Falemos sobre o personagem-monstro Occam, do livro Catatau, de Paulo Leminski.
A figura polimórfica que assusta Cartésio, o protagonista, assemelha-se a meu ver àquele “pinto monstruoso” lembrado por Marcgravf, na História Naturalis, de onde Paulo Leminski extrai a citação que dá início ao texto. A imagem estranha é descrita com a precisão de um texto seiscentista. O topos idealizado de uma fauna e flora exótica comum no pensamento da época tende a funcionar como ponto de partida para a imaginação desse “fungo” chamado Occam:
"(...) A cabeça, pescoço, ventre, asas, dorso e parte
superior das pernas não eram cobertos de penas mas de pêlos pretos de meio dedo
de comprimento, um pouco claros debaixo do ventre e garganta; em resumo, um
pinto monstruoso. A parte inferior das pernas e os pés eram de cor fusca e bem
assim o bico: as vísceras eram como as da galinha, porém dispostas desordenadamente;
o coração era grande, vivia quando nasceu" (MARCGRAVF in LEMINSKI, 2004,
p.12).
Se Marcgravf é preciso em sua
análise, buscando abordar o fenômeno com o rigor científico, por outro lado, o
excesso dele acaba por transformar sua sistematização numa espécie de “pintura
surrealista”, em que os fatos são tão prováveis quanto a existência de Occam.
Esse tipo de descrição
assemelha-se aos textos dos “escritores de viagem”, entre eles os
pesquisadores, que se propunham a explicar uma realidade antes inédita,
imaginada como portadora de mistérios e monstruosidades que deveriam ser
explicados. Para Sério Buarque de Holanda (1996, p. 224):
"Esse modo de pensar só começa a ser completamente
liquidado a partir do século XVIII, quando o mundo principia a ser interpretado,
de preferência, segundo critérios fornecidos pelas ciências físicas e
matemáticas. Se é bem verdade, porém, que o desenvolvimento das ciências
naturais acabou por desterrar a interpretação moral da natureza, não é menos
exato que a viva impressão causada pelo que corria da pudicícia da sensitiva
deixou sua marca na própria denominação científica ainda conservada até os
nossos dias por essa mimosa".
Nas palavras de Leminski,
Occam não perturba as palavras que lhe seguem: “ele é atraído por qualquer
perturbação, responsável por bruscas mudanças de sentido e temperatura
informacional” (2004, p.271). Outra frase indica: “Occam é um monstro que
habita as profundezas do Loch Ness do texto (...)” (2004, p. 271).
As informações acima
clarificam o ser obscuro que é o monstro. Se ele é um “orixá-azteca-iorubá” que
encarnou num texto seiscentista é bem capaz de trazer um “sabor”, evocando
alguma lembrança daqueles monstros que tanto inspiraram os poetas desde a
antigüidade de Ulisses, chegando à da Idade Média e aos navegadores do
Renascimento, impingidos pelos mistérios do oceano e do Novo Mundo, tão exótico
na visão do homem da época quanto os lugares e personagens das epopéias
clássicas.
O que não se sabe é se o
monstro realmente existiu no cenário de Catatau, ou se foi apenas o
delírio provocado pelas ervas. Esse desconhecimento já deixou de ser um
problema num texto em que tudo é apenas palavra e o monstro, uma exaltação da
linguagem.
A visão de Cartésio
aproxima-se da visão que os europeus tinham antes do descobrimento, imagem
nascida ora da literatura, ora da história: “Bestas, feras entre flores festas
circulam em jaula tripla (...) Animais anormais engendra o equinócio, desleixo
no eixo da terra, desvio das linhas de fato” (LEMINSKI, 2004, p. 14).
Sérgio Buarque de Holanda
lembra que o pensamento europeu, desde a Antiguidade e principalmente na Idade
Média, rendeu-se a visões idealizadas que moldaram o imaginário dos
“descobridores” a respeito das terras desconhecidas:
"O espetáculo, ou a simples notícia de algum
continente mal sabido e que, tal como a cera, se achasse apto a receber
qualquer impressão e assumir qualquer forma, suporta assim, entre muitos deles,
as idealizações mais inflamadas. Idealizações, estas, de que seria como um
“negativo” fotográfico esse nosso mundo entorpecido e incolor, e em que parecia
ganhar atualidade histórica e possibilidade de remissão" (1996, p.
190-191).
Leminski lembra que um dos
fenômenos mais típicos do “delirium tremens” é a zoopsia. (2004, p.275). O
delírio de Cartésio equivale ao de Brás Cubas, que quando em seu leito de morte
delira, imagina um grande hipopótamo, na minha imaginação parecido com aquele
rinoceronte de En la nave va, de Fellini. Só que para um europeu os
bichos do Nordeste de Cartésio são bem mais exóticos como as antas, os
tamanduás, os tatus, as formigas e os bichos-preguiça. A partir do mundo
tropical, Leminski compõe seu bestiário:
"A bicharada, com que começa o Catatau, emblematiza o
pasmo do europeu (esse bestificado), pasmo esse, choque e pânico que os antigos
tinham na conta de fonte do filosofar (até para Aristóteles, o exercício da
reflexão começava por um “thaumazein” / “espantar-se”). Ante esses animais, a
lógica de Descartes vai para o brejo. Cada fera daquelas (...) estropiava uma lei
de Aristóteles, invalidava uma fórmula de Plínio ou de Isidoro de Sevilha" (2004, p.276).
A aproximação do monstro do Catatau com alguns orixás é feita pelo próprio Leminski, que o credencia como uma entidade. Geralmente, essas figuras africanas têm uma característica ambivalente. Ora são bons, ora maus, não comportando uma essência que lhes confira um centro de significação, não deixando, no entanto, de simbolizar a presença do poder por intermédio dos “deuses”.
Se quem perturba o texto é o malin
génie, é ele também que lhe confere a existência, assim como o gênio
maligno inventado por Descartes, que seria a garantia do próprio “cogito”. O
filósofo, ao aportar nas “matas do hemisfério sul”, parece visitar o centro de
macumba da Tia Ciata quando se depara com o próprio texto incorporado na figura
de Occam, o Ogum, Oxum, Egum, Exu, Ogan.
Pierre Verger, que pesquisou
amplamente a cultura iorubá, define bem o significado dessas entidades:
"O orixá seria, em
princípio, um ancestral divinizado, que, em vida, estabelecera vínculos que lhe
garantiam um controle sobre certas forças da natureza, como o trovão, o vento,
as águas doces ou salgadas, ou, então, assegurando-lhe a possibilidade de
exercer certas atividades como a caça, o trabalho com metais ou, ainda,
adquirindo o conhecimento das propriedades das plantas e de sua utilização" (VERGER, 1981, p. 18).
O
personagem perturbador do texto leminskiano, pensado como um orixá do barulho,
assim como Ogum (Ògún) é a personificação da “violência”. Occam herda dele uma
impaciência fundante. A violência de Occam é a violência que o texto produz.
Depois
de passar muitos anos fora de sua terra natal, na localidade de Irê,
participando de guerras, Ogum, o deus do ferro e da guerra, retorna e estranha
que seu povo não mais o reconheça. Sobre esse fato, Pierre Verger observa:
"Ogum, cuja
paciência é pequena, enfureceu-se com o silêncio geral, por ele considerado
ofensivo. Começou a quebrar com golpes de sabre os potes e, logo depois, sem
poder se conter, passou a cortar as cabeças das pessoas mais próximas, até que
seu filho apareceu, oferecendo-lhe as suas comidas prediletas, como cães e
caramujos, feijão regado com azeite-de-dendê e potes de vinho de palma" (VERGER,
1981, p. 86).
Algum
tempo depois, a entidade reflete sobre seus atos de violência, declara que já
vivera bastante[1] e
resolve desaparecer dentro da terra, fazendo um grande barulho. O Ogum-Occam,
de Catatau não chega a matar Cartésio, apenas suas certezas. O deus da
guerra parece legar ao monstro semiótico do romance-pensamento também o gosto
pelo confronto: “Fasfesta, que eu dou a guerra! A guerra é santa, a festa é uma
bosta mixuruca passando por xucra. Guerragosta! Festas na sala vazia, alta e
iluminada: guerra imóvel” (LEMINSKI, 2004, p. 72).
Há uma característica comum à maioria dos orixás. Ela circula entre os elementos da natureza, funcionando como uma referência à terra, ao material, àquilo que nos liga às “raízes”, o que talvez se justifique na ideia de que surgem em tribos. Logo, a presença da floresta nos atributos de tais entidades se mantém no Brasil ou em outros países, onde essa cultura perdurou, devido especificamente ao tráfico de escravos.
Para perceber os vários “sentidos” que Occam possui, cito algumas características do fuzarqueiro, presentes ao longo da narrativa: puro explícito, fungo, fragrábio, macacoinhame, assassino, o implicante, o ajuizado, o bem falante, Eulálio, o grilo velante, ararifeito, o cônscio, o bruxo, espião, o bandido, o desqualificado, Doutor Sutil, o desnorteado, Porfirogeneta, dorminhoco, etc.
Occam poderia ser visto como a figura da morte, talvez até do caos. Com ele, a narrativa, ao perder a sua noção tradicional de ordem, transforma-se – e a noção de transformação é fundamental para entender Occam – em “anti-narrativa”, a narrativa da história que no fundo não conta história nenhuma. Mas procuro ir além, pensando que o confronto de Cartésio com Occam não é apenas o confronto com a morte da narrativa tradicional, aliás já preconizada por James Joyce. Esse confronto assume a impossibilidade de tomar a morte como um valor absoluto, como na capa e na contracapa do Catatau. Morte e vida confundem-se no parque de Friburgo, como no sertão de João Cabral de Melo Neto. Lê-se, agora, a morte como início de uma nova vida, uma fertilidade muito bem representada pela dona das águas, senhora do parto, a sensual Oxum.
O monstro de Catatau herda de Oxum o princípio da fertilidade, pois é responsável pela destruição de uma ordem, e, principalmente, pela maternidade de uma outra. De Osumaré, que é ao mesmo tempo, macho e fêmea, herda o domínio do movimento. Nesse orixá, tudo é repetitivo; nele está presente também o ciclo “vida-morte” e seu símbolo é o da cobra mordendo o próprio rabo. Não podemos esquecer que Occam é um morador da floresta, como Logunedé e Obaluaiyê, dono da terra, aquele que, com sua veste de palha, esconde o segredo da vida e da morte.
Talvez o orixá que mais se pareça com Occam seja Exu. Exu é o senhor dos caminhos. Exu é malandro, esperto, indecente. Pierre Verger observa que no Brasil, como em Cuba, “Exu foi sincretizado como o Diabo. Não inspira, porém, grande terror, pois sabe-se que, quando tratado convenientemente, ele trabalha para o bem (...)” (1981, p. 79). Sendo o senhor dos caminhos, sua força consiste numa espécie de movimento de aproximação e distanciamento. É o orixá responsável por estabelecer uma ligação entre o mundo espiritual e o mundo material, por isso “nada se faz sem ele e sem que oferendas sejam feitas, antes de qualquer outro orixá (...)” (VERGER, 1981, p. 76). Apesar de ser uma entidade, Exu possui uma relação muito maior com a terra, com os homens, e seu caráter dúbio o caracteriza como um elemento contraditório que transita entre o “bom” e o “mau”, o “brincalhão” e o “violento”. Logo seria inconveniente e pouco plausível que esse orixá fosse interpretado como o absoluto, deus ou diabo.
Astuto por natureza, Exu aparece em situações inesperadas, como o Occam, provocador, exigindo cuidados e castigando quem não o presenteia com as oferendas desejadas. O gênio ambivalente de Exu é percebido em Occam, que costumeiramente aparece com seus paradoxos:
(...) Occam, O
implicante! Tem me levado às raias do deslumbre, mas pra cá duns tempos o mesmo
não se faz de aparente: horas procura um quiproqué, cai num solecismo,
satisfeito com qualquer rebus de dúbia raiz: realiza-se em paus, tranca-se em
copas, senta a pua! (LEMINSKI, 2004, p. 187).
Occam, o ajuizado,
descreve uma parábola e cede o terreno ante a iminência dos celícolas,
predadores seus, em nele chegados, caem nas nenhuras legendandas (idem, p.
187).
Verger
(1981, p. 78) expõe alguns louvores tradicionais que demonstram as coisas
extraordinárias que podem ser realizadas por Exu: “Exu faz o erro virar acerto
e o acerto virar erro” ou ainda “Sentado, sua cabeça bate no teto; de pé, não
atinge nem mesmo a altura do fogareiro”.
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