e morros onde a cultura carioca foi gestada”. 

Deixa Falar (Escola de Samba criada pelo Grupo do Estácio

O livro não se furta de apresentar de forma realista cenas de sexo e violência. Uma das curiosidades do romance é o fato de ter abordado de forma aberta e sem preconceito a homossexualidade de figuras como Ismael Silva e Mário de Andrade, cuja intimidade ainda hoje é tratada com ressalvas por pesquisadores e biógrafos. Lembremos que Paulo Lins escreveu também o romance “Cidade de Deus”, adaptado para o cinema.  

Paulo Lins

Obs: O título deste texto, “Carnaval, samba, malandros e heróis: coisas nossas” é inspirado no livro de crônicas “Coisas Nossas”, de Luiz Antonio Simas – mestre-sala da literatura contemporânea no que se refere à cultura popular carioca, lembrando cronistas como João do Rio e Lima Barreto -, e inspirado também no livro “Carnavais, malandros e heróis”, de Roberto DaMatta, que reflete sobre a essência ou especificidade da sociedade brasileira, tomando a figura do carnaval, dos malandros e dos heróis como criações sociais capazes de explicar ou de pelo menos fornecer um modelo de interpretação para a vida do brasileiro.

Brancura (Silvio Fernandes), personagem do livro

A leitura do livro de crônicas do Simas também é uma boa pedida para o período do carnaval. Cenas carnavalescas do passado, blocos de rua, desfiles, fantasias tropicais, brincadeiras de antigamente, rodas de macumba, quitandas e bares, formam uma “espécie de roteiro sentimental de uma cidade que talvez nunca tenha existido”, como escreveu o autor, mas que certamente vive nele. Bom carnaval a todos!   

Publicado originalmente no jornal Caiçara, em União da Vitória, 16 de fevereiro de 2018  

sábado, 3 de fevereiro de 2018

A visita de Che Guevara a Curitiba nos anos 60



Em 1966, antes de viajar para a Bolívia onde foi assassinado em seu projeto revolucionário, Che Guevara passou alguns dias em Curitiba e no norte do Paraná. Durante suas andanças pelo Estado, o guerrilheiro, que já estava se transformando em mito, carregou consigo uma Bíblia na qual teceu anotações cujo conteúdo nos é desconhecido. A revelação é no mínimo curiosa, já que o líder era um socialista convicto. Décadas depois, o livro se transformaria em objeto de procura e de culto entre ex-militantes da esquerda e colecionadores de obras raras.
A visita de Guevara, que nunca foi confirmada oficialmente, é mote para o enredo do romance “A Bíblia do Che” (Companhia das Letras, 2016), de Miguel Sanches Neto, autor de uma produção literária que nos últimos anos tem caminhado para um alargamento das fronteiras entre a história e a ficção.

Che disfarçado


"1966, sete horas e meia de viagem de São Paulo à Curitiba. O ônibus de Guevara chega atrasado na Rodoviária velha, na João Negrão. Seu contato não o esperava na plataforma conforme combinado. Nos ônibus só se podia fumar cigarros, pensando no que fazer Guevara acende um charuto cubano, com o anel trocado para não denunciar sua origem. Em pé, a maleta entre as pernas, esperou para ver se o contato aparecia. De terno e gravata, óculos, sem barba, e com os cabelos tingidos esbranquiçados mais parecia um pacato burguês de meia idade do que o jovem e temido guerrilheiro"

(Valêncio Xavier, Gazeta do Povo, 09 de março de 1997)

Em “Um amor anarquista”, por exemplo, o autor recria um triângulo amoroso entre moradores da Colônia Cecília (Palmeira-PR), que foi uma primeira tentativa de comunidade anarquista no Brasil do final do século XIX. Em “Chá das 5 com o vampiro”, são reveladas as intimidades do escritor Geraldo Trentini, uma alusão ao escritor Dalton Trevisan, que fora amigo de Miguel. O livro rendeu uma série de polêmicas, e inclusive uma possível resposta do “vampiro”, em um texto ácido que integra uma de suas publicações. O romance trata, em certo sentido, das vaidades que acompanham os literatos no mundo das letras. Em “A máquina de madeira”, narra-se a trajetória do Padre Francisco João de Azevedo, precursor na invenção da máquina de escrever. A narrativa é pretexto para o autor refletir sobre a formação da identidade de nosso país e sobre os processos de modernização no final do século XIX. Em “A segunda pátria”, reconstitui-se a cidade de Blumenau durante o advento da Segunda Grande Guerra. O protagonista, Adolpho Ventura, é um negro que sofre com o racismo e a ascensão do nazismo em Santa Catarina. Em uma das passagens mais curiosas do livro, Hitler visita o Brasil, episódio que permite a Sanches Neto, na liberdade da ficção, inscrever novos sentidos para uma história tal qual poderia ter sido, como faz Tarantino em “Bastardos Inglórios”.

Miguel Sanches Neto

Em todos esses romances percebe-se uma tendência à metaficção historiográfica, um conceito criado e discutido por Linda Hutcheon que pode ser encontrado em obras que tencionam os limites entre a literatura e a história, misturando assim realidade e ficção, o que vemos com recorrência na obra, por exemplo, de Jô Soares. É o que acontece também em “A bíblia do Che”.
O episódio que dá origem ao livro pode não ser verídico, mas é verossímil (documentos oficiais chegaram a abordar a viagem de Che ao Paraná em plena ditadura militar), e tem alimentado o nosso imaginário. Miguel Sanches Neto não foi o primeiro a escrever literariamente sobre o assunto. Em 2003, Valêncio Xavier publicou na “Folha de São Paulo” um conto (aliás, apresentado anteriormente na Gazeta do Povo nos anos 90) que tem como tema a mesma visita secreta. Valêncio, que também era cineasta, sonhava em filmar o argumento. 
“A bíblia do Che” tem como narrador um personagem já conhecido de Miguel, que já aparece no romance “A primeira mulher” (Record, 2008), o professor Carlos Eduardo Pessoa. Alguns anos depois de sua primeira aparição, Pessoa, agora ex-professor, vive recluso em uma sala comercial do edifício Asa, no centro de Curitiba e é convidado a uma nova aventura, envolvendo a procura da Bíblia do Che em meio a uma trama policialesca que conta com empresários corruptos e várias perseguições.
O protagonista envolve-se com Celina, a jovem e sonhadora viúva de um lobista envolvido em um esquema de desvio de verbas de empresas estatais em uma rede de corrupção que integra uma série de partidos. Antes de sua morte misteriosa, o lobista passa a ser investigado em uma megaoperação. Qualquer relação com a Lava Jato não é mera coincidência. À medida que Carlos Eduardo Pessoa procura a Bíblia, uma relíquia, investiga a morte de Jacinto Paes, o lobista que o contratou para encontrá-la.
Celina passa a ser perseguida pelos possíveis assassinos de seu marido e a narrativa acaba migrando para a Bolívia, na localidade onde Che viveu seus últimos dias. Mais do que isso é bom não adiantar. Celina é peça-chave.




Che morto na Bolívia (1967) e "O Cristo morto", de Andre Mantegna (séc. XV)
O mito se consolida


Miguel Sanches Neto se inspira na política contemporânea, bem como na crise da esquerda, para refletir também sobre as ruínas de uma série de ideais revolucionários que não morreram, mas que religiosamente parecem agonizar, enquanto procuram sobreviver em tempos de crise.

Texto publicado originalmente no jornal Caiçara (União da Vitória PR) em 03 de fevereiro de 2018.