à memória de Belchior
domingo, 30 de abril de 2017
sexta-feira, 28 de abril de 2017
A CRÍTICA LITERÁRIA BRASILEIRA DO SÉCULO XX (alguns apontamentos)
Álvaro Lins
Flora Süssekind, no texto “Rodapés, tratados
e ensaios: a formação da crítica moderna”, presente no livro “Papéis Colados”,
traça um panorama da crítica literária brasileira do século XX, do
impressionismo que pautou um modelo crítico que tinha como veículo privilegiado
o jornal ao modelo acadêmico, cujas formas de expressão dominantes seriam o
livro e a cátedra. Nos anos 50, segundo Flora Süssekind, observa-se uma mudança
de paradigma, em que uma crítica à moda antiga, figurada, por exemplo, pelos
trabalhos de Álvaro Lins, cede espaço para uma “crítica especializada”,
desencadeada pelo surgimento de faculdades e universidades que propiciaram a
especialização dos estudos críticos. Nesse época, ampliam-se as áreas de
domínio e o prestígio do crítico universitário. Daí o seu interesse em examinar
as opções intelectuais de duas figuras verdadeiramente paradigmáticas no campo
dos estudos da literatura brasileira: Afrânio Coutinho e Antonio Candido. O
primeiro interessado em uma crítica estética e o segundo em uma crítica
dialética, duas linhas de força que marcariam o pensamento crítico brasileiro
subsequente.
Antonio Candido
Até os anos 50, o Brasil é marcado pela
“crítica de rodapé”, ou seja, uma crítica ligada fundamentalmente à
não-especialização. Ela era exercida no jornal e oscilava entre a crônica e o
noticiário, pendendo muitas vezes para a eloquência ou para o impressionismo.
Nesse modelo, aparecem figuras como Tristão de Ataíde, Otto Maria Carpeaux,
Agripino Grieco, Mário de Andrade, Álvaro Lins, entre outros. Depois dos anos
50, intensifica-se um outro modelo crítico, interessado na especialização e na
pesquisa acadêmica. Afrânio Coutinho e Antonio Candido são dois nomes que se
destacam nessa segunda linhagem. Se nos anos 50, há um embate entre a perspectiva
de Coutinho e Álvaro Lins, depois disso, mais especificamente a partir dos anos
60, passam a se delinear com mais clareza as diferenças no âmbito da própria
crítica universitária. É o caso da querela entre Afrânio Coutinho e Antônio
Candido.
Otto Maria Carpeaux
Flora Süssekind observa que a trajetória de
Cândido e Coutinho lembra por vezes o conto “Duelo”, de Guimarães Rosa. Nele há
um confronto esperável, mas, mesmo quando seguem trilhas próximas, os oponentes
(Toríbio Todo e Cassiano Gomes) parecem deixar escapar sempre o encontro fatal.
Mesmo tendo vários pontos de contato, como a formação universitária, a
colaboração na imprensa diária e a carreira docente, vários foram os confrontos
entre ambos. Afrânio interessou-se em pensar a supressão parcial da história e
a afirmação de uma autonomia plena do literário. Ele discordava de uma crítica
dominada pelos fatores extrínsecos que condicionam a gênese do fenômeno
literário. E resgatando exemplos de figuras como Nestor Vitor, Tasso da
Silveira, Andrade Muricy e Mário de Andrade, propunha então o privilégio de uma
crítica estética. Ao método histórico deveria caber um lugar secundário, dada a
própria natureza do fenômeno literário. Esse ponto de vista o filiava numa
tradição próxima de Araripe Júnior e o distanciava da tradição de Sílvio Romero
e José Verísimo. Não à toa, Afrânio Coutinho foi um dos grandes disseminadores
do “new criticism” no Brasil dos anos 50 e 60. Para Candido, ao contrário,
interessam as relações entre literatura e sociedade e uma crítica que trabalhe
dialeticamente com tais relações. É o que materializa em um livro como
“Literatura e Sociedade” (1965), em que discute a separação entre fatores
externos e internos ao texto literário. Para Candido, trata-se de levar em
conta o elemento social, não como referência para situar historicamente a obra,
mas como fator da própria construção artística.
Andrade Muricy
Tasso da Silveira
No prefácio da segunda edição (1961) do livro
Introdução ao "Método Crítico de Sílvio Romero" (1945), Antonio Candido observa
que apesar dos erros cada vez mais apontados e de suas teorias cada vez mais
superadas, Sílvio Romero permanecerá. O mesmo poderia ser dito sobre o próprio
Antonio Candido. Por mais que os críticos encontrem problemas teóricos e
metodológicos na sua obra, Candido continuará sendo referência para os estudos
críticos e historiográficos da literatura brasileira.
Quando publicou, em 1959, a Formação da
literatura brasileira: momentos decisivos, Candido já tinha percorrido os
caminhos da história da literatura, matéria de sua Introdução ao método crítico
de Sílvio Romero, e de sua participação no capítulo “O escritor e o público”,
no projeto idealizado por Afrânio Coutinho e intitulado A literatura no Brasil.
O crítico já vinha trabalhando na revista Clima, no começo da década de 40, e
nos jornais Folha de São Paulo, diário de São Paulo e Estado de São Paulo (cujo
famoso Suplemento Literário ajudou a planejar e manter) nos anos 40 e 50, de
que resultaram os estudos reunidos em Brigada Ligeira,de 1945, e O observador
literário, de 1959. Mas o grande projeto literário do autor, que se caracteriza
também como um projeto de Brasil, se encontra na obra seminal Formação da
Literatura Brasileira, em que se consolida um método de leitura que acompanha a
trajetória do crítico.
terça-feira, 25 de abril de 2017
A ficção brasileira do século XXI (apontamentos)
Beatriz
Resende, no livro “Contemporâneos: Expressões da literatura brasileira do
século XXI” (2008), confessa que há na tarefa de se escrever o presente algumas
inseguranças quase insuportáveis: “Uma espécie de sensação de nudez sob ventos
e olhares que podem vir de direções diversas”. Isso porque a complexidade do
tempo presente, bem como o temor de uma avaliação equivocada, faz parte da
atividade crítica interessada na produção contemporânea. A pesquisadora aponta
três evidências da potência gerada pela literatura contemporânea. A primeira é
a fertilidade dessa produção, que está ligada à quantidade de livros publicados
e consumidos. A segunda diz respeito à qualidade dos textos. Para ela, a prosa
que se apresenta vive um momento de grade qualidade. A terceira está ligada à
multiplicidade. Característica que se revela na linguagem, nos formatos. São
múltiplos tons e temas e, sobretudo, múltiplas convicções sobre o que é a
literatura. Talvez seja essa multiplicidade o fator responsável pela
insegurança em se abordar o fenômeno da ficção brasileira contemporânea.
Beatriz Resende
Falar
sobre a ficção brasileira do século XXI pressupõe, antes de tudo, uma reflexão acerca
do conceito de “contemporâneo”. O que é a literatura contemporânea? E mais
ainda, o que significa ser contemporâneo, hoje, na literatura? Seria a
literatura contemporânea o conjunto de obras produzidas no presente, ou apenas
aquelas compartilham as tendências literárias contemporâneas, ou seja, aquelas
que estão à altura do, por responderem de maneira eficiente às questões de
nosso tempo? Não seria a obra de Sousândrade ou de Oswald de Andrade mais
contemporânea do que grande parte da literatura produzida hoje no Brasil?
Quando começa a literatura contemporânea? Nota-se que estamos diante de um
problema do tempo, e da impossibilidade de reduzi-lo à história. Dessa maneira,
é impossível tratar da ficção brasileira produzida no século XXI, ou seja a
contemporânea, sem de início problematizarmos a questão do tempo.
Susana Scramim
Susana
Scramim, no importante estudo intitulado “Literatura do Presente”, observa que
não podemos acercar-nos da ideia de presente sem que entremos na discussão
sobre uma concepção de tempo. Sabemos que a história não se resume a uma
sucessão de fatos no tempo cronológico, mas não podemos ignorar a historicidade
dos atos criativos. Quando Giorgio Agamben introduz-nos na discussão sobre o
tempo, previamente nos alerta que uma experiência com o tempo acompanha cada
concepção de história; e que numa concepção de história reside uma experiência
com o tempo que inclusive a condiciona. Sendo assim, não se produz uma nova
cultura, que é o resultado de uma experiência com o tempo, se não se muda a
relação com o tempo e não se altera nossa percepção da história.
Como
tratar do contemporâneo sem cair nas armadilhas que dizem respeito às
classificações rasteiras que tentam decifrá-lo?
Giorgio Agamben
No ensaio “O que é o
contemporâneo?” o filósofo italiano Giorgio Agamben pergunta: “De quem e do que
somos contemporâneos? No mesmo texto, uma tentativa bem sucedida de resposta:
“Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele
que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões e
é, portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente por isso, exatamente
através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os
outros, de perceber e aprender o seu tempo”. Nesse sentido, para o filósofo,
contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber
não as luzes, mas o escuro: “Todos os tempos são, para quem deles experimenta
contemporaneidade, obscuros. Contemporâneo é, justamente aquele que sabe ver
essa obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do
presente”. E indo mais longe, Agamben conclui defendendo que o contemporâneo
não é apenas aquele que percebendo o escuro no presente, nele apreende a
resoluta luz, é também aquele que, dividindo e interpolando o tempo, está à
altura de transformá-lo e de colocá-lo em relação com outros tempos. Não é
outra a aposta de Josefina Ludmer que no ensaio temporalidades do presente,
publicado na revista argentina Márgenes, propõe ler o presente como uma
complexa confluência de temporalidades. Isso porque o tempo é uma matéria em
movimento.
Josefina Ludmer
Numa
das passagens do livro Literatura do
Presente, a pesquisadora Susana Scramim observa que ao contrário de todo
experimentalismo possuir de conhecimento seguro, é o “reconhecimento da
ausência de caminho (a-poria), de método, que fundamenta a única experiência
possível para uma literatura do presente”. Não há mais um caminho seguro, uma
vanguarda predominante, um estilo de época, mas sim uma pluralidade de
tendências e de opões que dificultam uma categorização.
Flora Sussekind
Flora
Sussekind, em Literatura e Vida Literária, aponta para duas linhagens
literárias predominantes na literatura brasileira do pós-64. Parece-nos que
essa categorização ainda pode nos ajudar a ler a ficção produzida no Brasil do
século XXI. A primeira linhagem está centrada em no realismo. Nos anos 60 e 70,
optou, ora pela vertente mágica, ora pela vertente jornalística. Flora
Sussekind batizou linhagem de “literatura verdade”. Na vertente jornalística,
propiciou o surgimento de romances-reportagem ou de cunho memorialístico. É o
caso de Fernando Gabeira, com o que é isso, companheiro?; Alfredo Sirkis, com "Os Carbonários". Tal literatura, ganhando ares para-jornalísticos, assumiu para
si a tarefa de relatar os problemas oriundos da repressão militar. No caso da
vertente mágica, superpovoada de pistas alegóricas, também. Por trás de tais
alegorias, poderia ser encontradas críticas veladas aos militares. É o caso de
J.J. Veiga e Murilo Rubião.
Raduan Nassar
A
segunda linhagem apresentada por Sussekind optou pela experimentação. Tal
corrente, que valorizou o aniquilamento da ação narrativa, sejam as
experimentações de Zero, de Ignácio de Loyola Brandão, Panamérica de José
Agrippino de Paula, ou mesmo a linguagem poética centrada na memória, como a
obra de Raduan Nassar e Caio Fernando Abreu, é considerada por Flora como menos
vitoriosa na história da literatura brasileira. A autora se pergunta por que a
vitória das parábolas, biografias e do naturalismo em detrimento de uma
literatura que jogava mais com a elipse ou com o chiste? Talvez seja a obsessão
pelo real o fator responsável pelo sucesso comercial de obras menos
experimentais. São também essas as obras que ganham destaque atualmente em
adaptações cinematográficas, apesar de encontrarmos livros como Lavoura
Arcaica, de Raduan Nassar, e Harmada e Hotel Atlântico, de João Gilberto Noll,
e Onde Andará Dulce Veiga, de Caio Fernando Abreu presentes em adaptações nos
cinemas.
Caio Fernando Abreu
Imagino
que essa divisão sobrevive na literatura produzida no século XXI e nos ajuda a
entender o momento atual. De um lado encontramos autores como Paulo Lins (autor do famoso "Cidade de Deus" e do belo "Desde que o Samba é Samba", que li recentemente),
Patrícia Melo, Marçal Aquino, entre outros, interessados em produzir uma
literatura concentrada nas grandes cidades, na marginalidade, lançando mão para
isso de uma linguagem “realista”. Tal tendência é caracterizada por alguns
estudiosos como uma literatura neo-realista, ou neo-naturalista. Podemos supor
que esses autores acreditam que a literatura pode representar o mundo, o real,
os problemas sociais. Ao invés de chamá-la de neo-realista ou neo-naturalista,
termos que pressupõe um retorno impossível, prefiro caracterizá-la como
“mimética”, ou seja, uma literatura que visa a produzir um efeito de real. Claro que a questão não é tão simples assim, mas pode ser desenvolvida a partir desse enfoque.
Paulo Lins
Schollhammer, em “Ficção brasileira contemporânea”, (2009) observa que o que
encontramos nos neo-naturalistas é a vontade ou o projeto de retratar a
realidade atual da sociedade brasileira, frequentemente pelos pontos de vista
marginais ou periféricos. Para ele, os novos realistas querem provocar efeitos
de realidade diferente dos realistas ou naturalistas do final do século XIX. O
novo realismo se expressa pela vontade de relacionar a literatura e a arte com
a realidade social e cultural da qual emerge, incorporando essa realidade
esteticamente dentro da obra e situando a própria produção artística como força
transformadora. Ainda seguindo pensamento do autor, observa, assim, um novo
realismo que conjuga as ambições de ser “representativo”, mimético e ser
simultaneamente engajado, sem necessariamente se subscrever a nenhum programa
político. Ou seja, estamos diante de um “modelo referencial”, que entende as
imagens e os signos como ligados a referentes, a coisas “reais”, pertencentes
ao mundo da experiência. Muitas vezes gerando um neodocumentarismo comandado
pela “demanda do real”
Marçal Aquino
Do
outro lado, encontramos escritores como Milton Hatoum e Bernardo Carvalho que
tem consciência de que há um abismo que separa a literatura do mundo. A
literatura anti-mimética, por eles produzida, não necessariamente representa o
mundo, mas constrói realidades, seja pela desterritorialização do eu ou pelas
veredas que se bifurcam nos meandros da memória. Estariam próximas daquilo que
o poeta Wally Salomão dizia em poesia: “A memória é uma ilha de edição”. O que
permite ao escritor levar às últimas conseqüências o trabalho com a narrativa.
O que está em jogo é a ficção e não a fábula para usar uma terminologia de Foucault. Na segunda categoria poderíamos incluir
escritores como João Gilberto Noll, em livros como Berkeley em Belágio, em que
o narrador desterritorializado produz também uma narrativa desterritorializada.
É também o caso de Valêncio Xavier, que por meio de montagens desestabiliza o
discurso mimético que é predominante em boa parte da prosa contemporânea. Esse
modelo entende as imagens como representações de outras imagens. Um aspecto
curioso é a possibilidade de uma terceiro caminho, que mescla as duas
primeiras, ou seja, procura criar efeitos de realidade, Sem precisar recorrer à
descrição verossímil Ou à narrativa causal e coerente. Ou seja, é possível
produzir uma literatura experimental não abrindo mão de uma certa
referencialidade.
Bernardo Carvalho
Milton Hatoum
João Gilberto Noll
No
geral, podemos perceber a diluição da fronteira entre os gêneros como um dos
traços marcantes da literatura produzida no século XXI. Valêncio Xavier, por
exemplo, mistura propagandas, fotografias, fotogramas cinematográficos formando
uma narrativa alinear, influenciando decisivamente a obra do jovem Joca Reiners
Terron. Silviano Santiago produz em sua obra algo que oscila entre o romance e
o ensaio. Outra característica forte é a presença da cidade e da violência, que
a partir de Rubem Fonseca tornaram-se predominantes na literatura do pós-64. É
o caso de Marcelino Freire, Marçal Aquino, Patrícia Melo, Fernando Bonassi. No
entanto, a preocupação excessiva com o presente, a descrença nas utopias, a
cidade caótica, a violência urbana, enfim, toda a hipotética crueza do real
transposta para as páginas literárias começam a dar sinais de esgotamento. Contra
essa “estetização da violência”, a tendência ao memorialismo ou à autobiografia.
Na linhagem memorialista, encontramos Milton Hatoum, e na tendência à
literatura do “eu”, Cristovao Tezza, em o Filho eterno, Silviano Santiago, com
a autobiografia inventada de O falso mentiro, ou heranças, e Chico Buarque, em
o leite derramado, além de Miguel Sanches Neto, Chove sobre minha infância.
Silviano Santiago
Joca Reiners Terron
Daniel Galera
Milton
Hatoum, por exemplo, encontra-se na convergência entre um certo regionalismo
sem exageros folclóricos e o interesse no memorialismo centrado no clã dos
imigrantes árabes no Amazonas, dialogando com a obra de Raduan Nassar Salim
Miguel. A volta a um interesse mais explícito por gêneros narrativos mais
tradicionais, como, por exemplo, o romance memorialista e histórico,
explica-se, provavelmente, pelo esgotamento de um experimentalismo técnico e
formal. Podemos ver em Hatoum a vontade de construir uma boa narrativa, sem
abrir mão das estruturas complexas e de uma perspectiva que multiplica olhares
e vozes, enriquecendo as possibilidades de leitura. É o que pode ser percebido
em Dois irmãos, em que ficamos sabendo da identidade do narrador somente depois
das primeiras 40 páginas do romance. As elipses e incertezas sobre a
consistência da memória, bem como do mistério sobre a identidade do pai do
narrador, são relevadas pela natureza ambígua e fragmentária da narrativa de
Hatoum. Na ausência de certezas e garantias, a relação entre as personagens, é
estabelecida apenas pelo filtro da memória.
segunda-feira, 17 de abril de 2017
A vinda da Família Real e a Formação do Romance no Brasil (apontamentos)
Para compreendermos como se deu a formação do
romance no Brasil é importante traçarmos um rápido panorama sócio-histórico,
tendo em vista que o surgimento deste gênero entre nós não está desvinculado
das transformações ocorridas no século XIX, seja no Brasil ou na Europa.
Em 1808, com a vinda da Família Real,
redesenha-se o mapa social e político do nosso país. A literatura não ficou
imune a essas transformações. O Brasil, ao ser elevado à sede provisória da
coroa portuguesa, transforma-se rapidamente. A causa da viagem, como sabemos,
se encontra na figura de Napoleão que, naquele período era senhor absoluto da
Europa. Seus exércitos haviam dominado grande parte do continente europeu, numa
sucessão de vitórias surpreendentes. Só não haviam conseguido subjugar a
Inglaterra. Protegidos pelo Canal da Mancha, os ingleses tinham evitado o
confronto direto em terra com as forças de Napoleão. Ao mesmo tempo, haviam se
afirmado como senhores dos mares na batalha de Trafalgar, em 1805, quando sua
Marinha de guerra, sob o comando de Lord Nelson, destruiu, no Mediterrâneo, as
esquadras combinadas da França e da Espanha. Napoleão reagiu decretando o
bloqueio continental, medida que previa fechamento dos portos europeus ao
comércio do produtos britânicos. Suas ordens foram imediatamente obedecidas por
todos os países, com uma única exceção: o pequeno e desprotegido Portugal.
Família Real Portuguesa
Pressionado pela Inglaterra, sua tradicional aliada, D. João ainda relutava em
ceder às exigências do Imperador. Por essa razão, em novembro de 1807, tropas francesas
marchavam em direção a Portugal, prontas para invadir o país e destronar seu
príncipe regente. Dom João tinha três alternativas: Ceder às pressões de
Napoleão e aderir ao bloqueio continental; Aceitar a oferta dos ingleses e
embarcar para o Brasil; ficar em Portugal e enfrentar Napoleão ao lado dos
ingleses. A decisão de D. João foi no mínimo curiosa. Enquanto negociava com os
ingleses, enviou uma correspondência a Napoleão concordando com as prerrogativas.
Era tudo um faz-de-conta planejado para fazer o Imperador francês pensar que
estava conquistando o apoio dos portugueses. Portugal era um país relativamente
pobre. Dependia quase que exclusivamente do extrativismo, não era um país
industrialmente desenvolvido. Em 29 de Novembro de 1807, a família real partiu
para o Brasil em três navios, ao todo 16 navios participaram da operação. Entre
10 000 e 15 000 pessoas acompanharam o príncipe. O grupo incluía pessoas da
nobreza, conselheiros reais e militares, juízes, advogados, comerciantes e suas
famílias. Também camareiros, pajens, cozinheiros e cavalariços.
Debret
Quando chegou ao Brasil, o príncipe regente abriu
os portos para a Inglaterra, para corresponder ao acordo feito para que
trouxessem a família real para o Brasil. O Brasil se integrava ao sistema
internacional de produção e comércio como uma nação autônoma. Pode construir
indústrias, abertura de novas estradas, regiões foram mapeadas; introdução do
ensilo leigo e superior; criada a Biblioteca Nacional, o Museu Nacional, o
Jardim Botânico e o Real Teatro de São João, Gazeta do Rio de Janeiro (primeiro
jornal publicado em território nacional), empreendimentos civilizatórios. O
maior desses empreendimentos foi a contratação, em Paris, da famosa Missão
Artística Francesa. Chefiada por Joaquim Lebreton, a missão chegou ao Brasil
1816 e era composta por alguns dos mais renomados artistas da época: Jean Baptiste
Debret; Nicolas Taunay, entre outros. Esses artistas foram responsáveis por
criar um imaginário de nação, ao retratarem não só a família real, mas
principalmente a fauna, a flora e os costumes brasileiros. Suas representações,
fundamentadas principalmente no retrato de paisagens marcaram uma singularidade
da arte produzida no Brasil, incentivando, mais tarde, a produção de uma
literatura voltada para questões da nação e da natureza, como fundamentos para
o surgimento do Romantismo, que segundo Antonio Candido, na Formação da
Literatura Brasileira, consolidou a autonomia de nossa literatura, que vinha se
delineando como sistema desde meados do século XIX, com árcades como Claudio
Manuel da Costa e com agremiações culturais como a Academia dos Seletos e dos
Renascidos.
Em 1820, Dom João VI isentou de taxas
alfandegárias a importação de literatura estrangeira. A liberação cultural, que
vinha ocorrendo desde 1808, aconteceu muito em decorrência da chegada das
primeiras máquinas tipográficas, trazidas na frota que fugia de Portugal. As
tipografias passaram a publicar não só jornais, mas também traduções de obras estrangeiras.
Todos os nossos autores românticos serviram-se do jornal, seja para escrever
crônicas e discursos políticos, seja para publicar seus folhetins alguns anos
mais tarde.
Nesse período, o Brasil despertava o
interesse de intelectuais europeus, como Ferdinand Denis, que publica, em 1926,
Resumo da História Literária do Brasil, incitando os brasileiros a produzirem
uma literatura com temática nacional. No mesmo ano, Almeida Garret inclui
autores brasileiros no Parnaso Lusitano.
Parnaso Lusitano
Depois do retorno de Dom João VI para
Portugal e da Independência dois anos depois, o país vivia um clima de entusiasmo,
pelo menos até 1831, quando o Brasil mergulha numa crise política que levará
Dom Pedro I a abdicar. Em 1834, o encontro de três brasileiros na Europa,
Magalhães, Porto Alegre e Torres Homem, dará origem ao movimento romântico
brasileiro. Em 1836, no mesmo ano que Gonçalves de Magalhães publica Suspiros
Poéticos e Saudades, o jornalista francês Girardin, funda o jornal La Presse e
inventa o romance-folhetim, dando-lhe o acesso do grande público, especialmente
o grande público feminino da burguesia. Girardin, que era editor, barateou o
preço das assinaturas de jornais, baseando o negócio, em vez da venda da
tiragem, nos anúncios. Para garantir sucesso aos anunciadores, ele criou um
público permamente e estável de leitores, publicando folhetins nos jornais. A
tradução desses folhetins franceses nos jornais brasileiros teve imensa
aceitação. José de Alencar, conta em sua pequena biografia Como e Porque Sou
Romancista que, junto a outros colegas de colégio, iam de madrugada esperar o
trem que trazia os jornais, e, lá mesmo na estação, liam o folhetim da semana
debaixo da luz de um lampião. Segundo Bezerra de Freitas, em Forma e Expressão
no Romance Brasileiro, os romances do período refletem naturalmente as
transformações sociais e individuais da época
Émile de Girardin
O introdutor do folhetim entre nós foi João
Manuel Pereira da Silva, autor também de romances históricos. Estudantes e
mulheres, no quadro urbano da sociedade imperial, constituem, pois, o público
literário na sua maior parte. A classe social retratada será a da burguesia e a
alta classe média. Pereira da Silva está entre os mais importantes precursores
do romance-folhetim do começo do romantismo brasileiro. Vindo de Paris, onde
havia se formado em Direito, já a partir de 1838 começa a colaborar em diversas
folhas e jornais. Nesse ano, publica O aniversário de Dom Miguel, em 1828, um
romance de influência totalmente européia. Pereira da Silva o classificou como
um romance histórico, mas é difícil dizer se o texto é um conto, uma novela ou
um romance, pela estrutura formal. Totalmente ambientado em Portugal, o romance
tem nítidas conotações políticas, já que foi escrito durante o conturbado
momento da Regência, quando se questionava a manutenção da Monarquia.
João Manuel Pereira da Silva
Da mesma época, destacam-se Justiniano José
da Rocha, que em 1839 publica Os assassinos misteriosos ou a paixão dos
diamantes, que apesar de ser uma novela, é o primeiro dos textos brasileiros
que têm as características específicas do romance folhetim, como o mistério, as
peripécias e a vingança.
Justiniano José da Rocha
Em 1843, aparece O Filho do Pescador, de
Teixeira e Sousa, considerado geralmente o primeiro romance brasileiro, já que
os outros, como os já citados, apesar de trazerem por vezes essa designação,
têm dimensões de conto ou novela. De maneira que podemos considerar Pereira da
Silva e Justiniano José da Rocha, precursores do romance no Brasil. Ou mesmo
Gonçalves de Magalhães com Amância. Seus consolidadores seriam Teixeira e Sousa
e Joaquim Manuel de Macedo.
Teixeira e Sousa
Para Candido, embora a qualidade literária de
Teixeira e Sousa seja realmente de terceira plana, é considerável a sua
importância histórica, menos por lhe caber até nova ordem a prioridade na
cronologia do nosso romance, do que por representar, maciçamente, o aspecto que
se convencionou chamar folhetinesco do Romantismo. Não há dúvida que O Filho do
Pecador é romance, e romance-folhetim, devido ao número de peripécias,
assassinatos misteriosos, filhos que reaparecem após anos sem notícias, a volta
triunfante de um herói que se supunha morto e que consegue vingar-se. No
entanto, embora ambientado no Rio de Janeiro, mais precisamente em Copacabana,
seu clima gótico lembra mais a ficção européia do que a brasileira. O filho do
pescador conta a história de um casamento malogrado, em que a mulher é adúltera
e assassina.
Na década de 40, do século XIX, o Brasil era
uma sociedade que se firmava no escravo. Nós havíamos saído do primeiro reinado,
das lutas da regência e tínhamos um menino imperador no trono. Nossa literatura
era bastante influenciada pela cultura européia, mais especificamente a de
Portugal e da França.
Joaquim Manuel de Macedo
Em 1844, Joaquim Manuel de Macedo publica A Moreninha, até hoje considerado pelos manuais didáticos como o primeiro romance da literatura brasileira. Como vimos, antes disso, romances foram publicados. No entanto, o primeiro grande romance, assim considerado por consolidar o gênero entre nós, sem dúvidas é o livro de Macedo, uma obra hoje pouco lida, mas com linguagem ágil e agradável como vemos também em outras obras do mesmo autor, como A Luneta Mágica, livro que considero um dos melhores do século XIX.
quinta-feira, 13 de abril de 2017
A EMANCIPAÇÃO LITERÁRIA: NACIONALIDADE INFLUÊNCIAS E TENSÕES
Antes de discutirmos a emancipação da
literatura brasileira, convém abordarmos a questão do nacionalismo, entendido
por Antonio Candido como fundamental no processo de nossa autonomia. Como veremos,
tanto o nacionalismo quanto a autonomia estão repletos de impasses críticos e
teóricos.
Em março de 1973, Machado de Assis publica na revista Novo Mundo o ensaio “Notícia da atual literatura brasileira: instinto de nacionalidade”. Nele, o
bruxo do Cosme Velho observa que um poeta não é nacional apenas por inserir em
seus versos nomes de flores e aves do país, o que pode dar uma nacionalidade de
vocabulário e nada mais. Assim, pode-se apreciar a cor local, mas é preciso que
a imaginação lhe dê contornos. As conhecidas idéias sobre a matéria do instinto
de nacionalidade mostram um momento de maturidade crítica. Nesse processo a
posição machadiana conceitua o nacional como construção e como problema. Machado
toma por errônea a opinião que só vê espírito nacional em obras que tratam de
temas locais, o que demonstra que um escritor pode ser um homem de seu tempo e
de seu país mesmo tratando de assuntos remotos no tempo e no espaço. É o que
pensa Afrânio Coutinho, em Conceito de Literatura Brasileira, ao afirmar que o
sentimento de “brasilidade” só terá eficiência e validade se não se opuser ao
legítimo vaivém de correntes que se entrosam e se vivificam entre o nacional e
o universal. Não é à toa que Haroldo de Campos considera Machado de Assis
nacional por não ser nacional.
Machado de Assis
O crítico Raul Antelo, em Algaravias:
discursos de nação, reflete sobre a radical impossibilidade de se pensar
conceitos de nação e ficção como definidos a priori e livres de controvérsia. Isso
porque os campos da literatura e do nacional não conhecem fronteiras precisas,
podendo, enfim, avançar-se o critério paradoxal da excentricidade como o mais
adequado princípio para a literatura e para o nacional. Não seria fortuito
lembrar que o universo literário espreita as margens do sistema, nunca se
estabilizando em seu interior. Da mesma forma, a ideia de nacional não nos
permite isolar objetos que possamos, a rigor, chamar de nacionais. Não há esses
objetos. Existe o nacional apenas como uma dimensão peculiar do mundo
simbólico, não pressupondo um dado espontâneo, mas apenas uma identidade
socialmente construída. Daí a opção de Antelo pensar o nacional não como uma
tradição, mas como uma tradução, o que problematiza toda uma linhagem crítica
pautada na ideia do nacional como pressuposto para a autonomia, como é o caso
de José Veríssimo e Antonio Candido.
Raúl Antelo
Problema correlato ao da origem e autonomia é
o da nacionalidade e do nativismo. Afrânio Coutinho, que polemiza com Candido
sobre a origem da literatura brasileira, observa, no já citado Conceito de
Literatura Brasileira, três formas de nacionalismo em literatura. Em primeiro
lugar, a literatura compreendida como instrumento de um ideal nacional de
expansão e domínio político de um povo ou nação. Evidentemente, esse
nacionalismo é um dos mais perniciosos para a própria nação da qual se faz
arauto e para os demais países. O segundo tipo de nacionalismo é o do
pitoresco, que valoriza manifestações literárias regionais, cultivando-o e
exagerando-o no pressuposto de que nele reside o verdadeiro caráter da
nacionalidade. A valorização do pitoresco resultou em obras interessantes, no
entanto, não tem sido muito fecundo, pois limita a seleção de materiais
artísticos, não considerando a universalidade necessária à literatura. Mas há
exceções. Pensemos, por exemplo, em algumas manifestações nacionalistas do
romantismo brasileiro. José de Alencar consegue desenvolver com Iracema uma
literatura nacional, ao imaginar a gênese de uma América mestiça, e também universal
ao materializar com presteza a representação do amor e da dor, temas
tipicamente universais. Assim, a literatura de Alencar poderia ser enquadrada
na terceira forma de nacionalismo, o autêntico, que pode aproveitar temas
regionais sem criar uma doutrina que o empobreça. Essa forma equivale ao
instinto de nacionalidade descrito por Machado. Para alcançá-lo é preciso
desenvolver um “sentimento íntimo”. Quanto mais fiel o escritor for a esse
sentimento – as palavras são de Machado – mais nacional (universal) será a
obra.
Antonio Candido
Partimos do pressuposto de que o nativismo é
anterior ao nacionalismo em nossa literatura. É o que pensam a maioria de
nossos críticos e historiadores da literatura. José Veríssimo defende que desde
as primeiras manifestações literárias do Brasil, já podemos entrever uma
postura nativista que desencadearia o sentimento nacionalista. Antonio Candido,
seguindo as pegadas de José Veríssimo, desenvolve a tese a partir da ideia da
nação como fio condutor de nossa autonomia. Para ele, a literatura ajudou a
fundar um imaginário de nação, contribuindo para a nossa autonomia política.
Antes do Arcadismo, existiam apenas
manifestações literárias, que não chegaram a construir um sistema. Sistema esse
pautado pela tríade autor-obra-público. Somente quando esse sistema passou a
operar é que podemos falar em uma literatura brasileira (autônoma). Para
Candido, os árcades foram os primeiros a se empenhar em construir uma
literatura como prova de que os brasileiros eram tão capazes quanto os
portugueses, o que se intensificou depois de nossa Independência. Ou seja, o
movimento romântico consolidou um processo de autonomia que vinha se delineando
desde a obra de Cláudio Manuel da Costa, em meados do século XVIII. Se o
nacionalismo só vai aparecer com força no século XVIII e se consolidar no
século XIX, o sentimento nativista, começa a aparecer ainda no século XVI.
Cláudio Manuel da Costa
Sobre esse fato vale lembrar do conceito de
obnubilação, desenvolvido por Araripe Junior, segundo o qual o europeu aqui
chegando obnubilava a vida que deixou para trás. Esse processo modificava
intensamente o homem, gerando um gradativo esquecimento dos laços afetivos com
a Europa, o que favorecia um sentimento de apego à terra que começava a ser
colonizada. Dessa maneira, um novo homem criou-se desde o primeiro instante em
que botou os pés no novo Mundo. Daí a polêmica entre Candido e Coutinho, pois
este acredita que a literatura brasileira, desde o século XVI, já não é um mero
“ramo” ou “galho” da literatura portuguesa. E o fator responsável por isso foi,
em sua opinião, o apego a terra, ou seja, o nativismo, que já aparece em
textos de José de Anchieta. Ao lado da corrente jesuítica, outra se formou. A
da exaltação da terra, também com intenções persuasivas, criando-se assim um
verdadeiro ciclo de literatura nativista, um novo mito do eldorado ou terra
prometida, rica e farta, habitada pelo bom selvagem de Montaigne. Sobre essas
utopias que se iniciaram com Tomas Morus, passando por Campanella e Francis
Bacon, até os textos socialistas do final do século XIX , merece destaque o
livro Visão do Paraíso, de Sérgio Buarque de Holanda, que analisa as
representações históricas e literárias que personificaram essas visões. É o
caso também de boa parte da literatura de informação produzida por figuras como
Pero Magalhães de Gandavo, Gabriel Soares de Sousa, Rocha Pita, entre outros.
Afrânio Coutinho
Para José Veríssimo, no período colonial,
salvo raras exceções, a literatura praticada aqui não fazia senão imitar
inferiormente a literatura portuguesa. Assim, autores como os do barroco, em
sua maioria, são considerados como poetas medíocres. É justamente por
produzirem uma obra desligada das idéias de nacionalidade e nativismo que eles
são sequestrados dos estudos literários. No entanto, poderíamos pensar, na
esteira do pensamento do crítico e escritor cubano José Lezama Lima, que os
escritores barrocos estavam pensando a arte de um ponto de vista
pós-nacionalista, para usar uma expressão de Décio Pignatari, mesmo antes do
espaço geográfico latino-americano constituir nações tal como as conhecemos.
Lezama Lima consegue desconstruir o binômio nacional cosmopolita ao pensar o
barroco como arte da contra-conquista e não como arte da contra-reforma. Isso
porque esse movimento artístico do século XVII é considerado o “começo genial”
de nossa literatura. Nas suas palavras ele foi uma tomada de consciência, uma
resposta artística do colonizado em relação ao colonizador. Uma espécie de
antropofagia pré-oswaldiana, já que foi por meio da arte que o artista barroco
(colonizado) pode colonizar esteticamente o colonizador. É caso de Aleijadinho
que mesclou formas barrocas europeias com traços artísticos afro-indígenas. É
também o que fez o índio Kondori, na Igreja de San Lorenzo de Potosí (sobre isso, já escrevi aqui há algum tempo), ao
misturar a figura larval de anjos barrocos com entidades mitológicas da cultura
inca. É justamente por pensar a arte além das fronteiras do “nacional” que o
artista barroco conseguiu desenvolver um instinto não menos nacional de
nativismo e nacionalidade.
José Veríssimo
Isso tudo apenas para concluirmos que os
conceitos de nacionalidade e nativismo são problemáticos. Uma literatura
autônoma não se faz apenas com temas e vocabulário locais. Perceber isso é
fundamental para entendermos um pouco melhor aquilo que se convencionou chamar
de literatura brasileira. Lembremos da previsão de Marx e Engels, ao afirmarem
que em lugar do antigo isolamento das províncias e das nações bastando-se a si
próprias, desenvolvem-se relações universais. E que o que é verdadeiro em
relação às produções materiais o é também no tocante às produções do espírito.
A estreiteza e o exclusivismo nacionais tornam-se cada dia mais impossíveis e
da multiplicidade das literaturas nacionais nasce uma universal, pós-autonômica
e superior a qualquer tentativa de nacionalidade ou nativismo.
Suposto retrato de Aleijadinho
Não seria fortuito lembrar que, em 1827,
Goethe, em uma carta endereçada a Eckermann, vai cunhar o termo Weltliteratur,
defendendo a emergência de uma literatura universal em detrimento de uma
literatura nacional. Penso que alguns séculos depois de Aleijadinho, com a
antropofagia oswaldiana, no século XX, tomamos consciência da necessidade de
pensar o nacional em relacionamento dialético ou dialógico com o universal.
Haroldo de Campos, em textos como “Da razão antropofágica” e “O sequestro do
barroco na formação da literatura brasileira”, ambos da década de 80, vai
recorrer ao nacionalismo como movimento dialógico da diferença e não como signo
platônico de uma origem.
Logo, mais importante do que conhecer esses
discursos de nacionalidade e nativismo é saber onde eles falham, de que maneira
constroem ficções, visões de mundo, tradições e traduções.
José de Alencar
Onde reside a nacionalidade da literatura?
Onde encontra ela seus elementos nacionais? Sobre isso, e para finalizar, vale
lembrar da polêmica entre José de Alencar e Gonçalves de Magalhães (Alencar vai
escrever uma série de artigos na imprensa carioca criticando Magalhães e
assinando com um pseudônimo). No dizer de Alencar, Magalhães formulou a questão
de um modo errôneo. O poema “Confederação dos Tamoios” fracassou no seu
instinto de nacionalidade, porque embora estivesse no caminho certo em busca de
uma nacionalização literária, mediante a exaltação dos feitos e da terra
brasileiros, não colocava com felicidade a solução do problema formal, ao
escolher um gênero cediço e adaptado a literaturas estranhas e antigas como a
epopeia. Ou seja, queria produzir uma literatura brasileira, mas sem produzir
uma linguagem, uma forma, brasileira. Tomava como mote o tema dos índios, mas
“colocava em suas bocas palavras estranhas”, próximas apenas da cultura
européia. Para Alencar o problema passava pela questão da linguagem, o que a
maioria dos escritores anteriores a Alencar, como Basílio da Gama e Santa Rita
Durão não conseguiram fazer. Apesar de que o poema Caramuru, de Durão já pode
ser considerado uma gênese do sentimento nacionalista que se intensificaria no
romantismo do século XIX.
Frei José de Santa Rita Durão
O amor de Diogo Álvares Correia por Paraguaçu, que é
alegoria de um amor do colonizador pela terra que descobriu e começou a
colonizar será aprimorado por poetas como Gonçalves Dias, em poemas como Canção
do Exílio, Juca Pirama e Os Timbiras. É por isso que Alencar mergulhou não
apenas nos temas locais e no seu vocabulário correspondente, mas principalmente
no ritmo, na sintaxe, na musicalidade da língua indígena, o que o fez ser
considerado por críticos como Henriques Leal, José Feliciano de Castilho,
Pinheiro Chagas, Franklin Távora e Joaquim Nabuco um assassino do vernáculo,
uma insurreição à língua portuguesa. Só o tempo conseguiu provar o contrário,
mostrando que a literatura brasileira, para firmar-se, necessitava não só de
uma investigação sobre a linguagem, como da transcendência da mera
nacionalidade ou nativismo.
sábado, 8 de abril de 2017
Tendências estéticas da modernidade na poesia brasileira (apontamentos)
Au foyer du théatre, de Constantin Guys
Antes de discutirmos as
tendências estéticas da modernidade na poesia brasileira, que a nosso ver
surgem com a poética simbolista, devemos especificar algumas questões que podem
nos ajudar a entender melhor tais tendências. Concentraremo-nos na poesia finissecular européia tendo em
vista que sem entendê-la, pelo menos em parte, é praticamente impossível
entender a modernidade brasileira.
Comecemos pensando o
conceito de “modernidade”. Em 1859, depois de visitar uma exposição do pintor
Constantin Guys, Charles Baudelaire escreve uma coletânea de artigos de crítica
de arte intitulada “O pintor da vida moderna”. Nesses textos, o autor das
“Flores do Mal” desenvolve algumas das primeiras impressões sobre aquilo que se
convencionou chamar de modernidade (aliás, Baudelaire foi um dos inventores da
palavra). O poeta parte do pressuposto de que a arte possui duas metades. A
primeira refere-se ao contingente, ao efêmero, ao transitório, ou seja, a modernidade,
e a segunda refere-se ao infinito e ao eterno que ela pode presentificar.
Constantin Guys
A
modernidade seria pautada não só pela capacidade de ver no deserto urbano a
decadência do homem e de pressentir uma beleza misteriosa não descoberta até
então, mas também pela capacidade de extrair o eterno do transitório. Esse é o
problema específico para Baudelaire, ou seja, a capacidade da poesia numa
sociedade comercializada e dominada pela técnica.
A principal característica
da modernidade seria a perda da inocência e a desesperança pelo que virá.
Essa desolação, que se originou do processo de racionalização que surgiu no
Ocidente no final do século XVIII, gerou uma crise da linguagem que é
sintomática na modernidade. Uma crise que se intensificou a partir de uma outra
crise, aquela gerada pela Segunda Revolução Industrial, nas duas últimas
décadas do século XIX. Do sistema capitalista surgiu uma nova ordem econômica
que beneficiava a elite européia em prejuízo da maioria da população,
constituída pela classe média e pelo proletariado. O intenso progresso
científico e técnico não conseguiu mascarar um clima de intranquilidade e
pessimismo.
Baudelaire
Apesar de Baudelaire ser
considerado o precursor da modernidade, seus legítimos fundadores, na opinião
dos críticos, são os poetas simbolistas Mallarmé e Rimbaud. Foram eles que
colocaram em prática aquilo que Baudelaire vinha desenvolvendo anteriormente no
âmbito teórico. Mallarmé percebeu a crise não apenas histórica (decadência),
mas também formal que circundava a produção literária do período, o que o levou
a escrever o texto “Crise de Verso”, em que analisa a ruptura causada pelo
enjambement, que fez com que o verso perdesse a sua vocação para o natural,
para o sentencioso e para o aforístico (caso do verso alexandrino francês tradicional).
A “torção da linha”, desencadeada pelo enjambement foi responsável pela crise
da linguagem que abriu as portas para o poema em prosa e de verso livre,
praticados abundantemente pelos modernos, modernistas, e contemporâneos.
Mallarmé
A tensão dissonante é o
objetivo das artes modernas em geral. Sua obscuridade e desarmonia são
intencionais. A poesia moderna quer tornar estranhos os conteúdos. Antes da
modernidade, a lírica era entendida como linguagem em estado de ânimo, da alma
pessoal. A poesia já não quer mais ser medida em base ao que comumente se chama
de realidade. Ela prescinde da humanidade, no sentido tradicional, da
experiência vivida, afastando o “eu” do artista. O “eu” moderno é um eu
cindido, desterritorializado e o poeta passa a ser agora um operador da língua
(noção que sobrevive na poesia de Carlos Drummond de Andrade, no conceito de
Gauche).
Além dos sintomas
premonitórios da modernidade serem figurados pela fragmentação da linguagem do
poeta romântico Novalis e da teoria do grotesco, delineada por Diderot e
aprimorada por Vitor Hugo, devemos lembrar da despersonalização como fundamento
da poesia. A lírica moderna desconstrói a união entre poesia e pessoa. Fora da
França, Edgar Alan Poe foi quem separou de maneira contundente a lírica e o coração.
Baudelaire, leitor de Poe, defendia a poesia como trabalho, como construção
sistemática de uma arquitetura e não como embriaguez do coração (Noção que
sobrevive com força nas concepções poéticas de João Cabral de Melo Neto).
Assim, é sob o signo da despersonalização que nasce o poetar moderno (elogio do
artifício). Baudelaire acreditava que tudo o que é natural é monstruoso e tudo
o que é artificial, magnífico e sublime. Acrescentemos à figura de Baudelaire,
Fernando Pessoa, para quem o poeta é um fingidor e Rimbaud, para quem o “eu” é
sempre um outro. A poesia de Rimbaud continua sendo a linguagem originária da
poesia moderna. Começou com versos encadeados, passando aos versos livres e ao
poema em prosa. Mallarmé, por sua vez, defendia a poesia como fruto do
intelecto e como manejo com a língua.
Rimbaud
Podemos concordar que a
maior parte da poesia modernista é herdeira direta das experimentações da
poesia simbolista, no que ela tem de moderna, principalmente devido à liberdade
formal, do verso de uso irregular, rompendo com toda submissão obrigatória, e
permitindo assim um reaprendizado da leitura como tomada de consciência dos
mecanismos significantes.
Nossos primeiros modernos,
os simbolistas, foram leitores de Baudelaire, Rimbaud, Verlaine e Mallarmé. Aqui,
o movimento simbolista iniciou-se oficialmente com a publicação de dois livros
do poeta catarinense Cruz e Sousa: Missal e Broquéis, ambos de 1893. Mas antes
disso já havia uma movimentação em torno de uma nova poesia que já vinha sendo
anunciada em 1879, por Machado de Assis, no artigo A Nova Geração.
Se por um lado o simbolismo
influenciou o surrealismo (pela ideia do eu cindido, o inconsciente da
psicanálise), por outro, podemos encontrar influências sobre o expressionismo,
tal como Paulo Leminski observou no seu livro sobre a vida e obra de Cruz e
Sousa. Augusto de Campos, por sua vez, encontrou em Pedro Kilkerry (poeta
simbolista baiano) o precursor não só do surrealismo, mas da poética
cinematográfica de Oswald de Andrade. É o caso também de Sousândrade
considerado pelos concretistas como um dos precursores do modernismo, por
antecipar certas técnicas poéticas como o uso de versos livres, neologismos,
etc.
Pedro Kilkerry
No Brasil, a modernidade
coincide com a proliferação de imagens técnicas. Há uma vontade de modernização
que invade o país, o que pode ser percebido no processo de urbanização
desenvolvido pelo prefeito Pereira Passos (1905), uma espécie de Barão
Haussmann dos trópicos. Os primeiros automóveis começam a circular pelas
cidades. Os jornais proliferam as suas tiragens, a luz elétrica é implantada. A
art nouveau entra na moda. É o clima da Belle époque. Um cenário que será
fotografado por artistas como Marc Ferrez e Klumb. Susan Sontag, em Ensaios
sobre Fotografia, observa que uma sociedade se torna moderna quando uma de suas
principais atividades passa a ser a produção e o consumo de imagens. Nesse
contexto, a literatura não só representa essas inovações técnicas (cinema,
fotografia, literatura), como incorpora seus procedimentos ao próprio texto.
Kilkerry, por exemplo, com as suas Kodaks (crônicas do cotidiano) “enforma” a
produção cultural da época, ou seja, incorpora procedimentos técnicos oriundos
dessas inovações. O que de certa forma será aprimorado por Antonio de Alcântara
Machado, em Pathé Baby, em 1926. No livro, Machado reúne crônicas de uma viagem
que realizou na Europa. Até aí, nada de novo, já que a literatura de viajantes
é uma tradição da literatura brasileira. O aspecto inovador estava nas
ilustrações que acompanhavam as crônicas. Elas não apenas ilustravam os textos,
como construíam paralelamente uma outra narrativa, que representava a projeção
de um filme de cinema mudo, cuja trilha sonora era produzida por um pequeno
número de músicos. De maneira que podemos ler essa outra narrativa como se
estivéssemos assistindo à projeção de um filme. É o que fará Oswald de Andrade,
de outra maneira, não só nos livros Memórias Sentimentais de João Miramar, mas em toda a sua poética, ao operar com cortes e
repetições, procedimentos oriundos do cinema, como bem observou o filósofo
Gilles Deleuze.
O nosso modernismo nasce,
assim, sob o signo de um confronto entre a poesia como artefato e a arte no
horizonte da reprodutibilidade técnica. De um lado as experimentações
simbolistas, de outros o ambiente urbano, a velocidade das máquinas, a fé no
progresso industrial. Flora Süssekind, em Cinematógrafo de Letras, observa que
no confronto entre letras e técnicas, ora se dessacralizava a arte que se
queria pura, ora roubando-se o arsenal técnico de seu contexto de origem,
desautomatizava-se a sua utilização.
A modernidade brasileira tem
sido lida por uma rua de mão única. Fala-se das vanguardas europeias como o fio
condutor da produção literária da época. No entanto, as experimentações
simbolistas foram tão ou mais importante que os ismos europeus, já que
anunciaram a crise da linguagem, permitindo a emergência das próprias
vanguardas. E isso não aconteceu apenas no âmbito da literatura. A pintura de Tarsila
do Amaral e Anita Malfati, por exemplo, não foram influenciadas apenas pelo
cubismo, pelo expressionismo e pelo impressionismo, mas também está
atravessada, consciente ou não, pela pintura acadêmica do fina do século XIX
produzida por pintores como Belmiro de Almeida e Almeida Júnior (sobre isso há
um importante estudo do professor Tadeu Chiarelli).
Oswald de Andrade
Se por um lado Oswald foi
influenciado pelo futurismo, disseminando-o pelo Brasil após o seu retorno da
Europa, por outro é tocado pelo espírito inovador e mallarmaico de Pedro
Kilkerry. Aliás, as vanguardas foram vistas com desconfiança por vários
modernistas. Basta lembrar do fracasso da viagem e Marinetti (ciceroneado por
Graça Aranha), ao Brasil, em 1926. Manuel Bandeira admirava mais a poesia
finissecular do que as vanguardas, e chegou a escrever um importante estudo
sobre a obra de Mallarmé, apresentado na Academia Brasileira de Letras em 1942.
Mário de Andrade também desconfiou dos “ismos”, chegando a ficar incomodado
quando Oswald o chamou de “Meu poeta futurista”. Mário considerava o movimento
um avanço estético, mas também um retrocesso político, pelo seu aspecto
fascista. As concepções modernas/modernistas de Mário aparecem com força em
estudos teóricos como “Prefácio Interessantíssimo” e “A escrava que não é
Isaura”. Neste último, interpreta o modernismo como uma poética da
simultaneidade que mistura Mallarmé, Rimbaud e Gonçalves Dias.
O próprio Oswald parece que
transcendeu as Vanguardas, apesar de ser influenciado em relação ao verso
sintético, livre, branco e de palavras encadeadas, ou mesmo na ideia de
manifestos. Não podemos esquecer da sua
poesia minuto e de seus poemas piadas que fundaram uma linhagem que predominou
até a poesia marginal de Cacaso e Chico Alvim.
Seu livro Poesia Pau Brasil foi uma espécie de revolução copernicana
da literatura brasileira, como afirmou
Haroldo de Campos. Poemas como “Amor Humor”, ápice da concisão, ou mesmo os
ready-mades que ressignificaram a literatura dos viajantes, bem como as suas
montagens, são sintoma de uma poesia cubista e cinematográfica.
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