O poeta diz o ver
sexta-feira, 30 de abril de 2021
Para Gullar, quando fez 90 anos
Iemanjá
Dedicado à memória de Mãe Giselle Cossard
Dona de muitos filhos,
Peixes e nomes,
Janaína, Iamassê,
Dandalunda, Inaiê,
Asagba ou Sobá,
Mucunã, Oguntê,
Princesa de Aiocá,
De olhos azuis,
Serena e francesa
É Omindarewá
Ela é quem pesca o pescador
De Ondina a Amaralina
Do Pontal ao Arpoador
Mora nas águas fundas e grandes
Mora na beira do cais ou da praia
E na água salgada
Que rola em meu rosto
Lavando minh'alma
Molhando meu olhar!
c.moreira
Imagem: Iemanjá na casa de Jorge Amado
Bleu
quarta-feira, 21 de abril de 2021
Moacir
segunda-feira, 19 de abril de 2021
O fabuloso destino, a incrível jornada e as admiráveis façanhas de Félix Carbajal
Cresci ouvindo da
minha família a história de um tal Carbajal, um senhor andarilho que certo dia
bateu na porta da casa de meu avô pedindo comida e pouso. O homem tinha um
sotaque espanhol, chamando assim a atenção da família que, vivendo no interior
de Santa Catarina, não estava acostumada com visitantes estrangeiros. Aconteceu
entre 1978 e 1979. Nessa época, a rua Santos Dumont, em Porto União (SC), onde estava localizada a
ampla casa de madeira do meu avô, ao lado de uma Igreja Batista, ainda não tinha calçamento. Dela, podia ser
avistada a Avenida dos Ferroviários, naquele tempo quase deserta, com poucas
construções e ainda não asfaltada.
O misterioso visitante foi recolhido na casa, onde ficou hospedado por aproximadamente um mês. Ele vinha com a insígnia de palestrante, interessado em proferir conferências nas faculdades locais. Durante o período em que ficou instalado na casa do meu avô, o tal Carbajal construiu um relógio solar de madeira, o que por si só já bastava para meus tios considerarem o sujeito além de estranho um doido. Minha mãe recorda que antes de confeccionar o instrumento artesanal de medição do tempo, Carbajal improvisou um outro relógio com pedaços de pau em cima do muro. E todos ficaram impressionados com a sombra escrevendo as horas do dia na superfície do cimento. Minha mãe lembra ainda que o estrangeiro adorava contar histórias, e eu fico pensando que figuras como Carbajal só poderiam existir mesmo em livros de Gabriel Garcia Márquez. Lembro de uma figura como Melquíades, o cigano de “Cem Anos de Solidão”, que se instala em Macondo, trazendo aos habitantes da comunidade notícias do mundo. O forasteiro, corpulento, de barba rude e mãos de pardal, foi quem apresentou o imã para o povoado da cidade, fazendo as pessoas se surpreenderem com o gigante pedaço de metal que atraía tachos, tenazes, pregos, parafusos e fogareiros. Esta personagem, meio bruxo meio mágico, dizia que “as coisas têm vida própria”, “tudo é questão de despertar a sua alma”. Carbajal era Melquíades, e Porto União, a nossa Macondo. Um certo dia, do nada, o visitante sumiu. Meu avô, que durante a hospedagem se perguntava quem de fato era aquele homem, ficou surpreso com a ausência de despedidas. O exótico viajante abandonara uns livros na casa. Mais tarde, a família descobriu que as obras pertenciam à Faculdade e os exemplares foram devidamente devolvidos. Sobraram algumas lembranças, muitas dúvidas sobre a origem e o paradeiro do hóspede, bem como algumas fotografias tiradas no jardim da casa. Nelas, Carbajal aparece, ora sozinho contemplando seu invento, ora ao lado do meu avô, ambos olhando alegres para aquela engenhoca do tempo. Em uma das imagens, membros da família, minha vó, minha mãe, tios e um primo, aparecem sorrindo com o simpático e misterioso peregrino.
O tempo passou, mas vez e outra, nos encontros familiares, Carbajal era lembrado como a figura do estranho estrangeiro que durante um tempo fizera parte do cotidiano da casa.
Há alguns dias,
navegando pela internet, apareceu para mim no Google, ao acaso, uma manchete
que me despertou para o inusitado: “Os mistérios do nômade que espalhou
relógios de sol por Santa Catarina”. Ávido, li a matéria percebendo que o
Carbajal ali citado poderia ser o mesmo que morara durante um tempo na casa do meu avô há mais de quarenta anos. Félix Peyrallo Carbajal, segundo a reportagem,
foi um uruguaio que cercou de mistério a sua própria existência vindo a morrer
em Blumenau, em 2005, com cem anos, depois de “perambular pelo mundo proferindo
conferências sobre arte e poesia, mas também sobre matemática, astronomia e o
que mais lhe pedissem para falar”. Por meio da matéria, fiquei sabendo que a curiosa personagem foi objeto de uma pesquisa do professor e historiador
Ricardo Machado que resultou em uma tese de doutorado. O trabalho acaba de
virar um livro que será lançado no final de abril deste ano, pela Editora Humana
de Chapecó. Ricardo seguiu os passos do estrangeiro por países da América do
Sul e Central, reunindo uma série de documentos, desde cartas, desenhos,
jornais e até um dossiê da Ditadura Militar brasileira sobre o viajante. Mas o
mais curioso caso de Félix Carbajal é que sua vida é repleta de histórias que
seduzem até o mais ávido aventureiro, ganhando ares de ficção pelo inusitado
que reside nelas.
Descubro agora a
incrível história do hóspede de meu avô. Filho de um importante músico de Montevidéu,
Félix não conviveu com a mãe, que morreu no parto. Alguns anos depois, com a
perda do pai, o jovem herdou uma herança significativa e, então, começou a viajar
pelo mundo. Depois de se descobrir sem dinheiro em Los Angeles, nos EUA, partiu para a América Central. Em Cuba, Carbajal teve um romance com a poeta Carilda
Olivier Labra. Na Nicarágua, conheceu a casa de Rubén Darío, de quem era um apaixonado
leitor. O poeta, que viveu uma vida profusamente apaixonante e aventureira,
inspirou Félix em seus modos de ser. Por onde passava, Carbajal proferia conferências
sobre Darío e outros escritores, como Cervantes, Rilke, Gabriela Mistral e José
Martí. Uma série de documentos atesta isso. Consta que na casa em que se
hospedou, na Nicarágua, havia um menino lendo uma revista sobre relógios do
sol. De brincadeira, o homem fez um em miniatura, e deu de presente para o
jovem. Segundo Eliane Tavares, Carbajal proferiu em León, na Nicarágua, uma
conferência que foi um sucesso e todos ficaram sabendo que ele fazia relógios:
“O prefeito o procurou para pedir que construísse um maior, na praça da cidade.
Foi o que fez e nascia aí sua profissão de gnomonista, ou seja, construtor de
relógio de sol”. Nas décadas seguintes, ele projetou centenas de relógios - cada um diferente dos outros - espalhando-os pelas Américas, principalmente na forma de monumentos em praças.
O curioso Félix teria convivido com Garcia Lorca, Buñuel, Pedro Garfias entre tantos outros artistas. Ouvi histórias que teria conhecido Picasso, Hemingway, Salvador Dalí, Frida Kahlo, Diego Rivera e Neruda. Teria inclusive ficado amigo de Jorge Amado em Madrid. Nas versões mais malucas, teria sido um agente de Fidel Castro, bem como um secretário particular de Salvador Allende. Mas é difícil dizer onde termina o fato e começa a ficção. Na França, teria estudado na Sorbonne, onde foi aluno de Piaget. Eduardo Galeano escreveu sobre o hóspede de meu avô na crônica “Andando Soles”, que está no livro “Bocas del Tiempo”. Isto é fato. O encontro entre os dois conterrâneos aconteceu na cidade de Rivera, no Uruguai. Galeano escreveu: “(...) Don Félix iba dejando, a su paso, relojes de sol. Este raro uruguayo que no era jubilado ni quería serlo, vivía de eso: hacía cuadrantes, relojes sin maquinas, y los ofrecía a las plazas de los pueblos. No por medir el tiempo, costumbre que le parecía un agravio, sino por el puro gusto de acompañar los pasos del sol sobre la tierra”. Galeano rememora que “o senhor do tempo” não carregava documentos com medo de perdê-los. Ficou sabendo disso e de outras histórias enquanto tomavam “una botella de vino tinto”.
Quando veio para o Brasil, o certo é que conheceu Manuel Bandeira que escreveu sobre ele a crônica “O estrangeiro”, que integra o livro “Flauta de Papel”. Bandeira teria ficado surpreso depois de descobrir que o erudito vivia de mendicância. No Brasil, o curioso viajante teria ficado amigo de Jorge de Lima, Cassiano Ricardo e Aurélio Buarque de Holanda.
Pesquisando no
acervo de Carbajal reunido por Ricardo Machado, encontro um postal com uma
fotografia panorâmica de Porto União da Vitória enviado para Carilda Olivier
Labra nos anos 50, o que leva a crer que o multifacetado Félix teria passado
pelo Vale do Iguaçu antes dos anos 70. Será possível? É um mistério.
Assim como os
relógios que construiu, as versões sobre a vida de Carbajal são muitas e “têm
vida própria”. As peregrinações desse cigano Melquíades, fabuloso e mágico ambulante,
são estranhas ao nosso mundo objetivo centrado em uma visão mecânica e
utilitarista que não coaduna com uma realidade de desapego e pura deriva. Félix
Peyrallo foi o maior nefelibata que jamais conheci e de quem sempre ouvi falar.
É tão íntimo quanto algum ancestral da família de quem me aproximei por meio do
relato e lembrança dos outros. Como no filme “Peixe Grande”, de Tim Burton,
agora que Carbajal ganha de fato veracidade para mim – ou pelo menos fundamentação
teórica - é que as versões fabulosas que sempre ouvi me parecem mais verdadeiras
do que nunca. No entanto, ele continua sendo puro mistério até que despertemos
a alma para decifrar melhor sua identidade, sem abrir mão do que ele de fato
sempre foi, pura fantasia de si mesmo.
Caio Ricardo Bona Moreira
Obs: Com exceção das quatro fotografias que pertencem ao acervo da Família Amadeu Bona, todas as outras pertencem ao acervo de Ricardo Machado, e foram extraídas da página que o pesquisador administra sobre Félix Peyrallo Carbajal no Facebook.
quinta-feira, 15 de abril de 2021
TROCA TROCA | QUINTA MALDITA
#95QM | TROCA TROCA | QUINTA MALDITA
segunda-feira, 12 de abril de 2021
Vingança contra a História: Catarse literária em “Chacais em uma noite sem fim”, de Jair da Silva, o Craque Kiko
Lançada recentemente pela
editora Viseu, a novela “Chacais de uma noite sem fim”, de Jair da Silva,
revisita um dos capítulos mais tenebrosos da história do Vale do Iguaçu. Jair é
o Craque Kiko, conhecido radialista que atua no jornalismo esportivo local, e
que tem nos últimos anos publicado obras importantes sobre a memória do futebol
nas cidades de Porto União (SC) e União da Vitória (PR). O escritor, que é
colunista do jornal Caiçara, tem agora, para a satisfação dos leitores, exercitado
sua pena nos textos de ficção.
O autor inicia o livro
contextualizando social e historicamente a trágica trama que vitimou uma jovem em
um sórdido crime premeditado por vários homens da sociedade local nos anos 40.
Ao longo do enredo, um ambiente de tensão vai sendo criado e o leitor vai
entrando em um túnel do tempo que se torna mais assustador quando percebemos
que o atroz delito de fato ocorreu. Em uma das cenas mais inusitadas, o capeta,
“usando óculos escuros”, assiste a uma briga em um bar local, procurando
possíveis aliados para o ato vil que planejava. Como os envolvidos, um padre,
um ateu, um chefe da maçonaria e um rabino fizeram as pazes, mostrando que
tinham bom coração, o demônio foi “assediar e tentar arrebanhar as almas de
alguns tubarões bacanas da sociedade. Foi quando, de fato, conseguiu o seu
intento”.
Como a literatura trabalha no horizonte do possível, daquilo que poderia ter acontecido, e não com o que de fato aconteceu, um autor tem sempre a possibilidade de se relacionar com a realidade de uma maneira criativa e lúdica. Isso significa que uma narrativa literária pode manejar com muita liberdade os elementos históricos com os quais venha possivelmente a trabalhar em um enredo. No livro em questão, já no prólogo, o escritor aponta para um jogo que de certa forma se estenderá por toda a trama: “A narrativa descreve fatos de um sequestro e estupro, seguido de morte, que resultou em uma queima de arquivo e originou uma vingança sem precedentes devido a um amor platônico. Ainda no desfecho da trama, um pai e um filho também vão para o além. Uma história, fruto da imaginação ou baseada em fatos reais? Leia, pois, se baseada em fatos reais, poderá ter sido em sua terra”. Essa margem de indecidibilidade entre fato e ficção, presente por exemplo, em metaficções historiográficas, é levada adiante no livro a ponto de Kiko transformar propositalmente a realidade em ficção, modificando a história tal como a conhecemos, dando ênfase a alguns episódios, obliterando ou inventando outros, criando novos personagens e mudando o nome daqueles que teriam uma existência fora da literatura.
A capacidade de transformar a
história, profanando-a, ou seja, fazendo um novo uso daquilo que
tradicionalmente era considerado sagrado, portanto interdito, é uma das
possibilidades mais interessantes que a arte tem de forjar um novo olhar sobre
a própria história. Onde se lia a frase: “não mexa na história, porque ela é
sagrada”, leia-se agora a pergunta: “qual é a verdade da história?” ou ainda
“toda história não tem também a sua história?”. Se a própria historiografia se
constitui como uma ficção – e o trabalho do historiador não está completamente
afastado da atividade do escritor – imaginemos a liberdade da literatura em
inscrever novos signos naquilo que chamamos de história. Só o fato de escolher
registrar certos acontecimentos e não outros, ou de contar os acontecimentos de
uma forma e não de outra, faz da história uma experiência relativamente
ficcional. Ou seja, os referentes da história – que se perpetua por meio de
textos -, estão condicionados ao efeito de real que encontramos na literatura,
ou seja, na ficção.
Sobre a subversão da história, este é um recurso que vemos com frequência, por exemplo, no cinema. No filme “Bastardos Inglórios”, de Tarantino, Hitler é assassinado. A obra nos faz perguntar o que teria sido do Reich e da Segunda Guerra Mundial se Hitler tivesse sido impedido antes de promover sua barbárie. A ficção trabalha com o verossímil. O conceito de verossimilhança, teorizado originalmente por Aristóteles, em sua “Arte Poética”, diz respeito à capacidade que a arte tem de representar não o que de fato aconteceu, mas o que poderia ter acontecido. Isto faz da literatura um objeto que mantém com a realidade histórica uma relação bastante singular. Ela nasce da realidade, mas curiosamente outra realidade nasce com ela. E esta é uma mágica. Escrevo tudo isso para chegar em um ponto específico de “Chacais em uma noite sem fim”, em que a narrativa subverte a história tradicional promovendo, como em “Bastardos Inglórios”, uma vingança contra os antagonistas, neste caso, os algozes que promoveram o crime bárbaro contra a jovem que na novela leva o nome de Mafalda. Na realidade, sabemos que o crime que inspirou o livro ficou impune. Na literatura não. E mais não digo para não dar spoiler. Observo apenas que o livro exorciza a dor da vítima por meio de uma vingança da literatura contra a história, da ficção contra os fatos. Nesse sentido, a obra do Craque Kiko, mesmo que de forma inconsciente, pensa a narrativa como um instrumento que maneja as imagens inspiradas no discurso histórico para promover uma espécie de catarse literária ao forjar uma vingança contra os responsáveis pela maldade. Foi a minha catarse também ao ler o livro.
Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR), em abril de 2021