terça-feira, 31 de maio de 2016

Adolfo Casais Monteiro e a crítica



Adolfo Casais Monteiro, nos anos 60 - década que se confirmou como demasiadamente estruturalista -, evocou, em Clareza e Mistério da Crítica, a parcialidade e a paixão como traços fundamentais do pensamento crítico, entendido como dom. A paixão é indicada como uma força que se opõe ao frio raciocínio, não significando, portanto, cegueira ou demência (1961). Como leitor da tradição romântica alemã, Casais Monteiro observa que a crítica participa do próprio movimento criador da literatura, chegando a argumentar que ela não está na dependência da obra anteriormente criada, mas que “apenas continua, a prolonga, e, assim, não se distingue dela por oposição”. Dessa forma, delega à crítica um trabalho que suplanta o mero julgamento, compreendendo que cabe a ela não necessariamente rotular uma obra, um autor, mas “atualizá-los permanentemente, conservá-los vivos”. Como a poesia, estaria no campo das intensidades não meramente judicativas ou paradigmáticas. É desse vislumbre que surge seu argumento provocador, dirigido a uma comunidade específica: “(...) velai o rosto, ó cientistas da crítica! – o bom crítico é... o artista da crítica”. As reticências com as quais o autor pontua as frases, que bem poderiam ser lidas como dois versos decassílabos, sugerem não apenas um ar de mistério, capaz de suscitar no leitor a expectativa da resposta, mas também uma ideia de união, isso porque os três pontos não têm, aqui, o propósito de divórcio.


 O bom crítico, para ele, não é apenas o artista, mas o “artista da crítica”. Logo, não defende que a crítica não deva ser exercida por críticos, no entanto tais críticos devem dispor da paixão e da imaginação, como princípios constitutivos do ato de criticar. Imaginação, criatividade e pensamento crítico seriam, assim, elementos fundamentais na atividade que envolve tanto uma esfera quanto a outra.

domingo, 29 de maio de 2016

Gonzaga Duque e o enigma da arte, ou a crítica como uma linda mulher


Gonzaga Duque


Certas idades da crítica não foram criadoras
no sentido usual do termo; bem o sei: o espírito do
homem buscava nelas inventariar os próprios tesouros,
separar o ouro da prata e a prata do chumbo,
avaliar as jóias e nomear as pérolas. Porém, todas as
idades criadoras foram também críticas. Pois que é o
espírito crítico que engendra as fôrmas novas

Oscar Wilde, em A Crítica e a Arte


Antes de entrar na Exposição Geral de Belas Artes, em 1905, na então capital federal do Brasil, o crítico Gonzaga Duque viu passar uma bela dama, “encantadoramente cingida por um costume-tailleur côr de musgo” (1929, p.115) que lhe chamou muito a atenção. O rápido encontro, com ares de ficção, é descrito com minúcias no texto “Salão de 1905”, publicado inicialmente na revista Kosmos e posteriormente reunido em seu livro póstumo, intitulado Contemporaneos. Não passou despercebido ao seu autor a elegância com que a mulher de cabelos negros e chapéu de palha galgou os degraus, levando-o a ver nesse acontecimento o sinal de um bom augúrio. Com o olhar fascinado por essa espécie de passante baudelaireana, o homem envolve-a no seu deslumbramento, percebendo nela o reflexo de um desdém, no entanto, um desdém que “não ofende nem repele, porque apenas tem um vago de indiferença no indeciso de uma surpresa. É o instante de todas as mulheres bonitas diante do estranho que as contempla”. Ela olha para o enfeitiçado e se afasta, criando para si uma imagem que, ao oscilar entre a presença e a ausência, só confirma a sua condição espectral, etérea, fantasmática. A mulher não nomeada poderia figurar entre aquelas que povoam o imaginário dos artistas da belle époque, como a Salambô, retratada por Helios Seelinger, que, segundo Gonzaga Duque, se confunde entre uma “vaga imagem lendária de um perdido passado e a figura inquietante, sinistramente suspeita, observada dia a dia no cenário costumeiro da irrequieta, aguda, absorvente e destruidora existência contemporânea”. O flâneur, aturdido, entra, então, na Exposição e, transformado pelo sintomático encontro-desencontro, passa a comentar quadros de Fernando Gomez, Augusto Petit, Heitor Malagutti, Eugéne Morand, Rodolfo Chambelland, entre outros. Encontra um senhor “baixote e atarracado, rebarbativo”, e com ele dialoga sobre aquilo que vê. Ironiza algumas “marinhazinhas”, nas quais percebe apenas “barquinhos” e “praiasinhas”. Mas quem rouba a cena é a jovem atraente que reaparece exuberante no final do passeio:

Diante das medalhas do Sr. Augusto Girardet reencontro a esvelta senhora em costume-tailleur côr de musgo.
Ha nas suas pupilas o quebranto de um goso, toda a ternura dos delicados espiritos embevecidos na contemplação dum objecto d´arte. E sorri glorificando a luz do seu inexprimível sorriso a obra do Sr. Girardet. Sorri e retira-se (1929)

O que se passa entre ele e a jovem misteriosa, segundo Vera Lins, alegoriza a relação do crítico com a arte, “a surpresa e o aturdimento que a desconhecida lhe causa, o aproximar-se e o afastar-se e depois a fuga, a impossibilidade de alcançá-la. A crítica não desfaz o enigma da arte, o objeto lhe escapa”, como sugere Vera Lins.



A crítica que me interessa é justamente essa que parece estar consciente do abismo que separa a sua atividade das certezas de um método seguro, pleno de si, autônomo e suficiente. Tal crítica, a meu ver, consegue garantir justamente a inacessibilidade de que nos fala Agamben, em Estâncias, com isso conseguindo reinventar a cada passo seus métodos, seus olhares, suas posições, seus abismos, fazendo de sua atividade uma máquina de produzir imagens, ou seja, um caleidoscópio. O narrador do “Salão de 1905”, ao concluir o passeio, perguntou quem seria aquela formosa dama de lindos olhos que partiu. Para, então, responder:

Ora, que me importa saber quem seria tão donairosa senhora! Uma deusa talvez descida á terra para dar a um pobre mortal, arruinado e triste, a alegria necessária à sua penosa missão... De qualquer forma, verdadeira ou imaginaria, deusa ou simples madama três estrelinhas, de qualquer forma, uma linda mulher! Isto basta (DUQUE, 1929) 

Segundo Vera Lins, os textos de Gonzaga Duque são marcados por imagens que fazem pensar sobre uma crítica de artes como tradução de linguagens que “escapam aos limites do conceito se articulando com imagens que contém ideias, um pensamento que inclui a sensibilidade e a sensualidade. Como se a reflexão se desdobrasse nessas passagens de uma linguagem a outra”. Dessa forma, produz-se uma linguagem crítica que incorpora o enigma, a imagem, e a força poética dessa crítica que escapa ao rigor do método e ao fechamento do conceito “mais provoca o pensamento do que o torna claro”. Logo, impossível separar aqui sua crítica da própria poesia.
Talvez seja hora de lermos com mais atenção a crítica poética deste desconhecido chamado Gonzaga Duque, que ao escrever sobre pinturas incorpora o próprio universo da imagem em seus textos. Ler a sua obra equivale assim a visitar uma exposição, por que não?

terça-feira, 17 de maio de 2016

LEZAMA LIMA E A CONSTELAÇÃO SUPRA-HISTÓRICA DAS ERAS IMAGINÁRIAS



“A potência ao aplicar-se sobre um ponto ou atuar na extensão, o faz sempre acompanhada da imago, a mais profunda unidade conhecida entre o estelar e o telúrico. Se a potência atuasse sem a imagem, seria tão-somente um ato auto-destrutivo e sem participação, mas todo ato, toda potência é um crescimento infinito, uma desmesura, em que o estelar assinala o telúrico. A imagem ao participar do ato entrega como que uma visibilidade momentânea, que sem ela, sem a imagem como único recurso ao alcance do homem, seria uma desmesura impenetrável.”

Lezama Lima, em Fugados

1.


O escritor Jorge Luis Borges, em um de seus contos mais instigantes, “O Aleph”, descreve a imagem de um ponto mágico, não maior do que dois ou três centímetros, que guardava dentro de si todo o espaço cósmico. O Aleph estaria situado numa antiga casa da rua Garay, em um bairro de Buenos Aires. O narrador, convidado a travar contato com a experiência extraordinária, acomoda-se num determinado lugar do porão da sala de jantar, surpreendendo-se com o que vê: “Cada coisa (o cristal do espelho, digamos) era infinitas coisas, porque eu a via claramente de todos os pontos do universo” (2001, p.170). A possibilidade do Aleph seria a de apresentar todos os fenômenos do universo presentes no passado, presente e futuro, simultaneamente.
Poderíamos estender a descrição, apresentando algumas das imagens evocadas com destreza pelo escritor argentino. Uma das mais ousadas talvez seja aquela em que o narrador espia o próprio leitor, feito um Jeff Jeffries latino-americano[1], mas as linhas do texto seriam insuficientes para guardar tamanha mônada.
A imagem do Aleph, ponto que guarda todos os outros pontos, é uma excelente metáfora barroca: “Nesse instante gigantesco, vi milhões de atos prazerosos ou atrozes; nenhum me assombrou tanto como o fato de que todos ocupassem o mesmo ponto, sem superposição e sem transparência” (2001, p.169). O narrador, no entanto, confessou a incapacidade de traduzi-lo em palavras sem que o evento fosse engolido pelo abismo da representação, prisioneira de um processo sucessivo na linguagem escrita. Não somente todos os espaços estavam ali gravados, mas também todos os tempos. Impossível no Aleph organizar a realidade como a conhecemos.
Uma leitura mais atenta do conto de Borges nos faz pensar na possibilidade da literatura como um fenômeno anacrônico, o que não significa abolir o tempo, mas pensá-lo apenas como um acontecimento paralelo à história. Colocar em “xeque” esse tempo como desencadeador de puras relações causais entre eventos poderia exigir o reconhecimento de alguma teoria da física que sustentasse uma suspensão da lógica temporal-linear, porém bastaria lembrar que a curiosidade que movimenta este texto talvez seja semelhante àquela que motivou o narrador imaginado por Borges a buscar a visão de um Aleph.

Borges

Como essa totalidade está além das pretensões deste artigo e talvez só seja alcançada numa ficção, ou até mesmo em uma experiência mística, contento-me em experimentá-la entrando não na casa de Jorge Luis Borges, mas no labirinto [2] de Lezama Lima, um dos mais representativos escritores latino-americanos. Mas como entrar no labirinto? Uma chave é necessária. Onde está a chave? A estranha resposta vem de Autran Dourado: “Dentro, no centro ordenador, na matriz mesma do labirinto. Para se achar a chave, tem-se que entrar no labirinto. Mas sem a chave, como entrar?” (1982, p.66).
O paradoxo da chave serve para ilustrar uma leitura que pretende “entrar” no labirinto de Lezama, procurando uma saída, mas que aceita o fato de não possuir a chave sagrada da hermenêutica. Arriscaríamos entrar sem a chave ao perceber que as curvas são constitutivas de um jogo que se impõe ao leitor em forma de desafio. O labirinto de Lezama, então, seria apenas uma metáfora que alude aos contornos de uma escrita proliferante.
Lezama Lima optou por formular o seu próprio labirinto, uma espécie de sistema poético, transformando a história em eras imaginárias. Ao operar com a noção de logos poético, Lezama interpreta a história como ficção do sujeito, livrando-a das malhas do historicismo, tal como Borges rende-se aos encantos de um Aleph.

  

2.  

“Sólo lo difícil es estimulante”. É com esta afirmação que Lezama Lima inicia a primeira das cinco conferências que proferiu no Centro de Altos Estúdios Del Instituto Nacional de la Havana, em 1957, e que seriam posteriormente reunidas no livro La Expresión Americana[3]. A frase ilustra a postura desse poeta cubano, etrusco de la Habana vieja, apaixonado pela cultura latino-americana, e que foi um dos fundadores de uma das principais revistas americanas de arte, Orígenes[4], veiculada nas décadas de 40 e 50. Nove anos depois, o escritor publicou o romance Paradiso[5], seu projeto artístico mais ousado. Haroldo de Campos considerou o texto como uma “proliferante e protéica obra-prima” (CAMPOS in LEZAMA LIMA,1993, p.9). A proliferação a que se refere Haroldo, não funcionando como um mero aumento de palavras (amplificação), é analisada por Irlemar Chiampi no livro Barroco e Modernidade. A proliferação se constitui como uma geração de sistemas[6] que deslocam a noção de “centro”:

Amplificação e proliferação coincidem enquanto dilatação ornamental do discurso, sempre que se entenda o aumento, não como uma adjunção inerte, mas sim como adjunção dotada de função estrutural. Ambas pressupõem, ainda, um centro de irradiação dos signos; porém, enquanto a amplificação sustenta a centralidade de um ponto de referência, na proliferação tende-se a multiplicá-lo e a dilui-lo pelo movimento exacerbado de afastamento do foco gerador (CHIAMPI, 1998, p. 129).

A proliferação barroca não está presente apenas em Paradiso, mas em toda a produção de Lezama, inclusive nos seus ensaios. A leitura de seus textos solicita a coragem de não ceder diante dos desafios impostos por um pensador que, antes de tudo, deve ser lido como um poeta pensante.



É importante perceber que a dificuldade de que fala o escritor, no início da primeira conferência de La Expresión Americana, mais do que fazer referência a um estilo, alude ao projeto do ensaio, que reflete, antes de qualquer outra questão, sobre a resistência americana no processo de receptividade de influências. Talvez seja justamente essa resistência o elemento mais estimulante que leva Lezama a mergulhar na astúcia da afirmação.  Por meio de uma escrita espermática, a cultura americana é exaltada desde os mitos indígenas até os escritos contemporâneos, passando pela poesia popular do século XIX.
Perceber tanto as considerações mais óbvias quanto as mais obtusas dos seus ensaios torna iluminadora a leitura de sua poesia. Cumpre ressaltar que não há um corte - uma ruptura - entre a sua poesia e seus ensaios. A princípio, essa diluição de gêneros torna seu trabalho mais complexo, já que todos os seus textos acabam, assim, fazendo parte de um programa crítico. Por outro lado, em seus ensaios é um poeta que fala, transformando o saber em refinado sabor, sem ceder aos encantos de uma crítica imediatista. 
Essa ausência de fronteiras entre a escrita crítica e a escrita literária está ligada ao fato de que não há uma essência que confira um centro a cada um dos modos de escrever. Cada elemento só poderia se constituir a partir do rastro de outros elementos, o que Derrida chama de jogo sistemático de diferenças: “Nada, nem nos elementos nem no sistema, está, jamais, em qualquer lugar, simplesmente presente ou ausente. Não existe, em toda parte, a não ser diferenças e rastros de rastros” (DERRIDA, 2001, p. 32). 
Em La Expresión Americana, Lezama diferencia o logos hegeliano do logos poético. Hegel vê a história como um processo que conduz ao desenvolvimento. O logos poético, ao contrário, vê a história como um conjunto de imagens. Essa é uma concepção que transforma o “ser” em “imago”. Essa perspectiva pretende desenvolver uma visão histórica, porém, não historicista. Uma visão histórica da forma como uma grande paisagem. A paisagem não seria outra senão a própria cultura, que surge quando o espírito é revelado pela natureza[7].
A história, então, é concebida como uma profusão de imagens. Se tudo é imagem, como o sujeito pode aspirar à verdade? A questão é fundamental para Lezama. Todo discurso histórico, pela impossibilidade de reconstituir a verdade, é uma ficção, uma exposição poética: “Así, si la historia y la poesía se cunfunden en la misma 'mentira poética', qué puede restar verdad a la operación del logos poético?” (CHIAMPI,1993, p. 17). O poeta cubano não está interessado na essência ou na origem do homem americano, já que o que resta são apenas imagens. Agora, o próprio sujeito é visto como um “sujeito metafórico”.



Questionando a noção hegeliana de temporalidade como uma sucessão de acontecimentos direcionados a um telos, Lezama percebe que as noções espaciais e temporais não devem ser enfocadas sob a noção progressiva e linear. O poeta cubano, na sua “constelación supra-histórica”, abre mão da objetividade para mergulhar na ressonância de um programa que transcende a noção tradicional de história. Idéia semelhante é sustentada por Walter Benjamin, no texto “Sobre o conceito de histórica”, escrito em 1940, um pouco antes do suicídio do filósofo alemão, no estopim da Segunda Guerra:

O historicismo se contenta em estabelecer um nexo causal entre vários momentos da história. Mas nenhum fato, meramente por ser causa, é só por isso um fato histórico. Ele se transforma em fato histórico postumamente, graças a acontecimentos que podem estar dele separados por milênios. O historiador consciente disso renuncia a desfiar entre os dedos os acontecimentos, como as contas de um rosário (BENJAMIN, 1994, p. 232).     

Benjamin

Giorgio Agamben, num interessante ensaio sobre o tempo e a história, presente no livro Infância e História - Destruição da experiência e origem da história, levanta uma série de questões ligadas à concepção linear e não-linear do tempo, traçando uma espécie de panorama, dos filósofos gregos aos contemporâneos, das formulações filosóficas preocupadas com o assunto. Posicionando-se contra a noção aristotélica e cristã de tempo, e pensando também no marxismo, o filósofo italiano observa:

Verdadeiro materialista histórico não é aquele que segue ao longo do tempo linear infinito uma vã miragem de progresso contínuo, mas aquele que, a cada instante, é capaz de parar o tempo, pois conserva a lembrança de que a pátria original do homem é o prazer (AGAMBEN, 2005, p. 128).

A relação prazer/tempo, que já pode ser observada em Aristóteles, está ligada ao fato de que o prazer tem o poder de suspender o tempo, assim como as proliferações de Paradiso.
Uma experiência capaz romper com a lógica tradicional de tempo pode ser encontrada no jogo (do latim jocus, que alude a uma brincadeira). Analisando o livro Pinóquio, de Lucignolo, Agamben lembra da cena em que a personagem entra no “País dos Brinquedos”. Lá todos faziam a maior algazarra. As brincadeiras eram tantas que o lugar tinha como efeito “uma paralisação e uma destruição do calendário” (AGAMBEM, 2005, p. 82).
Se a quebra do tempo hegeliano é um dos efeitos do prazer desencadeado pelo jogo, poderíamos pensar que o sistema poético de Lezama Lima funciona como um jogo. O labirinto não seria nada mais que um jogo. Essa constatação apontaria para o seu “cosmopoético” não mais como problema, mas como uma solução, uma saída para uma história teleológica, seja ela, apocalíptica ou redentora. 
O “cosmopoético” lezamiano pretende construir uma visão histórica mediante o filtro da imagem. A profusão de imagens faz com que o poeta abandone a vertente racionalista do pensamento ocidental. A recusa do historicismo pode ser percebida no conceito de “Eras Imaginárias”: “Una era imaginaria coincide, aparentemente con una cultura, por el hecho de poder constituir un ‘campo inteligible’(...)” (CHIAMPI,1993, p.19).
Uma “era imaginária” pode ser representada pelo “afloramento” uma cultura - nesse caso a América figuraria como uma “era imaginária”. É impostante lembrar que esse conceito é trans-geográfico e trans-histórico, o que faz com que uma “era imaginária” possa aflorar em outra:

A través de esos enlaces retrospectivos, precisamos la vivencia de la aporroia de los griegos, de su concepto de la evaporación, y cómo esa tendencia para el anegarse en el elemento neptunista o ácueo del cuerpo, ha estado presente con milenios de separación, en un poeta contemporáneo, en un monólogo de Hamlet, en los peculiares modos de conversación de un emperador romano y en los conceptos movilizados casi con fuerza oracular por el pueblo griego  (LEZAMA LIMA, 1993a, p. 60).

A reconciliação do sujeito metafórico com a perspectiva das “eras imaginárias” permite uma “queda na linguagem”. Uma espécie de mergulho que, ao meu ver, desloca a noção de leitura como interpretação para a caracterização da leitura como intervenção. Mais do que encontrar um determinado sentido no texto, Lezama age sobre ele, devolvendo potência ao objeto. Essa é a “técnica do contraponto”, que funciona principalmente como um elogio à liberdade. É o que o escritor desenvolve, por exemplo, na leitura de Popol Vuh, relacionando-o com fragmentos da Bíblia, da Odisséia, e do Baghavad Gita.
O método do contraponto opera em prol de um movimento em busca de analogias que façam o texto funcionar. Essa força, no entando, não deve ser pensada sem as imagens: “Se a potência atuasse sem a imagem, seria tão-somente um ato auto-destrutivo e sem participação” (LEZAMA, 1993, p. 88).
O elogio da imagem não é um fenômeno restrito ao trabalho de Lezama Lima. O filme Blow-up, de Michelangelo Antonioni, é um caso interessante. O filme foi lançado no mesmo ano que o poeta cubano publicou Paradiso, em 1966. Antonioni, que participara ativamente do cinema neo-realista italiano, apresentava, em Blow-up [8], uma visão bastante interessante sobre a relação entre a imagem e a realidade. O enredo quase caótico da produção parece levantar uma séria reflexão sobre a capacidade das imagens suplantarem a realidade e, conseqüentemente, a própria história.
Thomas, um fotógrafo fatigado pelo “cotidiano de estéril fixidez”, resolve passear por um bosque nos arredores de Londres. Lá, encontra um casal desconhecido e resolve fotografá-lo. Quando revela as fotografias, percebe um suposto assassinato. Todos os indícios apontam para a concretização do ato criminoso, no entanto, Thomas está fadado ao fracasso, já que não consegue prová-lo. Cansado da realidade e impossibilitado de abstrair os fatos, transformando hipóteses em provas, o fotógrafo entra no “jogo” das imagens. É o que pode ser visto na seqüência final do filme, na cena em que Thomas assiste a uma partida imaginária de tênis, jogada por um casal de mímicos. Num determinado momento, os jogadores pedem para que o fotógrafo pegue a bola imaginária que escapara da quadra. Thomas resolve apanhá-la e devolvê-la aos mímicos.
A metáfora dos jogadores é válida, pois seria preciso “jogar” para não ser “engolido” pelo real. É como se o fotógrafo, ao invés de buscar a realidade fora da caverna de Platão, se contentasse com as sombras projetadas nas paredes da caverna. Não haveria, assim, um dentro ou um fora, mas apenas um entre-lugar, uma paisagem, um “espaçamento” fugidio. Muito semelhantes e completamente outros, Antonioni e Lezama talvez pertençam a uma mesma “era imaginária”, aquela que tem a (in)consciência de um real entre aspas.          

3.  

Em Lezama, a discussão sobre imagem-tempo não deve ser dissociada de uma aproximação com o movimento barroco.
Já em 1948, em um estudo sobre o pintor Roberto Diago, Lezama observa que o verdadeiro barroco se realiza em plenitude no Novo Mundo[9]. Num exercício lúdico com a linguagem, o poeta substitui a noção de arte da contra-reforma por arte da contra-conquista. Essa seria a grande afirmação da cultura americana em relação à cultura européia. No Brasil, uma força semelhante pode ser encontrada nos ideais da antropofagia de Oswald de Andrade. O autor de Poesia Pau-Brasil, de 1925, seria um entusiasta de uma arte que tenta fundar seus pilares na síntese entre Europa e Brasil, seja ela de vertente vanguardista, industrial, internacional ou nacional, natural e pré-colombiana.
O barroco de que fala Lezama é um outro barroco, não especificamente o movimento do século XVII, reinventado por estudos literários do século XIX, como os de Wöllflin, mas um barroco “pulsante”, impossível de ser desvinculado da constatação de que ele não pode ser caracterizado apenas como uma expressão do século XVII, já que o tempo é uma miragem. Esse Barroco trans-histórico do escritor se contrapõe violentamente ao barroco tradicional:

Cuando era un divertimento, en el siglo XIX, más que la negación, el desconocimiento del barroco, su campo de visión era en extremo limitado, aludiéndose casi siempre con ese término a un estilo excesivo, rizado, formalista, carente de esencias verdaderas y profundas, y de riego fertilizante (LEZAMA LIMA,1993a, p.79).

Ao contrário de Antonio Candido, que defenderia alguns anos depois, no livro Formação da Literatura Brasileira[10], a literatura do século XIX como produto e elemento produtor da nação, Lezama percebe no barroco o momento privilegiado do nascimento da cultura americana. Por meio do barroco, o americano é que conquistaria o europeu, na mestiçagem da obra, na síntese entre o estilo europeu e americano. 
O barroco americano não teria necessariamente as mesmas características que o barroco europeu. Dois de seus fortes elementos seriam: a tensión e o plutonismo. A tensão não seria a mera justaposição de elementos díspares - como no caso do europeu - mas uma combinação que pretenderia alcançar uma “forma unitiva”. O plutonismo[11] romperia as imagens em fragmentos e as reunificaria. O elemento seria responsável por estabelecer uma nova ordem cultural. Analisando a imagem do plutonismo, Lezama observa a etimologia da palavra “diabo”, do grego dia-ballein (separar, romper). A imagem demoníaca é citada várias vezes pelo escritor, associada, por exemplo, com a lepra de Aleijadinho.
No barroco europeu, ocorreria uma acumulação sem tensão e assimetria sem plutonismo. É justamente nesses dois pontos que o barroco americano iria se diferenciar do barroco tradicional. O esforço do movimento americano seria o de encontrar uma forma unitiva que, ao mesmo tempo, valorizasse a estética barroca e imprimisse na obra a arte da contra-conquista, ao valorizar a acumulação e a assimetria. As catedrais, por exemplo, figurariam traços europeus e pré-colombianos. Um dos exemplos apontados em La Expresión Americana é exatamente o da arquitetura:

En la portada de San Lorenzo, de Potosí, en medio de los angelotes larvales, de las colgantes hojas de piedra, de las llaves que como galeras navegan por la piedra labrada, aparece, suntuosa, hierática, una princesa incaica, con todos sus atributos de poderío y desdén (Lezama LIMA, 1993a, p. 83).

Não é à toa Lezama encontra em Aleijadinho a manifestação da grande lepra criadora do barroco americano. Antonio Francisco Lisboa é interpretado como o autor da grande síntese entre a forma grandiosa da cultura européia e as culturas africanas. A lepra que atinge Aleijadinho é a “raiz proliferante” da sua arte, já que a obsessão por não ser visto o leva a trabalhar à noite, escondendo-se sob um chapéu, entregando-se completamente ao trabalho: “llega como el espíritu del mal, que conducido por el angel, obra em la gracia” (LEZAMA LIMA,1993a, p.106).

4.   

Josely Vianna Baptista, no texto “Cardume Argênteo de peixes verbais”, afirmou que “Lezama criou, com a unidade de sua linguagem e movente geometria de luzes em que um texto ilumina outro, um universo literário e cultural de intrigante beleza” (BAPTISTA in LEZAMA LIMA,1993, p.111). A chave do labirinto só serviria para fornecer o pensamento confortante de que se pode sair ileso dele. Talvez bastasse dizer que o labirinto, assim como o cardume de peixes verbais, também é só uma imagem. E se tudo é uma grande ficção, experiência de um Aleph, nunca estivemos dentro ou fora da casa do Minotauro. Lezama quebra os muros, desconstruindo seu próprio labirinto. A imagem, assim, transcende o tempo. A constatação é a expressão de um “impossível realizado”, Aleph tornado real.
Natureza, cultura, imagem e “estória” convivem, assim, numa harmonia mágica capaz de oferecer ao europeu o turbilhão audacioso da expressão americana. Subentende-se, em Lezama, o ideário de uma catequese ministrada agora pelo colonizado. Nada seria mais estranho na arquitetura, na pintura, ou na literatura, que uma subserviência ao regime hostil do “pai” colonizador, já que o “Novo Mundo” já existia antes de Colombo. 
Mais do que uma tensão iluminadora, a perspectiva barroca de Lezama permite que a cultura americana possa ser pensada como um banquete antropofágico, à maneira de Oswald de Andrade. A expressão desse espaço gnóstico se justificaria num mundo pré-lógico, poético por excelência, onde mito e poesia seriam amalgamados. Tal ousadia literária permite que o “etrusco de la Habana vieja” relacione saberes oriundos das mais diversas culturas, sejam elas americanas, européias, ou orientais, inventando um tempo que suplanta a história e um espaço que semeia no telúrico a potência do estelar. 



5 REFERÊNCIAS



AGAMBEN, G. Infância e História: Destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.
BENJAMIN, W. Sobre o conceito da História. In: Magia e Técnica, Arte e Política. 7 ed. São Paulo: Brasilense, 1994. (Obras Escolhidas vol I) (p.222-232)
BORGES, J. L. Aleph. Rio de Janeiro: Globo, 2001.
CAMPOS, H. de. O seqüestro do barroco na formação da literatura brasileira: o caso Gregório de Mattos. 2ed. Salvador: FCJA, 1989.
CHIAMPI, I. Barroco e Modernidade. São Paulo: Perspectiva-FAPESP, 1998.
DERRIDA, J. Posições. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
DOURADO, A. Proposições sobre labirinto. In: O meu mestre imaginário. Rio de Janeiro: Record, 1982. (p.67-77)
LIMA, J. L. Em uma exposición de Roberto Diago. In: La Visualidad Infinita. Cuba:  Editorial Letras Cubanas, 1994. (p.269-274) 
____. Fugados. São Paulo: Iluminuras, 1993.
____. La Expresión Americana. México: Fondo de Cultura Económica, 1993a.
____. Paradiso. São Paulo: Brasiliense, 1987.
MARTINEZ, R. M. Paradiso, Cuartena Años.
SARIOL, J. P. Los años de Orígenes. In: VIZCAINO, C; GALBAN, E. S. (ORG). Poesía: Coloquio Internacional sobre la obra de José Lezama Lima. Espanha: Espiral/Fundamentos, 1984. (p.37-57)




[1] Jeff Jeffries é o nome da personagem protagonizada por James Stewart, em Rear Window (Janela Indiscreta), de Alfred Hitchcock. Jeff é um jornalista que observa com um binóculo os dramas privados da vizinhança. A personagem imagina ter presenciado um assassinato.
[2] Abel Prieto,  em oposição a essa concepção, defende a idéia de que Lezama Lima não construiu labirintos:
“Si algo puede sintetizar la diferencia entre Borges y Lezama, es el amor del primero hacia los laberintos que puede generar la cultura, y la obsesión del segundo porque la cultura nos ayude a derribar los muros que segmentan el pensamiento de los hombres, su forma de concebir el universo y de relacionarse con él. Frente al dédalo borgiano, se extiende el espacio gnóstico que Lezama fundó para Nuestra América” (PRIETO apud MARTÍNEZ, 2006, p.4).  
[3] Em 1988, a editora Brasiliense publica uma tradução do livro, realizada pela professora Irlemar Chiampi. 
[4] A revista contou com a participação de escritores como Eliseo Diego, Fina García Marruz, René Portocarrero e Citio Vitier. José Prats Sariol, no artigo “La Revista Orígenes”, apresentado no Colóquio Internacional sobre a obra de José Lezama Lima, realizado em Potitiers, na França, em 1982, observa: “(...) era una revista abierta al talento, sin parcializaciones cronológicas o sectarismos estilísticos (...). La plena conciencia de lo nacional, sin absurdos chauvinismos retardatarios, no sólo se ejemplifica en la actitud y en los pronunciamientos de los principales autores del grupo, sino también en la inclusión de algunos artículos de escritores extranjeros” (1984, p. 48-50). 
[5] Lezama já vinha publicando esparsamente na revista Orígenes capítulos do livro. Paradiso, uma espécie de romance-barroco em que a experiência erótica com a linguagem é levada ao extremo, narra a história de José Cemí, bem como o seu encontro com a poesia. Em torno da figura de Cemí, Lezama conta a história de sua própria família e de seu país. A poeta Josely Vianna Baptista trans-criou o livro para o português. A versão brasileira completa vinte anos, em 2007.  
[6] Chiampi observa que essa proliferação acontece em quatro níveis: a proliferação de tipo sintático, que desvia o curso da narrativa pela inserção de um relato; a proliferação de tipo narracional, que consiste na multiplicação dos signos da enunciação, em que o narrador surpreende o leitor com a mudança da pessoa responsável pela emissão do relato; a proliferação de tipo verbal, em que os objetos, por exemplo, são descritos por meio da multiplicação de significantes; e, por fim, a proliferação semântica, que é definida como a produção de signos, não em torno de uma palavra, mas em torno de um efeito de sentido (CHIAMPI, 1998, p. 130-131).
[7] Essa visão está presente na concepção romântica de Schelling.  
[8] Blow-up, traduzido para o português como Depois daquele Beijo, foi inspirado no conto “Las babas del diablo”, de Cortázar, presente no livro Las armas secretas.
[9] O artigo pode ser encontrado no livro La Visualidad Infinita, de Lezama Lima, 1994.
[10] Haroldo de Campos, em 1989, publica O seqüestro do barroco na formação da literatura brasileira: o caso Gregório de Mattos, em que questiona a gênese proposta por Antonio Candido. 
[11] Derivado de Plutão, deus do fogo, dos infernos, o fogo originário.

quarta-feira, 11 de maio de 2016

ANTONIO CARLOS DE BRITO E A PRÁTICA DA NOTATIO




Simular
Etimologia
lat. simùlo,as,ávi,átum,áre
'imitar, copiar, reproduzir, fingir'.


CACASO E A FILOSOFIA DO INSTANTE


Lembro-me de uma passagem da República, de Platão, em que Sócrates, na sua argumentação sobre a edificação de uma cidade perfeita, defende o banimento do poeta como condição sine qua non para o bom andamento do lugar idealizado. Nesse contexto, a escritura é tomada como veneno. Diz Sócrates: “Aqui entre nós (...) todas as obras dessa espécie se me afiguram ser a destruição da inteligência dos ouvintes, de quantos não tiverem como antídoto o conhecimento de sua verdadeira natureza” (PLATÃO, 2004a, p.293). Importante lembrar a polissemia da expressão Phármakon, podendo significar ao mesmo tempo remédio e veneno. Optar por um sentido em detrimento do outro seria anular o jogo que é constitutivo da palavra. Thoth, de um lado, afirma os poderes benéficos de escritura, e do outro, Tamuz, os seus perigos. Quem lembra do mito egípcio da invenção da escrita é o próprio Sócrates nos diálogos finais de Fedro (PLATÃO, 2004). Sob o olhar platônico do phármakon como veneno, o poeta é entendido apenas como um imitador barato, e por mais habilidoso que fosse, seria incapaz de retratar a verdade. Por causa da mímesis-maçã, o poeta é expulso do paraíso. A poesia será julgada conforme os graus de aproximação ou afastamento em relação à verdade (alétheia). Se na cidade almejada cada um deve ter a sua atividade específica, o poeta é deterritorializado à força, pois tem o poder de representar no texto várias atividades, mesmo sem conhecê-las em plenitude.
Ao invés de tentar banir o poeta da sociedade, apelando à violência das armas para acabar com a violência da escritura, caberia perguntar o porquê dessa desconfiança. Não estaria, em muitos casos, por trás dessa suposta mimese, uma adoção proposital ao jogo? Não seria essa uma tentativa habilidosa de forjar um “real”, tendo consciência do abismo que nos separa dele?
Mais de dois mil anos depois de tal violência, do lado de baixo de Equador, um jovem poeta, talvez nem um pouco preocupado com a República fictícia de Platão, publica poesias que à primeira vista poderiam ser imediatamente banidas de uma sociedade ideal, onde os poetas não devem se entregar aos riscos da poesia.  
No ensaio inacabado “O Poeta dos Outros”, publicado originalmente em 1988, algum tempo depois da morte prematura do poeta, Antonio Carlos de Brito, o Cacaso, comenta o poema “Almoço”, de Francisco Alvim. A cena enfocada pelo poema poderia ser considerada uma mera fotografia do cotidiano, no entanto, Cacaso vê no texto do poeta, meio marginal, meio diplomata, algo mais do que a mera transcrição de uma cena do real. Diz o poema: “Sim senhor doutor, o que vai ser? / Um filé mignon, um filezinho, com salada de batatas / Não: salada de tomates / E o que vai beber o meu patrão? / uma caxambu” (ALVIM, 2004, p.286). Para Antônio Carlos de Brito, crítico e amigo de Chico Alvim, o segredo do poema parece estar na quantidade de experiência que acumula. Esse “real anotado” é pretexto para uma determinada leitura e não para uma leitura determinada:

Existe toda uma história contida neste “sim senhor doutor” e neste “meu patrão”. Algo como a confirmação de um hábito, sua sedimentação, numa síntese de relacionamento onde tudo é transparente: o garçom é o garçom, o freguês é o freguês. Ambos têm os seus comportamentos e as suas falas respectivamente adequados à posição social de cada um (CACASO, 1997, p. 310).

   A afirmação já basta para alimentar com convicção a idéia de que a aparente pretensão singular do poema dá lugar a uma profunda reflexão, não apenas sobre a situação apresentada por Chico Alvim, mas principalmente sobre um recurso que modula os dizeres a partir de uma espécie de simulação de uma anotação, o que acontece em grande parte da produção de Chico Alvim, Cacaso, e outros poetas da década de 60 e 70. E é justamente essa simulação que torna problemática a abordagem desse fenômeno específico, já que aquilo que simula cria uma espécie de jogo, bem como não se entrega fácil a especulações corriqueiras. O enganar, aqui, é sinônimo de simulação. E se num sentido amplo toda escrita é dissimulada, restaria, então colocar em xeque a própria anotação como representação do real.  



A aproximação entre poesia e realidade, em Cacaso, deve ser tomada como uma aproximação entre poesia e vida. No poema “Na corda camba”, título homônimo do livro, ele comemorava: “Poesia / eu não te escrevo / eu te / vivo / e viva nós!” (CACASO, 2002, p. 55). Olhar semelhante pode ser encontrado em Barthes, que dedicou na primeira parte de seu curso “A preparação do romance” uma reflexão sobre a prática da Notatio:

(...) a “literatura” se faz sempre com a “vida”. Meu problema é que não creio ter acesso à minha vida passada; ela está na bruma, isto é, na fraqueza de intensidade (sem a qual não há escritura). O que é intenso é a vida presente, mesclada estruturalmente (este é o meu dado) ao desejo de a escrever (2005, p. 36).

Essa simulação de que falei até agora poderia ser o calcanhar de Aquiles da poesia de Cacaso, justamente porque o poema seria visto como uma mera anotação de uma situação qualquer. Onde estaria a arte? O poeta, tão logo, seria afastado da República. No entanto, lembremos que por trás dessa prática há apenas a produção de um efeito de real, não se trata de realismo. No dizer de Barthes, esse efeito consiste no “desvanecimento da linguagem em proveito de uma certeza de realidade: a linguagem se volta, foge e desaparece, deixando a nu o que diz” (2005, p. 144). É o que pode ser observado no poema “São Francisco”, presente no livro Segunda Classe, escrito em parceria com Luis Olavo Fontes: “O velhinho saiu da janela pra não ser / fotografado / coisa de criança” (CACASO, 2002, p. 89). Na descrição da cena, parece existir um embate entre a representação do poema, em que o efeito de realidade é a sua condição, e a representação desencadeada pela fotografia, percebida pelo personagem como um perigo. Aos olhos do velhinho, a fotografia provavelmente roubaria a sua alma, paralisaria o seu tempo, extrairia o seu real. Teria sido esse tipo de medo que levou Sócrates a não aceitar o poeta na sua cidade? 
A leitura da poesia de Cacaso, levando-se em consideração a opção pela apresentação de uma produção em fragmentos, exige, acredito, algo além do que a interpretação de fatos do poema como simples fotos do real, por meio da anotação, ou dos poemas como planos ideais de um suposto engajamento para com a realidade. É claro que esses poemas acabam por funcionar como um microrganismo de uma macro-realidade, e também, curiosamente, como um macro-organismo de uma realidade que em si já se configura como fragmentada. Mas me parece fundamental, e até óbvio, perceber essa apresentação da realidade como uma construção de uma outra a partir da simulação da simples anotação. Que imagem é essa que ela evoca?
Antônio Carlos Santos (2006), no texto “Imagem, mito e narrativa: prolegômenos sobre o duplo”, chama a atenção para a etimologia da palavra imagem, que pode ter o sentido de reproduzir fielmente algo, copiar, bem como simular, parodiar. Assim, poderíamos perceber que a presença daquilo que chamamos de “real” é difusa, mesmo em se tratando de uma escrita que tende a valorizar uma aproximação indelével com o cotidiano, como é o caso da poesia marginal. Logo a crença de que o poema-fragmento funciona apenas como um registro do real dissimula um olhar perspicaz que não esquece que por trás da máscara do poeta, há máscaras e mais máscaras, e que por trás desse pretensioso espelho, há espelhos e mais espelhos. Nesse sentido, o gesto aparentemente inocente de “rabiscar” a realidade no papel não deixaria de ser um gesto de violência, impossível tocar essa realidade sem seduzi-la e transformá-la. Como lembrar da dinâmica dos mitos gregos, tão bem representada em Metamorfoses, de Ovídio, em que a transformação é o elemento fundamental em que se move a própria narrativa.
Agora podemos perceber que a escrita de Cacaso, ao mesmo tempo, é uma tentativa de estreitar os laços entre a produção poética e o dia-a-dia, bem como instaurar uma prática que, sem esquecer dessa aproximação, lança um quesito fundamental para a conquista de uma produção poética séria, que pode, é claro, ser “malandra”, mas que sabe também que essa brejeirice, paradoxalmente, deve ser coisa séria, em se tratando de poesia.      



Por mais que o poema seja rabiscado nos botecos da vida, entre um gole de cerveja e um trago no cigarro, Cacaso não abre mão do rigor. É o que pode ser observado no artigo “Tudo da minha terra”, publicado na revista Almanaque, em 1978, em que o escritor, ao comentar a poesia de Chacal, não esquece de “alfinetar” a vertente banal da dita poesia marginal da época:

Esta informalidade que hoje reina em setores importantes de nossa ideologia de resistência, em nossa multiforme contracultura, facilita a difusão e a aceitação da crença de que uma vez que fazer arte e viver já não se distinguem, então a possibilidade de criar já não supõe maiores capacitações, e todo mundo indistintamente é promovido a artista, o que é o mesmo que extinguir a espécie (CACASO, 1997, p. 28). 


A SIMULAÇÃO DE UMA NOTATIO


Esse tipo de anotação de que falo, assim como o haicai, não parece querer reencontrar o tempo à maneira proustiana, fazendo um percurso inverso até chegar ao tempo instigado. Seria, então, como lembra Barthes, não o reencontro com o tempo, mas o encontro como tempo: “O tempo é salvo imediatamente = concomitância da anotação (da escrita) e da incitação: fruição imediata do sensível e da escritura (...) Portanto, uma escrita (uma filosofia) do instante” (BARTHES, 2005, p.101). E é aqui que me pergunto até que ponto o instante da escritura está próximo da escritura do instante. Entre o movimento desses dois instantes, a escrita, não como acidente de percurso, mas como condição do próprio instante, um incidente. E é ainda em Barthes que procuro uma definição para a abertura desse desejo: “O incidente (...) é simplesmente o que cai suavemente, como uma folha, sobre o tapete da vida; é aquela dobre leve, fugitiva, no tecido dos dias” (2005, p. 115).
A diferença entre os incidentes de Barthes e os de Cacaso parece se concentrar, não especificamente no estilo, ou nos temas de cada um deles, mas principalmente nos seus objetivos. Barthes não parece querer assumir compromisso algum com esse tipo de escrita, a não ser com a prática da anotação, na tentativa de se apropriar do imediato. Nesse caso, não deixa de ser um compromisso ético com a sua escritura. Cacaso, por sua vez, é bom frisar, está inserido num contexto em que optar por esse tipo de escrita, a fragmentária, era quase acatar uma ordem. Seria mais fácil perguntar: “Quem não escreveu assim, naquele período?”.
Apesar da diferença que caracterizava a produção dos dois escritores, é inegável que ambos dedicaram uma atenção significativa para a questão do fragmento. Barthes escreveu os seus incidentes durante a viagem que fez ao Marrocos, em 1968 e 1969. Nessa época, Cacaso estava afastado da poesia, depois de publicar A palavra cerzida, em 1967, e só voltaria à cena com Grupo Escolar, da coleção Frenesi.
Vejamos um dos incidentes anotados por Barthes: “O grupo dos rapazes se cotizou para pagar uma puta; um deles fez trinta quilômetros de bicicleta para ir buscá-la em A., trazer a bebida; depois eles se revezaram em cima dela” (BARTHES, 2004, p. 20). Façamos agora, a título de miragem, um contraponto com um dos poemas de Cacaso, intitulado “Santa Ceia”: “Poesia se faz assim / era um vez um castelo distante onde morava / uma linda princesinha / o dragão foi lá e comeu ela / quem fizer por último come toda / merda dela” (2002, p. 59). 

ESSA TAL POESIA DISSIMULADA


Uma simulação de anotação, então, poderia ser tomada como possibilidade, ao mesmo tempo, de expontaneísmo e trabalho sério daquele que escreve. Se lida como uma mera anotação, pode não ser percebida como um trabalho significativo: qualquer um que anota poderia ser poeta? Por outro lado, esse trabalho de que falo deve ser tomado não como pura fantasia, mas como condição de produção, o que parece ser mais plausível quando falamos de Cacaso. Basta lembrar, como nos mostra Antônio Carlos Santos, que esse expontaneísmo “não deixa de ser uma estratégia, uma opção, um artifício, um arremedo, uma cópia” (p.2001, p. 94). É devido a essa opção que o trabalho de Cacaso se insere numa certa leitura do Modernismo, num diálogo com a tradição, seja ele por meio de uma captação ou subversão. É o caso do poema O Mergulhador, em que o poeta tece um fio de diálogo com Castro Alves: “Estamos em pleno mar / plataformas de nuvens recebem meu corpo mas não / recebem meus braços. Bússolas inúteis meditam. / Horizontalmente os astros fabricam as dimensões / do abismo. Penso me meu amor. Qual deles? (...)” (2002, p. 134).  
Quem é esse que sente na poesia de Cacaso? Essa simulação de que trato equivale àquela de Ana Cristina César, em A teus pés. A poeta entende que a intimidade não é comunicada por meio da literatura: “A subjetividade, o íntimo, o que a gente chama de subjetivo não se coloca na literatura” (CESAR, 1999, 259). Esse revelar sobre si, então, é tomado como um jogo, o que demonstra que o texto literário acaba suplantando a noção da figura do “autor”. Quem é ele senão um efeito de superfície? Que “imitador barato” é esse engana o platonismo?
Ana Cristina César, num depoimento no curso ministrado pela professora Beatriz Resende, na Faculdade da Cidade, em 6 de abril de 1983, comenta o jogo criado em A teus pés, em relação à idéia da simulação de uma intimidade:

Existem muitos autores que publicam seus diários mesmo, autênticos. Aqui não é um diário mesmo, de verdade, não é meu diário. Aqui é fingido, inventado, certo? Não são realmente fatos da minha vida. É uma construção. Mas há muitos autores que publicam diários. Quando você ler o diário do autor, de verdade, que ele escreveu sem uma intenção propriamente de fingimento, você vai procurar a intimidade dele. Se você vai ler esse diário fingido, você não encontra intimidade aí. Escapa...Então, exatamente o que é colocado como uma crítica é, na verdade, a intenção do texto (CESAR, 1999, p. 259).   

Até que ponto essa escrita pode ser considerada um mero registro do cotidiano, como muitos se referem à poesia marginal?



Talvez fosse melhor falar de livros marginais de poesia e outros de poesia marginal, como referiu Cacaso a respeito de como ficou conhecido o movimento (1997, p.13). Essa marginalidade não deve ser vista como opção, mas como condição. As coleções “Frenesi” e “Vida de Artista” servem bem para ilustrar essa questão.
Frenesi é o nome da coleção que reúne trabalhos de poetas como Cacaso, Roberto Schwarz, Francisco Alvim, Geraldo Eduardo Carneiro, João Carlos Pádua. O lançamento ocorreu em 1974, na livraria Cobra Norato. Cada livro da coleção vinha acompanhado de um “brinde” que consistia na reunião de mais alguns poemas dos autores. Segundo Carlos Alberto M. Pereira, a coleção representou um passo mais institucionalizado em relação à produção marginal da época (PEREIRA, 1981, p. 138).
A coleção Vida de Artista reunia trabalhos de cinco autores: Cacaso, Luis Olavo Fontes, Eudoro Augusto, Chacal e Carlos Saldanha. Como observa Pereira (1981, p. 283):

 (...) a marca da coleção Vida de Artista é o carimbo, onde se lê a expressão: Vida de Artista. Esta idéia do carimbo surgiu com Cacaso que, desta forma, se tornava o articulador central da coleção. Uma vez carimbados, os livros passavam a fazer parte do grupo de publicações referido com a coleção Vida de Artista. Não havia, assim, um limite nem do número de publicações, nem do tempo de duração da coleção.

Até que ponto podemos chamar de marginal uma produção como essa, que era mais “trabalhada”, que tinha intenções sérias? Ao passo que os poetas de “Frenesi” procuravam caminhos para solucionar os problemas da dificuldade de se editar um livro, os livros recebiam todo o cuidado artesanal, o que, por sua vez, não era facilmente encontrado em trabalhos da “geração mimeógrafo”. Essa marginalidade, então, estaria mais próxima da questão institucional que envolvia o processo de edição dos livros do que das características que seriam consideradas essenciais na linguagem do poeta marginal, como a aproximação com o tom coloquial, com a estética do fragmento etc. Daí a perigo de generalizar os poetas do período como a “geração desbunde”, que simplesmente critica o esteticismo da poesia de 45 e o concretismo, não fazendo uma poesia que merece atenção.



Como comentei ao longo do texto, a poesia de Cacaso suplanta a noção de mera notatio. Digamos que essa notatio é simulada para criar um efeito aproximação com o instante em que se escreve. É simulada também no sentido de utilizar a representação do instante em fragmento para, a partir da situação retratada, potencializar reflexões que, muitas vezes, assimilam o instante apenas como pretexto para um outro tipo de reflexão, como em “Meditação”: “Com meu amor me envolvo felizmente / mas também me des / envolvo / infelizmente” (CACASO, 2002, p.119).
A aparente meditação do poeta dá lugar a uma meditação sobre o próprio poema. A ruptura sintática é significativa à medida estimula o jogo dos contrários, chamando a atenção para as contradições desse amor. Esse é o tipo de poema que nos faz “meditar” sobre a noção de confecção. Se a notatio é uma mera anotação, dela escapa, em grande parte, o trabalho artesanal: “A Notatio é, pois, uma atividade exterior: não acontece na minha mesa de trabalho, mas na rua, no café, no bar, com amigos etc” (BARTHES, 2005, p. 185).  
      Não me parece importante saber se esses poemas foram escritos numa mesa de trabalho, ou numa mesa de bar, pois o que está posto em questão é o efeito de sentido de um poema que, aparentemente é uma simples anotação, satori, kairós, destituída de uma “meditação”, mas que não abandona o seu rigor. Então, em Cacaso, as anotações são instantes, satoris, insights, porém lumes nada banais. Será isso um veneno ou um remédio?


REFERÊNCIAS



ALVIM, F. Poemas (1968 – 2000). São Paulo: Cosac & Naify: Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004. – (Coleção Às de Colete; v.8)
BARTHES, R. A preparação do romance 1. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
_____. Incidentes. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
BRITO, A. C. F. de. Lero-lero (1967 – 1985). São Paulo: Cosac & Naify: Rio de Janeiro: 7 Letras, 2002. – (Coleção Às de Colete)
_____. Não Quero Prosa. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, RJ: Editora da UFRJ, 1997.
CESAR, A. C. Crítica e Tradução. São Paulo: Ática, 1999.
DERRIDA, J. A Farmácia de Platão. 3 ed. São Paulo: Iluminuras, 2006.
PEREIRA, C. A M. Retrato de Época – poesia marginal – anos 70. Rio de Janeiro: Edições Funarte, 1981.
PLATÃO. Fedro. São Paulo: Martin Claret, 2004.
_____. A República. São Paulo: Martin Claret, 2004a.
SANTOS, A. C. De pássaro incubado a tico-tico de rapina: a poesia de Antonio Carlos de Brito, o Cacaso. IN: CAMARGO, M. L. de B.; PEDROSA, C. (ORG). Poesia e Contemporaneidade. Leituras do presente. Chapecó: Argos, 2001. (79 – 97)
_____. Imagem, mito e narrativa: prolegômenos sobre o duplo. Texto apresentado no seminário Unisul em Contexto, Tubarão, 2006.