sábado, 29 de dezembro de 2018

Sylvio Back, Yndio do Brasil




Acabo de publicar no mais recente número da revista argentina "Jardín de los Poetas" um artigo sobre o filme Yndio do Brasil, de Sylvio Back, que reúne uma série de fragmentos de obras cinematográficas brasileiras e estrangeiras que abordaram o índio ao longo do século XX. A partir da leitura de Georges Didi-Huberman, proponho uma reflexão sobre a potência poética e política do filme, que desmonta os sentidos tradicionais das obras abordadas, explorando a montagem como procedimento formal e como método de conhecimento. Ao mergulhar no que poderíamos chamar de poética ameríndia, Sylvio Back faz do cinema um veículo de arte e resistência.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA: reflexões sobre o tempo




No final do ano passado, fiz aqui neste espaço um balanço de 2017 no que se refere às leituras literárias que realizei naquele período. Todo final de ano é tempo de refletir sobre o que passou na expectativa de criar um horizonte de possibilidades para o tempo que virá.
Em 2018, para além das obras que apresentei nesta coluna, gastei o meu tempo com outras leituras não menos inestimáveis. É uma pena não ter tempo para comentar sobre elas. Certa vez, César Aira escreveu que ler, como todas as demais atividades, “é um modo de ocupar o tempo”. Poderíamos substituir o verbo ocupar pelo perder, a título de brincadeira. Brinquemos rapidamente com o tempo (aliás, brincar é uma das formas mais interessantes de gastá-lo, e vem daí o sentido de sua inutilidade demasiado prazerosa).


Suponhamos que eu gaste aproximadamente três minutos para ler a página de um livro e ele tenha duzentas e cinquenta páginas (alguns podem ter mais ou menos, tire-se uma média). Isso significa que eu gastaria setecentos e cinquenta minutos para lê-lo, ou seja, umas doze horas e meia. Conto aqui o tempo bruto, sem pausas para descanso ou outras atividades. Se eu ler uma média de 60 livros no ano (um por semana, mais ou menos), já são setecentas e cinquenta horas de leitura, ou seja, algo em torno de trinta e um dias, o que equivale a um mês de leitura ininterrupta. O cálculo é apenas hipotético, portanto sem precisão, mas revela já um dado assustador, o valor que damos aos grifos que chamamos de textos.


Dobrando o tempo dessa atividade ao considerar a leitura de jornais, revistas e outros veículos que contemplam a literatura, poderíamos aumentar a dose para dois meses de pura leitura. Isso sem considerar o tempo que gastamos lendo ensaios acadêmicos, textos de alunos a serem avaliados ou revisados, provas a serem corrigidas, placas de trânsito, bulas de remédio, legendas de filmes, e-mails, mensagens de celular, manuais de instrução, outdoors, cardápios, extratos bancários, horóscopo, etc etc etc. Isso sem considerar o tempo que se gasta para se escrever uma página, bem maior do que aquele que gastamos para lê-la (o tempo seria multiplicado ainda mais). São vários textos escritos para o jornal durante o ano, alguns artigos científicos, uma série de relatórios da Universidade, etc etc etc. São coisas do ofício. Concentremo-nos apenas na leitura gratuita. Quantas outras coisas poderíamos fazer ou inventar com esse precioso tempo? Mas talvez resida nesse dispêndio a altivez de nossa vida, fora de qualquer ideia capitalista de acúmulo econômico do tempo. Georges Bataille chegou a escrever sobre o Potlatch, uma cerimônia religiosa de tribos indígenas norte-americanas na qual, depois de um longo período de acúmulo de bens (como alimentos, por exemplo), gastava-se tudo em apenas uma festa, valorizando-se assim o puro gasto. Penso que a leitura desinteressada seria uma espécie de Potlatch. Ler é uma festa.


Talvez precisemos ler menos para viver mais, no entanto quem garante que ao abandonarmos os livros seremos mais felizes, melhores pais, cônjuges, filhos, amigos, cidadãos? Imagino que quem joga e assiste ao futebol toda semana, investe o seu tempo em algo que lhe dá prazer de forma não muito diferente. E a importância do que lemos e escrevemos pode não ser maior do que a beleza e o prazer que podemos encontrar em uma partida esportiva. São formas de brincar e de gastar o tempo. Um jogo pode ser mais trágico, belo, ou filosófico que uma peça teatral, por exemplo. Nelson Rodrigues sabia disso. Rimbaud abandonou a literatura para viver a vida ao se transformar em um viajante e traficante de armas na Etiópia. Não teria sido essa aventura sua obra mais poética? Se o tempo do Natal é tempo de reflexão, fica, então, lançada a questão.


Vinícius de Moraes, um poeta que tenho descoberto e redescoberto com alegria imensa e curiosidade renovada desde há alguns anos, ao escrever um poema sobre o Natal, em 1946, deixou de lado os aspectos folclóricos e religiosos da data para refletir sobre o motivo da vida, ou seja, sobre aquilo para o que fomos feitos, tudo isso pensando no tempo. No texto, o escritor (libriano como eu) se inspira no Natal para tecer um olhar não apenas sobre o nascimento (assunto indissoluvelmente ligado a essa festividade), mas também sobre o andar da carruagem da vida e sobre a morte. Segundo Vinícius, fomos feitos para “lembrar e ser lembrados”, para “chorar e fazer chorar”, e para “enterrar os nossos mortos”. Na última estrofe, ele observa que fomos feitos para a “esperança no milagre”, para a “participação da poesia”, e para “ver a face da morte”. E finaliza escrevendo: “(...) de repente nunca mais esperaremos... / hoje a noite é jovem; da morte, apenas / nascemos imensamente”. Retirar a morte dessa aura de horror e vê-la principalmente como uma fonte de vida, ou melhor de renovação, é mais do que uma ideia para Vinícius, mas parte de uma maneira singular e religiosa de ver a vida. Nada acaba, tudo se transforma. A expectação do nascimento de Cristo, que se repete por meio do rito, aponta de certa forma para a expectação de um novo período, um novo ano, que nasce como Cristo, e nos convida a renascer com ele. Vinícius chegou a escrever outros poemas sobre o Natal. Um deles integra a famosa série da “Arca de Noé”, pensada para as crianças, e outro acompanha uma crônica de 1953, que se encerra com a seguinte estrofe: “Muito tempo faz... / mas ninguém olvida / que é um dia de paz... / porque fez-se a vida!”.



Na imaginação de Mario Quintana, lá bem no alto de um décimo andar do Ano, vive uma louca chamada Esperança: “E ela pensa que quando todas as sirenas / todas as buzinas; todos os reco-recos tocarem / atira-se / e / - Ó delicioso voo / ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada / outra vez criança (...)”. E tudo recomeçará. Mario devolve sentido para o famoso dito de que a esperança é a última que morre. Que possamos nos encontrar sempre lá, vivos na calçada de 2019, e tendo ao nosso lado incólume – meninazinha de olhos verdes – a louca Esperança: “Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam: — O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA...”. Gastemos todo o nosso tempo para gestá-la se inexistente, para lapidá-la se pedra, para encontrá-la se perdida, para regá-la se planta, ou alimentá-la se pequena e frágil. Feliz Natal a todos! Que venha o próximo tempo! E que ele esteja repleto de boas leituras, porque elas sempre honram o precioso tempo que gastamos com elas.



Obs: Agradeço ao jornal Caiçara por gastar seu importante espaço com minhas palavras, permitindo-me nele gastar o meu tempo, brincando com aquilo que amo, com essas palavras que me dizem tanto a respeito de quase tudo.

Publicado no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR), em 22 de dezembro de 2018



sábado, 15 de dezembro de 2018

Maria Bethânia: voz encorpada que (en)canta




Maria Bethânia é para mim mais do que uma intérprete. Tal como o vento, é difícil explicá-la. Até porque, feito uma ventania, Bethânia não carece de explicação. Como um vendaval, pode-se não gostar dela, mas nenhum abrigo é cem por cento seguro (a céu aberto é impossível fugir de uma tempestade). E uma hora ou outra é possível que ela nos encontre os ouvidos e corações abertos. Bethânia não carece também de entendimento. Apenas é. E se fosse preciso ir além do verbo ser – na possibilidade de uma caracterização - eu arriscaria dizer que para mim Bethânia é uma espécie de entidade, dessas que não usam sapatos e flutuam. Não desejo dessa forma mitificá-la (romancear ao exagero uma pessoa como eu ou você, de carne e osso), pois isso seria mascarar a realidade e Bethânia é pura realidade. E pulsa como um texto de Clarice Lispector. Sua voz me soa mágica e cheia de mistérios, e a impressão que tive ao ouvi-la em Porto Alegre, em 28 de novembro, no Auditório Araújo Vianna, é de que seu canto preenche os espaços, ocupa o vazio, aumenta o que nos rodeia. É o que eu disse para a Géssica - esposa/musa que me acompanhava -, na saída do show. Durante duas horas, ao lado de Zeca Pagodinho, a voz da cantora – com sua presença imponente e majestosa - aumentou os espaços, ampliou os sentidos, veludosamente.


Com uma banda que reunia músicos que trabalham com ambos, os dois artistas entraram juntos no palco cantando um lindo samba composto por Caetano Veloso, especialmente para a turnê “De Santo Amaro a Xerém”. A canção, repleta de jogos de palavras, com seus gingados peculiares, une o universo de ambos os artistas, evocando as suas comunidades, a saber, Santo Amaro, na Bahia (Bethânia) e Xerém, no Rio de Janeiro (Zeca Pagodinho): “No alto brilho / um risco raro / que passa do mal ao bem / por cima formando um aro por baixo / um trilho de trem / de Guadalupe ao Amparo / de Xerém a Santo Amaro / de Santo Amaro a Xerém (...)”. Na sequência, “Sonho Meu”, de dona Ivone Lara, embalou o público, assim como a linda “Reconvexo”, de Caetano, algumas pérolas de Gonzaguinha, “Negue”, de Adelino Moreira e Enzo de Almeida Pessoa, que foi imortalizada por Ataulfo Alves, entre outras pérolas bem brasileiras que vieram depois. A plateia delirou. De fato, o show iluminou aquela rio-grandense noite de quarta-feira.


Leitor, leia a prosa poética de “Água Viva”, de Clarice Lispector, e lá encontrará a seguinte frase que talvez ajude a explicar o inexplicável de Bethânia: “Esta é a vida vista pela vida. Posso não ter sentido mas é a mesma falta de sentido que tem a veia que pulsa”. Para além de qualquer entendimento, a arte de Bethânia não se explica porque é corpo e voz postos em movimento (performance), em ação integradora com os ventos e com a terra. Bethânia é ventania, incontestável. Eparrei!


Caetano Veloso observou certa vez que ler Clarice Lispector era como estar diante de uma pessoa. Penso algo semelhante sobre a célebre filha de Dona Canô e irmã de Caetano. Ouvir Bethânia é como estar diante de uma pessoa. O que não significa que essa experiência não tenha um q de sobrenatural. Aliás, Bethânia conta um episódio curioso sobre seu primeiro encontro com Clarice. No final de um show, a cantora sai do camarim e se depara com a escritora falando sobre as faíscas que enxergava em volta dela. Algum tempo depois, ao conhecer a Mãe Menininha do Gantois, em Salvador, e de reverenciar a Mãe de Santo mais conhecida da Bahia, Bethânia diz que a célebre matriarca religiosa afirmou ter visto nela as mesmas faíscas. 


Há um texto no livro “Algo Infiel: Corpo, performance e tradução” (Cultura & Barbárie, 2017), de Guilherme Gontijo Flores e Rodrigo Tadeu Gonçalves que trata de um show de Maria Bethânia. No ensaio, um dos autores (Guilherme ou Rodrigo, não se sabe) escreve que, ao assistir à intérprete cantando os versos ingênuos de “É o Amor”, com uma potência inesperada, entrou em transe: “Do transe muito material que a voz de alguém que canta pode produzir em qualquer um, do transe corpóreo de toda performance”. A canção de Zezé di Camargo & Luciano, extremamente gasta pela recorrência com que foi veiculada pelas mídias, numa obsessão sertaneja desenfreada, ganhou outros contornos na voz de Bethânia. O que prova que a canção é “a abertura por onde o corpo e a voz se fazem sentido, é o espaço em que a forma se completa sempre a caminho – como na etimologia de performance – uma canção só é uma canção quando está num corpo”. E Bethânia canta com o corpo todo. Nesse sentido, sua voz encorpada (en)canta. Segundo o autor do texto, a longa carreira de Bethânia, “capaz de transitar entre a suposta elite cultural e os hits da AM, no decorrer de cinco décadas, é um exemplar precioso da poética do corpo e da poética no corpo”. Celebremos isso tudo. 


Texto publicado inicialmente no jornal Caiçara, de União da Vitória, em 15 de dezembro de 2018.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

Para ler ao som de Black Sheep Boy, de Tim Hardin: Apontamentos sobre “Só Garotos”, de Patti Smith






Em 2018, a Companhia das Letras reimprimiu as memórias afetivas da escritora, cantora, compositora, desenhista e fotógrafa Patti Smith, um ícone da contracultura norte-americana, que se popularizou durante o movimento punk. O livro intitulado “Só Garotos” – lançado inicialmente em 2010 e traduzido para o português por Alexandre Barbosa de Souza -, é um retrato da curiosa vida da artista na Nova York dos anos 60 e 70, quando ela conviveu com o fotógrafo Robert Mapplethorpe, um de seus grandes incentivadores e para quem ela prometeu escrever o livro um pouco antes dele morrer. Na capa da edição brasileira, a autora aparece em Coney Island, ao lado do companheiro de aventuras amorosas e estéticas, ambos dignamente trajados à moda dos anos 60, meio hippies e beatniks.

Patti Smith e Robert Mapplethorpe, em Coney Island

A obra se inicia com a infância de Patricia Lee Smith e se encerra com a morte de Robert. Entre os dois episódios, as memórias da escritora vão sendo evocadas e tecidas, poética e delicadamente. Depois de uma gravidez indesejada na adolescência – fato que a levou a entregar seu filho para adoção -, Patti parte para Nova York com a intenção de se tornar uma artista. Ao longo das páginas que se seguem a esse momento de ruptura, os capítulos vão apresentando as suas aventuras na metrópole com ênfase em seu gradativo contato com artistas nova-iorquinos dos mais variados. Do emprego que consegue na cantina Joey´s, na Times Square, passando por um trabalho na livraria Scribner´s, até a sua projeção artística, a autora vai relatando suas descobertas musicais e literárias que vão de Vanilla Fudge, Tim Burkley, Tim Hardim até William Blake, Allen Ginsberg, Dylan Thomas, Bob Dylan, Jim Morrison, Jimi Hendrix, Janis Joplin etc. Tudo tendo como pano de fundo sua hospedagem em apartamentos baratos, divididos com o companheiro Robert até uma fértil estada no Hotel Chelsea, que serviu de moradia para muitas personalidades e seres curiosos.

No Hotel Chelsea

Patti Smith frequenta com assiduidade a cena cultural underground da cidade – com direito a paradas obrigatórias em bares e casas noturnas que movimentam a cidade mais populosa dos Estados Unidos -, e aos poucos, as portas do mundo da arte vão se abrindo. Mas ela não está buscando se tornar uma celebridade, pois faz parte daquela linhagem de artistas meio misantrópicos que criam seu próprio universo e que só desejam expressar aquela verdade artística que brota do coração e que só é encontrada em sujeitos que nasceram destinados a povoar o mundo com suas belezas particulares. Aliás, em uma das passagens do livro, a escritora apresenta sua concepção de arte. Para ela, “o artista é aquele ser que busca entrar em contato com sua noção intuitiva dos deuses, mas, para criar seu trabalho, não pode permanecer nesse domínio sedutor e incorpóreo. Ele deve voltar ao mundo material para fazer sua obra”. A responsabilidade do artista, nesse sentido, é “equilibrar a comunhão mística com o trabalho criativo”. Nota-se a dimensão sagrada que Patti Smith dá para a arte, sendo o artista esse ser que, independente dos seus mistérios, não abre mão da terra e de transformar essa comunhão na prática efetiva de uma criação, o que não diminui em nada a dimensão mágica de seu afazer.
O livro não relata somente sua vida no interior e em Nova York, mas também uma viagem até a França, quando Patti visita Charleville, cidade natal do poeta simbolista Rimbaud, seu ídolo. Em Paris, visita a sepultura de outro ícone, Jim Morrison, e confessa sentir naquele lugar uma leveza no peito, nada triste: “Senti que ele poderia a qualquer momento sair do meio da neblina e tocar o meu ombro”.

Na sepultura de Jim Morrisson

Em um dos momentos mais comoventes do livro, é descrita a morte de Robert, vítima da AIDS. Personagem tão importante quanto a própria autora, o fotógrafo percorre as páginas de “Só Garotos”, como que a escrever o livro com ela: “Meu amor por ele não podia salvá-lo. Seu amor pela vida não podia salvá-lo. Foi a primeira vez que entendi de verdade que ele ia morrer. (...) A luz entrava pelas janelas sobre suas fotografias e o poema de nós dois juntos pela última vez. Robert morrendo: criando silêncio. Eu, destinada a viver, ouvindo atentamente um silêncio que demoraria uma vida para expressar”. A passagem concentra toda a energia que levou Patti Smith a escrever esse livro.

Com Robert Mapplethorpe

Uma das lembranças marcantes registradas na autobiografia diz respeito ao momento em que Bob Dylan foi assisti-la pela primeira vez em seu show: “Ele estava lá. Subitamente entendi a origem da eletricidade no ar. Bob Dylan tinha entrado no clube. Saber disso teve um estranho efeito sobre mim. Em vez de abatida, senti o poder, talvez dele; mas senti também meu próprio valor e o valor de minha banda”. Há dois anos, Patti Smith apareceu cantando na entrega do prêmio Nobel de Literatura concedido a Bob Dylan. Ela representou o artista que não compareceu. Na sua inesquecível performance, a artista cantou “A hard rain´ a-gonna fall” (1962), composta pelo agraciado e, visivelmente emocionada, atrapalhou-se na letra, desculpando-se pelo fato e tendo que reiniciar a apresentação, emocionando também o público. Foi um fato digno de sua espontaneidade, singularidade, humildade e brilhantismo. 

Na entrega do Nobel a Bob Dylan



Texto publicado no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR), em 01 de dezembro de 2018