sábado, 24 de agosto de 2019

Carlos de Assumpção, poeta vivo



Cena do filme que Alberto Pucheu prepara sobre Carlos de Assumpção

Tenho em minhas mãos um exemplar de “Protesto e outros poemas”, de Carlos de Assumpção, poeta que descobri recentemente graças ao professor, amigo e também poeta Alberto Pucheu, que me enviou o livro no mesmo período em que produz um filme sobre o autor. Carlos de Assumpção é um desses bardos raros e difíceis de serem encontrados nas livrarias. Seus poemas são urgentes e necessários em tempos tão obscuros. Aprecio seus versos não apenas por essa urgência, imantada por uma intenção claramente política, mas também pela beleza que essa poesia na amplidão de nosso tempo move ao montar tantas peças de um quebra-cabeça histórico e social que revela o quanto existe ainda de escravidão na vida de um povo.
Encontrei alguns vídeos no youtube em que Carlos de Assumpção aparece declamando poemas como “Protesto”, de uma beleza pujante que vem talvez de uma estranha aliança entre uma suposta simplicidade do verso e uma imponência poética, uma grandeza que se encontra não apenas nas palavras do escritor, mas também no seu jeito de dizer, no seu modo estar diante dos versos, da vida e da câmera. Destaco também a leitura do poema “Batuque”, lindamente musical quando declamado pelo autor, tudo fruto de um batuque trazido um dia lá doutro lado do mar.


                                                               Foto de: Wilker Maia

O poeta, feito um griô, cultua o sangue sagrado dos ancestrais, ao mesmo tempo em que protesta com suas “palavras de fogo” em busca de um mundo menos injusto, menos arrogante, menos preconceituoso, mais alegre, mais sábio, mais musical, mais justo. O grito de “Protesto” é o grito do negro que não se cala e que não aceita mais viver “no porão da sociedade”: “Mesmo que voltem as costas / às minhas palavras de fogo / não pararei de gritar / não pararei / não pararei de gritar // Senhores / eu fui enviado ao mundo / para protestar / mentiras ouropéis nada / nada me fará calar / (...) Senhores / o sangue dos meus avós / que corre em minhas veias / são gritos de rebeldia”.  Convido o leitor a ver e ouvir poema e poeta no registro para constatar o que digo.



Em muitos dos textos que integram o livro, Carlos de Assumpção revisita temas e cenas cotidianas nas quais reconhecemos situações sociais de desigualdade e injustiça. Em “Destituição”, por exemplo, o poeta relembra o quanto o branco usurpou o negro ao longo da história: “Cadê o samba / que era meu / o branco tomou e deturpou / cadê o branco / tá por aí / ganhando dinheiro / com o samba que roubou”. No mesmo poema, a dimensão religiosa também é evocada: “Cadê Iemanjá que eu trouxe da África / Cadê Iemanjá que era negra como eu sou / Tá dependurada na parede / onde o branco a dependurou / pintada de branco como o branco a pintou”. Em “Eclipse”, encontramos um dos poemas mais profundos do livro. É quando o poeta negro se olha no espelho e não se vê: “Olho no espelho / e não me vejo / não sou eu quem está lá // senhores / onde estão os meus tambores / onde estão meus orixás?”. Para o poeta, ser negro não é apenas uma questão cor: “Ser negro não é ser preto / ser preto não é ser negro / cor de pele não é tudo / negro é quem se sente negro”. E nesse processo de identidade, Zumbi é um dos heróis evocados em vários poemas: “Eu sou descendente de Zumbi / Zumbi é meu pai e meu guia / me envia mensagens do Orum / meus dentes brilham na noite escura / afiados como o agadá de Ogum”. Em outro poema: “Zum Zum Zum / Guerreiro da Serra / Sob as estrelas acesas / na madrugada / nó do ebó na encruzilhada”. Em meio a dores e tristes constatações, brotam versos esperançosos e profundamente poéticos como esses: “Nós somos Dons Quixotes não importa / de sonhadores o mundo tem precisão / a vida será céu quando todos os homens / trouxerem as estrelas aqui pro chão”. Em suas raízes o poeta reencontra o axé que jorra onde a vida faz sentido. Em “Lei Áurea”, o poeta desconstrói o mito para contar a “história que a história não conta”, lembrando aqui dos versos do épico samba enredo da Mangueira, em 2019. No poema o mito dá lugar à realidade: “Viva a princesa Isabel / viva a senhora redentora / agradecimento profundo / à bondosa princesa que em maio / nos deu de bandeja a Lei Áurea / Lei Áurea verdadeiro cheque sem fundo”.  

                                        Foto: http://unegroriodejaneiro.blogspot.com.br/

Alberto Pucheu escreveu sobre o contato que teve com Carlos de Assumpção, enquanto realizava um filme sobre ele: “Ter ficado 3 dias com o poeta Carlos de Assumpção, entrevistando-o em sua cidade, em sua casa, ter ficado 3 dias inteiros com ele, é um antídoto para o que hoje vivemos no país. Poderia dizer que seu Carlos é um outro país, um país à parte, que deveria ser um país de fato majoritário, o nosso país. Um poeta negro, de 92 anos, com uma capacidade de gerar amor em torno dele imensa. Tudo nele é generosidade, carinho, afeto, inteligência, alegria, intensidade e muita vitalidade”. Aguardemos o filme. Aguardemos felizes por ele.

Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR), em 24 de agosto de 2019

sexta-feira, 2 de agosto de 2019

Claudia Andujar e a Luta Yanomami



Está aberta até novembro deste ano, no Instituto Moreira Salles, do Rio de Janeiro, a exposição “Claudia Andujar: A luta Yanomami”, que apresenta uma retrospectiva do trabalho desta fotógrafa e ativista que nasceu na Suíça, se naturalizou brasileira e, a partir dos anos setenta, começou a se interessar pelo povo Yanomami, retratando seus costumes e, ao mesmo tempo, lutando por suas causas. A exposição já passou por São Paulo e rendeu um belo livro-catálogo, organizado por Thyago Nogueira e editado em 2018 pelo IMS, que reúne reproduções de imagens que compõe o acervo disponível na mostra, bem como uma série de textos que apresentam e comentam a vida e obra dessa artista de oitenta e oito anos que teve um papel fundamental no registro dos Yanomami.


Folhear as páginas da magnífica publicação é uma forma de passear pela exposição, conhecendo além das imagens que compõe sua obra poético/fotográfica, uma luta política que já rendeu a elaboração não só da Comissão Pela Criação do Parque Yanomami (CCPY), mas também a idealização de programas de saúde que contribuíram para a sobrevivência de muitos índios. Tudo isso gerou uma sólida amizade entre a artista e os povos tradicionais amazônicos.

Andujar e índia

A convivência com a floresta ao longo dos anos transformou a vida de Andujar, uma judia que perdeu boa parte da família em campos de concentração e que depois de fugir com a mãe, chegando aos Estados Unidos e depois ao Brasil, continuou lutando pela sobrevivência, agora dos índios e sua cultura: “Esse pequeno mundo na imensidão do mato amazônico era meu lugar e sempre será. Estou ligada ao índio, à terra, à luta primária. Tudo isso me comove profundamente. Tudo parece essencial. E talvez nem entenda tudo, e não pretendo entender. Nem preciso, basta amar. Talvez sempre procurei a resposta à razão da vida nessa essencialidade. E fui levada para lá, na mata amazônica, por isso. Foi instintivo. À procura de me encontrar”, escreveu a fotógrafa em um depoimento publicado em 1975, no jornal Ex-. Esse encontro com o mundo indígena é um encontro consigo mesma, via fotografia: “Fotografar é processo de descobrir o outro, e através do outro, si mesmo”. Essa imersão na vida Yanomami produz uma ligação na qual a realidade do outro deixa de ser uma outra realidade, passando a ser uma espécie de prolongamento de seu próprio mundo e vice-versa. É por isso que ela não sente saudades quando volta para casa, porque a casa de todos é uma só, o mundo é a casa que temos (Lembre-se: os índios quando lutam pela floresta estão lutando pela nossa sobrevivência também). Em suas anotações de 1974, pode-se ler: “Não me sinto mais uma estranha. Este mundo ajuda a me compreender e a aceitar o outro mundo em que me criei. Os dois mundos estão se juntando, num grande abraço. É, para mim, um mundo só! Não sinto saudades!”. Viajar parece ser a melhor forma de se voltar para casa.


O trabalho de Andujar, apesar de ter sido divulgado principalmente por meios jornalísticos, revistas de reportagens nos anos 70, suplanta a linguagem jornalística, aproximando-se de uma dimensão poética, já que ela está mais preocupada em narrar uma experiência do que em contar uma história ou representar a realidade. Lembremos com Susan Sontag que a fotografia apresenta uma interpretação da realidade tanto quanto uma pintura. Uma das marcas disso em sua obra ameríndia pode ser percebida não apenas no seu olhar poético que pervive nas cenas que registrou, mas também nos aspectos técnicos que envolvem uma superação de linguagens tradicionais ou a inserção de técnicas inusitadas, como nos apontou Thyago Nogueira, em um dos textos que integram o livro: “Fotografar na mata fechada também é difícil, e a pouca luz que atravessa as copas a obrigava a usar filmes de alta sensibilidade e velocidades de 1/8s e 1/15s, com abertura de f.3.5 no diafragma, que borrava os movimentos rápidos. Nas imagens feitas à época, Andujar espalhou vaselina nas bordas da lente da câmera, criando um desfoque radical que confere encantamento onírico às imagens, como no banho de jovens num riacho”. O uso por vezes de infravermelho ou de desfoques propositais criam efeitos oníricos também nos registros de rituais xamânicos, o que mostra que o trabalho da fotógrafa é bastante subjetivo e propõe uma outra relação com o real, em seu trabalho simultaneamente artístico, etnográfico e jornalístico.




O encontro com o outro ao qual a fotografia de Andujar nos convida é potencializado por essa propensão poética, o que sugere que a arte suscita uma dimensão política mais profunda se nela prestarmos mais atenção. E o encontro com o outro – índio - que somos nós mesmos, índios que somos (em termos empáticos, genéticos e culturais), via poesia/fotografia/cinema é capaz não só de promover o prazer estético, mas principalmente de ampliar nossa empatia pelo próximo, alargando nossa percepção e oferecendo ao nosso olhar um perspectivismo fundante. A saber, nunca mais olhar de forma neutra as atrocidades que vimos presenciando todos os dias, a destruição de nossos povos tradicionais, o genocídio de tantos em prol de uma política neoliberal devastadora. Vejamos as fotos de Claudia Andujar e nos aprofundemos em sua luta, para olharmos os Yanomami com outros olhos. Prestemos atenção em Davi Kopenawa e suas palavras de salvação contra a Queda do Céu. Ouçamos Ailton Krenak e suas ideias para adiar o fim do mundo. Leiamos Kaká Werá Jecupé, sua voz de trovão e vento, a pensar num novo tempo. Ao invés de imaginarmos uma nova democracia, que possamos ir mais longe, imaginando um novo mundo. Para finalizar, lembremos que enquanto era inaugurada a exposição de Andujar em São Paulo, o deputado Jair Bolsonaro era eleito presidente do Brasil e ameaçava rever a demarcação de terras indígenas. A profecia vai se cumprindo. Tem muita coisa absurda acontecendo sob os nossos olhos. Basta ter olhos de ver.




Este texto é dedicado à memória do líder indígena Emyra Waiãpi, assassinado há alguns dias em meio a uma invasão de garimpeiros, no interior do Amapá. É dedicado também a muitos outros, que vão desaparecendo sem chamar a atenção, virando cacos da história embora estrelas no céu.


Publicado no jornal Caiçara, em 03 de Agosto de 2019