quarta-feira, 27 de novembro de 2013
quinta-feira, 17 de outubro de 2013
Minha Vida, minha viola ou o (o)caso da biografia
Controlo minha história
como Moisés o Mar Vermelho
sou um bom moço, sem vícios, acredite:
não fumo, não bebo.
Edito, corto, costuro e teço
monto o filme numa ilha de edição
insiro uma bela trilha:
uma cantiga de roda ou folclórica,
uma faixa do Dark Side of The Moon -
ou melhor, Fly me to the Moon,
na voz de Julie London -,
ou um doce e sereno samba-canção.
Capricho na fotografia
faço pose de quem nega dar recados
e queimo a biografia que ainda não escreveram sobre mim:
"Essa não foi a minha vida" - "nego!"
Esse filme,
onde o carrasco posa na pele de mocinho
tem tudo para ser sucesso no top ten
daqueles filmes românticos do cinema americano
que todo mundo assiste e ninguém lembra depois do the end.
como Moisés o Mar Vermelho
sou um bom moço, sem vícios, acredite:
não fumo, não bebo.
Edito, corto, costuro e teço
monto o filme numa ilha de edição
insiro uma bela trilha:
uma cantiga de roda ou folclórica,
uma faixa do Dark Side of The Moon -
ou melhor, Fly me to the Moon,
na voz de Julie London -,
ou um doce e sereno samba-canção.
Capricho na fotografia
faço pose de quem nega dar recados
e queimo a biografia que ainda não escreveram sobre mim:
"Essa não foi a minha vida" - "nego!"
Esse filme,
onde o carrasco posa na pele de mocinho
tem tudo para ser sucesso no top ten
daqueles filmes românticos do cinema americano
que todo mundo assiste e ninguém lembra depois do the end.
segunda-feira, 9 de setembro de 2013
sábado, 10 de agosto de 2013
texto inédito (em livro) de Paulo Leminski
O texto abaixo: "Japão, uma literatura que vem do útero" foi publicado na página 09 do Correio de Notícias do Paraná, no dia 09 de janeiro de 1987. Praticamente esquecido, o ensaio não consta em nenhuma das edições dos Ensaios e Anseios Crípticos do autor.
quarta-feira, 7 de agosto de 2013
Teatro-Fórum (para o Bando de Efêmeros)
quando o homem se cansa
de assistir ao teatro da vida
e decide subir no palco e jogar
impávido encena na peça
a vida que é também a sua e não
nesse espetáculo
palco e plateia se fundem
homem e personagem se mesclam
e assumem e consentem e gozam
o outro lado / the other side
que é assaz de si uma sombra
fazendo um
pois que assim completo agora está
(e as duas metades perduram
posto que no teatro da vida
todos tem o seu papel)
é a vida que é teatro
de dentro e fora e ainda
é a vida que é Teatro-Fórum
de dentro da vida
quarta-feira, 3 de julho de 2013
Therezinha Cartonera
Inspirado na editora portenha Eloísa Cartonera , o projeto Memórias Poéticas do Vale do Iguaçu, promovido pelo curso de Letras da UNESPAR (campus de União da Vitória), criou a coleção "Therezinha Cartonera", nome que presta uma homenagem a Therezinha Thiel Moreira, uma das poetas de União da Vitória (PR).
O projeto, criado em 2010, além de mapear, investigar e divulgar a produção literária local, oferece oficinas poéticas para escolas públicas da região, tendo em vista o incentivo à leitura e a produção literária em sala de aula. O projeto faz parte do PIBID (Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência), promovido pela CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior).
As capas dos livros, sempre diferentes umas das outras, foram confeccionadas pelos acadêmicos bolsistas e por alunos das escolas públicas parceiras do projeto, durante as oficinas de poesia
Segue o endereço do blog:
http://www.therezinhacartonera.blogspot.com.br
segunda-feira, 17 de junho de 2013
quarta-feira, 5 de junho de 2013
poema-estopim
poeta que só prosa não morde
poeta que só dorme não aprende latim
poeta que só prosa nada saberá da pólvora
que silenciosa se esconde
por trás do poema-estopim
c.moreira
poeta que só dorme não aprende latim
poeta que só prosa nada saberá da pólvora
que silenciosa se esconde
por trás do poema-estopim
c.moreira
terça-feira, 16 de abril de 2013
Na franja dos dias: Marcelo Sandman, o homem sem cabeça e a mancha
Que poemas ainda podemos escrever em
nosso tempo? Que livros de poesia ainda temos tempo de publicar? Que pode ainda
o poeta em seu tempo de poetar? Que vida é aquela que vemos no avesso do tempo
do verso? Que tempo teima tanto e ainda na poesia?
Os poemas que integram o livro "Na
franja dos dias" (7 Letras, 2012), de Marcelo Sandmann, estão manchados de tempo. O próprio
título assume o seu traçado. Que tempos manchados são esses? As manchas,
sabemos, possuem muitos sentidos. Seja como uma obra do acaso ou fruto de uma
ação planejada, elas inserem sempre uma diferença. Com o tempo, as manchas do
corpo ou das roupas, ou mesmo aquelas do café derramado sobre o papel, ganham
uma tonalidade nova e, à medida que os dias correm, vão passando de uma cor a
outra como que esboçando uma outra semântica, uma outra sintaxe. Barthes, em A Câmara Clara, definia o punctum como picada, pequeno burado, pequeno corte, mas
também como pequena mancha, ou seja um lance de dados. Se o punctum é um pequeno
detalhe que chama a atenção, aquilo que atinge o olhar, inserindo uma diferença,
poderíamos tratar as manchas de Sandmann como pontos, pequenas imagens, que nos
olham à medida que as olhamos, como o mar de estrelas no teto, pés bonitos nas
sandálias, o brilho daquela janela, o cheiro de éter no corredor, ruídos de
talheres no apartamento contíguo, um sonho lúcido sem mácula, WTC ainda não
construído. Outras manchas são filhas do tempo e do espaço: um soneto que volta
estropiado como ruína, o poeta suicida servido ao molho pardo, Dalton, Catulo,
Leminski, Marcos Prado, Zappa, etc.
A ação do tempo faz da mancha uma marca
que é vestígio de algo que passou. O isso-foi de que nos fala ainda Barthes, como nas fotografias. Como ruína de outro tempo, a mancha é
também a prova de que o passado pervive de alguma forma no corpo, na roupa, no
papel. Apagar a mancha, alvejá-la, nunca é destruí-la, mas apenas obliterá-la,
ou agir sobre sua cor, dando-lhe outra. Tapa-se a mancha (tatuagem) com outra
mancha. Sobre poemas, escrevemos outros poemas. E só!
No livro de Sandmann, o interesse pelo
tempo aparece antes mesmo dos textos em uma pequena e curiosa nota
"explicativa" que antecede o sumário, e cuja autoria nos é vedada:
"Com este seu terceiro livro - rebatizado Na franja dos dias para trazer à tona um de seus temas principais,
o tempo que nos foge - e trazendo sempre o inesperado na ponta da língua (ou do
lápis), Marcelo Sandmann confirma a sua trajetória como um dos poetas mais
originais da atualidade". O tempo foge, mas as manchas, os rastros, as
pistas perduram.
Como em um fenômeno da mancha cega, as
imagens da tradição, nos poemas de Sandmann, são fantasmáticas. São ruínas que
sobrevivem, marcando a passagem do tempo, bem como a sua suspensão, um evento que faz do poema um corpo entre
corpos, um tempo entre tempos, um incidente ou uma singularidade. Escrever hoje
é retraçar, é recortar, fazer cut-and-past.
É o que Sandmann demonstra no poema "Rua Real Grandeza (compacto
simples)", sobre Jards Macalé e Waly Salomão, a partir de versos
"recortados" de canções da dupla. Como não lê-lo sem ouvir a
dissonância produzida pela junção dos fragmentos musicais? Quem conhece as
músicas, inevitavelmente, relembra suas passagens tendo a impressão de ler e
ouvir ao mesmo tempo o poema de Sandmann e
as canções de Waly e Macalé, bem como visualizar um quadro intersemiótico
cubista por excelência: "vou-me embora, embromadora / vou tomar aquele
velho navio / se me der na veneta, eu vou // oh! sim, eu estou tão cansado /
anjo exterminado / sou um cara sem saída (...)". Trata-se de um im(puro)
movimento dialético (poético).
Já não podemos dizer se as letras musicais, aqui, são
manchas no poema, ou se as canções foram por ele manchadas. Aliás, este é
apenas um dos poemas que estão interessados no universo musical. Sandmann, que
além de professor e poeta é também compositor, faz da música uma órbita sobre a
qual se move o livro. No entanto, a música não inspira apenas temas para os
poemas, pois estamos diante de uma obra - ou álbum - cuja linha está sustentada
também pela musicalidade. Diz, ainda, a já citada nota "explicativa": "Não
se engane o leitor: aqui ele vai encontrar muito mais do que poesia. O título
original, Allegro ma non troppo (lira dos
cinquent'aninhos), dá algumas pistas da musicalidade que conduz o andamento
da leitura, bem como do toque de humor que tempera as riquezas vocabulares e
temáticas, desconstruindo as profundezas poéticas (ainda assim presentes) em
fluências que cabem até numa conversa de bar".
©iStockphoto.com/Renee Lee
Penso que é no diálogo interessante e inteligente com a tradição que se encontra o seu teor de presente. Seu universo é da ordem do "inatual", para usar uma expressão de Agamben, ou de Alberto Pucheu lendo Antonio Cicero. Vale lembrar que Cláudio Daniel, no prefácio da antologia de poesia contemporânea Na Virada do Século, observa que a poesia do presente não pretende exorcizar o passado, "com furor iconoclástico", nem praticar a "necrofilia dos gênios tutelares/tumulares". A principal característica de nossa in(atual) poesia seria a de produzir uma "conversa inteligente entre poéticas de diferentes tempos históricos". Giorgio Agamben, no ensaio O que é o contemporâneo?, com outras palavras, mas em um sentido semelhante, escreve: "Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente por isso, exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e aprender o seu tempo". Marcelo Sandmann ouve Padre Vieira assoprando em seu ouvido: "Há que se estar apartado dos olhos para poder ver".
Re-ler é também manchar um corpo,
inserindo nele outros tempos, outros compassos, outras marcas, outros ritmos. Para
conquistar essa potência só mesmo vivendo um sonho lúcido.
Penso que um dos poemas do livro, intitulado "Salomé Revisitada (sexta-feira 13)", podemos encontrar a materialização desse procedimento de leitura criativa da tradição e mais especificamente de uma ideia que fazemos da modernidade. Diz o texto: "Quando adentrou / o recinto do rei, // trazia nas mãos / uma bandeja, // e na bandeja / minha cabeça // o coração / enfiado na boca // e os cabelos guarnecidos / de cerejas." O poema parece estar atravessado por uma linhagem da poesia moderna - e mais especificamente por aquela que inaugura uma certa modernidade - na qual o poeta abre mão de sua cabeça como forma de sacrifício. Abrir mão de sua cabeça no sentido de produzir uma despersonalização, tal como a discute Hugo Friedrich, em "Estrutura da Lírica Moderna", ao propor uma reflexão sobre o conceito de poesia para Edgar Alan Poe, Charles Baudelaire, Fernando Pessoa, Rimbaud, entre outros.
Penso que um dos poemas do livro, intitulado "Salomé Revisitada (sexta-feira 13)", podemos encontrar a materialização desse procedimento de leitura criativa da tradição e mais especificamente de uma ideia que fazemos da modernidade. Diz o texto: "Quando adentrou / o recinto do rei, // trazia nas mãos / uma bandeja, // e na bandeja / minha cabeça // o coração / enfiado na boca // e os cabelos guarnecidos / de cerejas." O poema parece estar atravessado por uma linhagem da poesia moderna - e mais especificamente por aquela que inaugura uma certa modernidade - na qual o poeta abre mão de sua cabeça como forma de sacrifício. Abrir mão de sua cabeça no sentido de produzir uma despersonalização, tal como a discute Hugo Friedrich, em "Estrutura da Lírica Moderna", ao propor uma reflexão sobre o conceito de poesia para Edgar Alan Poe, Charles Baudelaire, Fernando Pessoa, Rimbaud, entre outros.
Poema e ilustração do simbolista Jonas da Silva sobre Salomé para o livro Ulanos(1902).
No desenho, a cabeça do próprio poeta é servida em um prato,
como em um ritual de sacrifício, ou de abandono de si para o surgimento do outro. Ecos de Rimbaud: "Je est un autre"
No desenho, a cabeça do próprio poeta é servida em um prato,
como em um ritual de sacrifício, ou de abandono de si para o surgimento do outro. Ecos de Rimbaud: "Je est un autre"
Com o advento da modernidade (refiro-me a uma modernidade específica, como aquela do século XIX, oriunda da Segunda Revolução Industrial) a poesia deixa ser entendida como linguagem em estado de ânimo. Não estamos mais diante da embriaguez do coração, mas da construção sistemática de uma arquitetura. O poeta passa a ser um operador da língua, um operador de própria tradição (o poeta reinventa a própria tradição, no sentido borgeano), ou seja, é também o operador de uma máquina de produzir imagens. Abrir mão da cabeça, dessa maneira, equivale também a adotar uma outra experiência poética, abandonando uma ideia de literatura entendida como expressão de um sujeito. Sandmann é nesse sentido um fingidor. Feito um João Batista curitiboca (a expressão é carinhosa), entrega a cabeça como forma de redenção. Qualquer semelhança com a capa das revistas do grupo Acephale, liderado por Bataille, não é mera coincidência.
Abrir mão da cabeça significa compreender que a literatura nasce da morte e da sobrevivência da tradição. Nasce também para devolver vida para os mortos, como Sandmann fez com Sá-Carneiro. Para César Aira, a literatura nasce do abandono. Devemos abandonar para poder criar. No entanto, o próprio abandono deve ser abandonado, o que significa que ser inatual é ser contemporâneo. Mr. Sandmann sabe. Todas essas questões nos levam a vislumbrar um diálogo muito sugestivo entre Sandmann e os poetas simbolistas (Curitiba é o epicentro do simbolismo brasileiro). Essa concepção poética lhe chega também pelas vias desse movimento. Não significa que Curitiba adora cultuar fantasmas, vampiros, mas que sabe ler de forma criativa a própria tradição que inventou.
CENA DE JORNAL TRIBUNA: Depois de perder a cabeça, ocorpo do poeta foi encontrando ainda vivo. O sangue que jorrava ia manchando os papéis que ainda segurava na mão. Ao lado, fazendo careta, como o João Batista de Laforgue, a cabeça, depois de rolar, sangrava cerejas!
Capa da Revista Acephale, de Bataille
Abrir mão da cabeça significa compreender que a literatura nasce da morte e da sobrevivência da tradição. Nasce também para devolver vida para os mortos, como Sandmann fez com Sá-Carneiro. Para César Aira, a literatura nasce do abandono. Devemos abandonar para poder criar. No entanto, o próprio abandono deve ser abandonado, o que significa que ser inatual é ser contemporâneo. Mr. Sandmann sabe. Todas essas questões nos levam a vislumbrar um diálogo muito sugestivo entre Sandmann e os poetas simbolistas (Curitiba é o epicentro do simbolismo brasileiro). Essa concepção poética lhe chega também pelas vias desse movimento. Não significa que Curitiba adora cultuar fantasmas, vampiros, mas que sabe ler de forma criativa a própria tradição que inventou.
CENA DE JORNAL TRIBUNA: Depois de perder a cabeça, o
domingo, 14 de abril de 2013
sexta-feira, 5 de abril de 2013
Bakun, Poty, Valêncio
auto-retrato de Bakun
A figura de Miguel Bakun, um dos maiores pintores do Paraná, sempre me impressionou. Seu traço forte (os adjetivos não são capazes de descrevê-lo), que a meu ver figura entre os mais expressionistas do nosso país, fundou no Paraná uma linhagem de pintores interessados nessa estética cerebral que pinta a própria linguagem e não apenas a natureza ou a embriaguez do coração. Lembro de Bakun quando vejo os desenhos de Poty, as ilustrações do jovem Fabiano Viana, bem como quando leio a prosa de Dalton Trevisan. Um dos retratos do pintor nascido em Mallet, mas que viveu boa parte de sua vida em Curitiba, foi produzido pelo Poty, para figurar no livro "A propósito de Figurinhas", de Valêncio Xavier. O livro, inspirado nas tradicionais balas Zequinha, apresenta, além da imagem, um poema de Valêncio sobre Bakun:
A figura de Miguel Bakun, um dos maiores pintores do Paraná, sempre me impressionou. Seu traço forte (os adjetivos não são capazes de descrevê-lo), que a meu ver figura entre os mais expressionistas do nosso país, fundou no Paraná uma linhagem de pintores interessados nessa estética cerebral que pinta a própria linguagem e não apenas a natureza ou a embriaguez do coração. Lembro de Bakun quando vejo os desenhos de Poty, as ilustrações do jovem Fabiano Viana, bem como quando leio a prosa de Dalton Trevisan. Um dos retratos do pintor nascido em Mallet, mas que viveu boa parte de sua vida em Curitiba, foi produzido pelo Poty, para figurar no livro "A propósito de Figurinhas", de Valêncio Xavier. O livro, inspirado nas tradicionais balas Zequinha, apresenta, além da imagem, um poema de Valêncio sobre Bakun:
"Foi ser pintor / do pinho fez o quadro / da estopa fez a tela / da terra fez a tinta / da corda do enforcado / fez os pêlos do pincel / e começou seu retrato / saiu a cara do Miguel Bakun / não tenho nada a dizer".
No desenho, o quadro com o semblante de Bakun sobrepõe-se ao rosto, que não aparece mas que também é uma representação (palavra estranha que apesar de tudo ainda ouso usar). Desenho sobre desenho, camada sobre camada, personagem sobre personagem, o espelho pelo avesso de si mesmo. Bakun ganha, assim, uma aura fantasmática no livro "A propósito de figurinhas". O que por sua vez injeta potência na própria figura do escritor que, ao fazer da arte uma forma suprema de vida, comete o suicídio, gesto máximo do silenciar, fazendo do fim um quadro trágico de sua vida pintado a garrote. Pobre e sem o reconhecimento do público e da crítica, o artista enforca-se em 1963. Bakun reaparece em outros dois livros de Valêncio. Primeiro no livro "Curitiba de Nós". Depois no livro "Poty, trilhos, trilhas e traços", uma biografia sobre o maior muralista do Paraná.
Ao apresentar a influência do pintor de Mallet na obra de Poty, Valêncio compara a obra de Bakun a de Goeldi. Estamos diante de um homem-fantasma, rabiscado por Goeldi:
"Coisa que não consigo entender é como o Goeldi, que nunca veio a Curitiba, nem conhecia o Bakun, creio eu, fez, nessa gravura que mandou para a Joaquim, um homem com a cara dele, torturado como ele era no meio duma paisagem bem alucinada como a dos quadros de Bakun".
Bakun talvez seja o homem do guarda-chuva vermelho da xilogravura de Goeldi que caminha na selva escura da cidade para lugar nenhum.
Depois de assistir ao curta-metragem de Sylvio Back sobre Bakun fiquei ainda mais fascinado ainda pela figura do pintor suicida (O município de Mallet tem valorizado seu artista mais importante?). A trilha sonora mística cria um forte impacto ao misturar-se com as pinturas apresentadas no vídeo. Em uma das cenas mais impressionantes, Back filmou uma médium que incorporou o espírito do pintor. Então, Bakun (seu espírito ou seja lá o que for) fala sobre a arte e sobre o suicídio. Cinema, espiritismo, pintura e mistério se misturam compondo algo que transcende o próprio cinema como os quadros do artista transcenderam a própria arte vigente no Estado.
Depois de assistir ao curta-metragem de Sylvio Back sobre Bakun fiquei ainda mais fascinado ainda pela figura do pintor suicida (O município de Mallet tem valorizado seu artista mais importante?). A trilha sonora mística cria um forte impacto ao misturar-se com as pinturas apresentadas no vídeo. Em uma das cenas mais impressionantes, Back filmou uma médium que incorporou o espírito do pintor. Então, Bakun (seu espírito ou seja lá o que for) fala sobre a arte e sobre o suicídio. Cinema, espiritismo, pintura e mistério se misturam compondo algo que transcende o próprio cinema como os quadros do artista transcenderam a própria arte vigente no Estado.
Ilustração de Bakun feita por Poty para o livro A propósito de figurinhas, de Valêncio Xavier
Ilustração de Poty e texto de Valêncio Xavier sobre Bakun para o livro Curitiba de Nós
Ilustração de Goeldi, presente na biografia de Poty escrita por Valêncio Xavier
segunda-feira, 1 de abril de 2013
PERIMETRAL
Jardim das Delícias, de Bosch
No verão, a Perimetral de Porto União é o jardim das
delícias de Bosch. Me encanta o vai e vem de suas gazelas eufóricas e dedicadas
na arte de um andar quase voo. Invento um passeio só para flanar nesse museu a
céu aberto de quadros e musas, donas de casa e cães de caminhada, jovens e cardíacos,
estes reincidentes no pecado da gula e sedentarismo. Mas gosto mesmo de mirar as musas. Vejo Vênus, esbelta, saindo
da concha, da curva, a dama de cabelos dourados e esvoaçantes, protetor solar fator
30, tênis com amortecedor da Nike, pernas longas, porte fino. Roupa discreta, sem curvas, nada barroca,
apenas clássica, como sempre se supôs. Só não é perfeita porque lhe falta o encurvamento das formas, bem como a minha companhia no trote do flanar. Delira-me a dança de seus cabelos como delirou a Homero que disso fez canção. Botticelli pintou Zéfiro a soprar as melenas da ninfa não menos aquática que a fonte. Olho tudo. Mas vejo
somente aquilo que eu quero. É preciso contemplá-la antes que o passeio acabe,
antes que o verão acabe, antes que ela case, se mude para Curitiba, ou volte aqui, depois da lua de
mel, com gajo e anel. Vejo Monalisa (sua voz falando baixinho dentro da minha), caminhando com a amiga, uma ruiva de Botero, que é caixa
de supermercado. Ambas levitando com o doce incenso de um suor a não poupar
perfume e propostas pouco ingênuas. Apresso o passo e chego mais perto. Falam de
homens e outras sobremesas, surpresa nenhuma. Vejo Primavera acompanhada das
três Graças.
Todas riem, menos uma delas que, ouvindo seu MP3, nem olha para os lados. Ou
talvez nada escape pelo canto de seus olhos de lua e lince. Que música penetra em seus
lindos ouvidinhos de dobras e dengos de aurora? Em meu escritório, num dia chuvoso, me
quedo a contemplar a lembrança fictícia desses quadros. Escrevo para não perdê-los. Guardar acesa no texto - caixa de cachivaches - a ruína de uma rubra memória. Apenas um lamento: no quarto ao
lado, limpando as vidraças, Isabel, sem escolha e sem passeios, nem sonha o que
vou fazendo por aqui. Que música toca no ouvido da Graça? Quem saberá? Nunca olvidar das graciosas gazelas de nuestra perimetral. Nossas Graças, como as de Rubens, têm curvas. Queira Zeus que os exercícios do caminhar não lhes furtem esse bem precioso.
sábado, 30 de março de 2013
Apontamentos: Susan Buch-Morss e o cinema como prótese do olhar
(cena de O homem com a câmera na mão, de Dziga Vertov)
Quando Susan Buch-Morss, no texto "A tela do cinema como prótese de percepção", fala do cinema como uma prótese de percepção, está se referindo ao “ato puro de ver” estudado por Husserl. O cinema protético, levando em conta o jogo inerente do simulacro, colocaria o elemento corpóreo em suspensão.
Quando Susan Buch-Morss, no texto "A tela do cinema como prótese de percepção", fala do cinema como uma prótese de percepção, está se referindo ao “ato puro de ver” estudado por Husserl. O cinema protético, levando em conta o jogo inerente do simulacro, colocaria o elemento corpóreo em suspensão.
A pesquisadora parte de algumas
palestras apresentadas por Edmund Husserl, em 1907, em Götting sobre “A Ideia
da Fenomenologia”. O objetivo principal das palestras era evidenciar um método
de cognição que, “enquanto mantivesse a análise 'imanente' aos conteúdos da
consciência, ainda podia chegar a um conhecimento 'absoluto' e 'universal'”.
A proposta básica de Husserl, que
por sua vez se tornaria uma das propostas da Fenomenologia ao longo do século
XX, era fazer conhecer o pensamento em sua forma pura, essencial no mundo da
experiência. A noção de “experiência”, um dos conceitos fundamentais da
Fenomenologia, foi comentada por Merleau-Ponty, em A Fenomenologia
da Percepção. O filósofo entende a fenomenologia como uma filosofia que
repõe as essências na existência, não acreditando que se possa compreender o
homem e o mundo de outra maneira senão a partir de sua “facticidade”.
Impossível estocar o conhecimento, impossível a própria possibilidade de conhecimento
antes da experiência. Talvez por isso Susan Buch-Morss tenha sugerido que para
termos uma visão precisa do objeto puro a que se refere Husserl melhor seria
abandonar o texto e ir ao cinema. A partir da experiência do cinema
entenderíamos o que Husserl queria dizer com o pensamento-absoluto
Buch-Morss encontra no cinema as
“reduções fenomenológicas” de Husserl. Tais “reduções” colocam entre parêntesis
os objetos do ato mental e o sujeito que os pensa. Tanto a proposta de Husserl,
quanto a de Susan Buch-Morss, pretende examinar esses objetos. Com isso, a
autora do texto não está querendo dizer que o cinema é algo imanente e que
questões sociais, históricas ou culturais não devem ser levadas em conta num
processo de análise. O que ela pretende mostrar é que a imagem do cinema é o
traço gravado de uma ausência. Logo, não seria mais relevante perguntar se as
imagens representadas no cinema seriam reais ou não: "O que conta é o simulacro, o
objeto não corpóreo por detrás. Na cognição protética do cinema, a diferença
entre documentário e ficção, portanto, é apagada. Claro que ainda “sabemos” que
são diferentes. Mas habitam a superfície da tela como equivalentes cognitivos.
Ambos o acontecimento real e o encenado estão ausentes".
O texto ainda nos apresenta um
paradoxo. Por um lado, a imagem do cinema é construída pelo diretor, pelo homem
que opera a câmera, pelo editor, o que faz com que seja possível uma
consciência intencional; por outro, os “pedaços” do filme podem ser percebidos
como algo “dado”, o que faz com que a verdade não seja intencional. Nesse
contexto, esse fato torna possível uma espécie de violência. Uma violência que
não diz respeito apenas à montagem que corta a realidade, mas à violência da
“própria percepção protética”.
Susan Buch-Morss fundamenta suas questões filosóficas
apresentando exemplos do cinema soviético e americano. Poderíamos concluir, com
base no argumento da autora, que em alguns filmes soviéticos do início do
século XX, por exemplo, a extensão do olhar por meio da prótese foi responsável
por fazer a “massa” perceber não apenas as cenas, os personagens, a sua
história, mas principalmente ver “(...) a ideia de unidade dos povos
revolucionários, a soberania coletiva das massas, a ideia de solidariedade
internacional, a própria ideia de revolução”. Eisenstein, parece ter conseguido produzir aquela arte revolucionária nos dois sentidos: estético e político. Dziga Vertov, com O homem com a câmera na mão, também. Neste, a prótese é explicitada na metáfora da lente que vê e filma, mostrando ao mesmo tempo que constitui um olhar. A cena é bárbara, ou seja, belamente estrangeira.
Susan Buch-Morss
sexta-feira, 29 de março de 2013
esboço de órbita e acaso
enquanto o damasco
arma a dura pele
em seu lento madurar
um mouro de sobrancelhas grossas
e pés ásperos de sandália e argila
sob o sol sedento do deserto
tira com cuidado
acordes vibrantes
de uma viola escarlate
cujo som faz lembrar
os ares de um solista
que, neste caso, é o próprio maestro
da Orquestra Sinfônica Simon Bolívar.
No mesmo instante
a léguas dali
uma velha camponesa
com vestes coloridas
saia longa, sapato e meia
planta repolhos
em um campo aberto
que antes abrigou refugiados
perto de Kiev, no norte da Ucrânia.
Enquanto ela passa
com um estranho charme
as costas do antebraço
na testa enrugada e manchada
que um dia foi lisa e branca
como a de sua neta mais nova
e um pingo de suor lhe escapa
caindo na terra que recém lavrada
agora espera que tudo nasça,
o solista da orquestra
executa com minúcia
seu instrumento feito o mouro
das sobrancelhas do deserto
e algo e então e assim,
feito música, damasco ou repolho
brota e se espalha no ar
c.moreira
arma a dura pele
em seu lento madurar
um mouro de sobrancelhas grossas
e pés ásperos de sandália e argila
sob o sol sedento do deserto
tira com cuidado
acordes vibrantes
de uma viola escarlate
cujo som faz lembrar
os ares de um solista
que, neste caso, é o próprio maestro
da Orquestra Sinfônica Simon Bolívar.
No mesmo instante
a léguas dali
uma velha camponesa
com vestes coloridas
saia longa, sapato e meia
planta repolhos
em um campo aberto
que antes abrigou refugiados
perto de Kiev, no norte da Ucrânia.
Enquanto ela passa
com um estranho charme
as costas do antebraço
na testa enrugada e manchada
que um dia foi lisa e branca
como a de sua neta mais nova
e um pingo de suor lhe escapa
caindo na terra que recém lavrada
agora espera que tudo nasça,
o solista da orquestra
executa com minúcia
seu instrumento feito o mouro
das sobrancelhas do deserto
e algo e então e assim,
feito música, damasco ou repolho
brota e se espalha no ar
c.moreira
CHORAR
chorar é só matéria prima
não chega à mulher fogosa
um poema de Joan Brossa
uma Penélope,
uma Cruz,
Julieta do Romeu,
ou Massina.
"Chorar é coisa de menina"
Sentir é claro
Todos sabem
Tudo ensina
a própria dor,
por exemplo,
De sincera
Fresca e delicada
Sempre avisa:
CHORAR Não basta à poesia
É preciso dançar com a dor
Afagar a danadinha (Fazer dela messalina)
Teu corpo esquenta meu corpo
Tua mão acende meu fogo
Linda flor, (ai ioiô), rapariga!
"Chorar é só matéria prima"
Alguém sussurra
e o fato logo se explica
Com RAZÃO
Faço versos de chorar
mas esse choro
você sabe!
não sai só do coração.
terça-feira, 26 de março de 2013
apontamentos sobre Roça Barroca, de Josely Vianna Baptista
Há traduções que só encontram seu
verdadeiro "tom" e "medida" quando são feitas por artesãos
específicos. Quem, senão Donaldo Schüller, seria a pessoa certa para traduzir o
Finnegans Wake, de Joyce, para a nossa língua mátria? Arnaut Daniel, em
português, sem Augusto de Campos, o que seria? Paradiso, de Lezama Lima, sem
Josely Vianna Baptista, só Haroldo de Campos.
Em um momento em que os índios são
desrespeitados e continuam sendo exterminados (direta ou indiretamente), a Roça Barroca, de Josely Vianna
Baptista, ganha ressonâncias não apenas literárias mas também políticas. O
livro presenteia o leitor com três cantos sagrados dos Mbyá-Guarani do Guairá,
traduzidos, ou melhor transcriados, pela mão inventiva da poeta, bem como
alguns poemas de Josely que dialogam com as traduções. A introdução é de
Augusto Roa Bastos. O paraguaio relembra, no texto, que os cantos dos
primitivos Guarani do Guairá são peças de um povo que celebrava a palavra como
vínculo fundamental entre o homem e o universo. Logo, o sentido a eles
atribuído em sua cultura, transcende a mera arquitetura verbal, colocando-se
misticamente a serviço da espiritualidade do povo. Para os Guarani alma e
palavra são inseparáveis, não havendo então uma separação entre o universo
mítico e o universo poético. Esses índios, que erroneamente poderiam ser
considerados ágrafos (como se a fala não fosse uma espécie especial de escrita),
preservam uma relação com a palavra que há muito a nossa cultura abandonou. As
traduções de Josely mostram o quanto temos a aprender com eles. Para começo de
conversa, esses cantos são por eles considerados sagrados. Talvez por isso, os
textos, durante séculos foram interditos a qualquer "intruso"estrangeiro.
Para nós, a palavra sagrada continua sendo apenas aquela que ouvimos durante a
liturgia religiosa.
Mbyá é um dialeto do guarani, língua
aglutinante, não flexionada, composta
pela união de vocábulos. Aproxima-se, nesse sentido, da escritura ideogramática
oriental que permite uma outra relação do sujeito com a linguagem. A forma de
estruturação do guarani em constelações
rítmicas e semânticas leva cada partícula a "assumir, por seu valor
posicional e modulatório, a função de um sema ou mitema", segundo palavras
de Roa Bastos. Para Josely, "essa configuração constelada, em que a língua
opera por um sistema de justaposição e síntese, e sua arquitetura imagética e
rítmico-sonora conferem ao guarani uma alta potencialidade poética, realizada
nos mitos cosmogônicos mbyá, repletos de palavras-montagem, assonâncias,
paronomásias, ritmos icônicos, metáforas e onomatopéias". O processo de
tradução, muito interessante, é descrito minuciosamente pela poeta-tradutora no
texto que abre a publicação. Lembro apenas que ela cotejou o texto-base
original com a versão para o espanhol de Cadogan, revista e anotada por
Bartolomeu Melià. Josely contou também com o apoio de Teodoro Tupã Alves,
ex-cacique que é professor em São Miguel do Iguaçu. A transcriação permitiu que
Josely prezasse pela forma ideogramática, em um "exercício
escritural" no qual tentou infundir no português um pouco do
"sussurro ancestral"da língua guarani.
Os cantos transcriados apresentam mitos
cosmogônicos dos guarani. É o caso dos primitivos ritos do Colibri. Segundo a lenda, o deus supremo foi de si
mesmo se desdobrando e se abrindo em flor. O sol ainda não existia. O deus se
vê no escuro iluminado pelo seu próprio coração: "O Colibri, em adejos sobre a
fronte do deus, farta de flores, respinga água em sua boca e o alimenta com frutos
do paraíso"(BAPTISTA, 2011). Nos outros dois cantos, o deus faz brotar a
fonte do amor e do som sagrado, fazendo a "fonte da fala aflorar de si e
fluir por seu corpo". Surgem, então, os homens e tudo o mais.
As primeiras palavras do primeiro canto
dizem:
Ñande Ru Papa tenonde
gueterã ombojera
pytú ymágui
Yvára pypyte
apyka apu'a i,
pytú yma mbytére
oguerojera
(Nosso primeiro Pai, sumo, supremo,
a sós desdobrando a si mesmo
do caos obscuro do começo
As celestes plantas dos pés,
o breve arco do assento,
a sós foi desdobrando ereto,
do caos obscuro do começo )
Com tino de poeta, Josely traduz de
forma magistral, re-criando versos com uma beleza cara a sua própria escrita:
"seu sol era / o saber contido em seu ser-de-céu", resolvendo, assim,
o seguinte enigma: oyvásrapy mba'ekuaápy (oyvásrapy: dentro de seu céu - em sua
divindade; py: dentro de); (mba'ekuaá: ter conhecimento das coisas, visíveis e
invisíveis).
Com um vocabulário relativamente escasso, os guarani criaram nos cantos uma gama incrível de variações. Como a língua é aglutinante, a criação de desdobramentos vocabulares permite à poesia uma versatilidade semântica de grande valor: "No caos obscuro do começo / tudo oculto em sombras / o princípio de um som sagrado ele, a sós, criou"; "Depois de muito meditar / com o saber contido em seu ser-de-céu, / e sob o sol de seu lume criador, / desdobrou-se em quem refletia / seu ser-de-céu".
Com um vocabulário relativamente escasso, os guarani criaram nos cantos uma gama incrível de variações. Como a língua é aglutinante, a criação de desdobramentos vocabulares permite à poesia uma versatilidade semântica de grande valor: "No caos obscuro do começo / tudo oculto em sombras / o princípio de um som sagrado ele, a sós, criou"; "Depois de muito meditar / com o saber contido em seu ser-de-céu, / e sob o sol de seu lume criador, / desdobrou-se em quem refletia / seu ser-de-céu".
Tão importantes quanto os cantos são os poemas de Josely,
que mantém a dicção neobarroca característica de seus trabalhos anteriores.
Todos os poemas que integram a publicação estão direta ou indiretamente ligados
ao tema dos Guarani de Guairá. Se por um lado os textos dialogam com a
ideogramática escrita dos cantos indígenas, devidamente assimilados pela poeta
como forma de homenagem e/ou diálogo, por outro reivindicam uma dicção (neo)barroca.
Do confronto pacífico e ao mesmo tempo (des)dobrado e sangrento entre a poesia do
colonizador e a potência poética do Guarani colonizado, depreende-se uma
espécie de "arte da contra-conquista", como quis Lezama Lima, aliás,
mentor intelectual de Josely. Há uma política que se desdobra desses poemas,
pondo em funcionamento uma postura ao mesmo tempo racional e delirada na
escritura de uma poeta que sabe o que está dizendo. Referências a Gôngora,
Manuel da Nóbrega, Antônio de Gouveia, chegam na hora certa nesse "engenho
de sins"que é a poesia de Josely. Ora brota a decadência do projeto
jesuítico, que faz eco em versos como: "carunchos e cupins roem, / vorazes, a
choupana de ripas"; ora aparece a partir da vitalidade poética indígena materializada: o solo é
árduo mas alado. Poemas como "guirá ñandu" fazem referência ao fim do mundo tal
como é concebido na poética-cosmogônica Guarani.
Josely Vianna Baptista
Encantou-me em especial o nome do livro, uma referência a
culturas ameríndias de terras brasileiras que, por serem seminômades, fazem a
sua roça em um determinado local e tempos depois seguem viagem. A dimensão e a
importância política e literária das traduções de Josely - fundamentais nesse
momento em que o desmatamento e o alto índice de suicídios entre os guarani demonstram a falta de respeito do poder público e da sociedade em geral com as
comunidades indígenas -, impõem-se com uma força e importância sem tamanho.
Josely Vianna Baptista encerra um dos textos que compõe o livro observando que
o maior mistério a cercar os guarani está no fato de conseguirem sobreviver à
margem da "barbárie" contemporânea: "Olhando a névoa, a nuvem, o orvalho, o alento do roçado em que respira a
neblina vivificante, eles vêm mantendo com dificuldade seu tekoha, onde
praticam o teko (modo de ser) de seus antepassados, enquanto buscam preservar
na pouca terra que lhes restou, a natureza e a fala indestrutível que os deuses
deixaram aos seus cuidados".
segunda-feira, 25 de março de 2013
da série: Esquinas
Os dois subiam. Ela, a rua Costa Carvalho.
Ele, a avenida Professora Amazília. Ela parou para ler a placa da lavanderia.
Perdeu 15 segundos para anotar o número: 3523-3776. Verão, fim de tarde, horário novo, mas velha a solidão. Passadas das 18h, sol alto e ainda de céu azul e rosado. (Esquina: Ângulo,
formado por dois planos que se cortam. Canto exterior de edifício, caixa, etc.
Ângulo de rua: ao dobrar de uma esquina. Etimologia: do castelhano esquina, e provavelmente do gótico Skina).
Ela quase cruzou ali com o amor de sua vida. Ela, com 43 anos de esperança. Se
tivesse passado pela esquina 15 segundos antes, teria informado as horas para
ele, 45 anos, solteiro, sozinho. Eles teriam conversado por cerca de 5 minutos. Ele a
teria convidado para conhecer a sua loja e depois a chamaria para sair. E
depois tudo o mais aconteceria naturalmente, como essas coisas acontecem.
Acontece que ela se atrasou 15 segundos, ou teria ele se adiantado? Se, por sua
vez, ele tivesse parado para ajuntar os dejetos orgânicos de seu cão, apanhado
no pet shop, teria como ela se
atrasado, estando, assim, na hora exata de ser feliz. Ele teria
esbarrado com ela na esquina depois de 15 segundos, pois este seria o tempo
necessário para que ela lesse a placa e anotasse o número de telefone da
lavanderia e para que ele cumprisse uma obrigação, a dos bons modos sociais. Se ela não tivesse parado ou se estivesse com a sua máquina de
lavar funcionando, e não no conserto, como de fato estava, tudo também seria diferente. Se a alma e as roupas estivessem
lavadas, os 15 segundos talvez fossem poupados, permitindo que a história
diferisse para o contento de todos. O encontro que não aconteceu, o destino
alterado previamente pelos astros, o acaso, ou apenas a placa da lavanderia (ela bem
poderia não ter existido), ou a irresponsabilidade do dono de um cão e seus
dejetos, foram sem saber o motivo ou apenas um deles para que ele continuasse
na loja e ela dando aulas de inglês em um Colégio Estadual. Ela passou com dois
livros e um lápis na mão. Ele trazendo o fiel escudeiro Adelmo. Mas esses dados não
importam porque ela não o viu, nem ele a vislumbrou. Assim, ela não precisará contar para o
dono de Adelmo que está cansada das aulas e ele não a convidará para uma viagem
sem volta a Curitiba, Meca com a qual sonhara desde a era Lerner. O
pior não foi o que não aconteceu, mas o desconhecimento daquilo que poderia ter
acontecido. Não saber que a felicidade estava ali é mais triste do que a
consciência de tê-la deixado escapar. Na esquina, as ruas se encontram e os
planos se cortam. Amores também se perdem.
domingo, 24 de março de 2013
sexta-feira, 15 de março de 2013
mente
ela fala
doce
mente
ela o abraça
gentil
mente
ela o beija
forte
mente
ela o ama
simples
mente
ele desconfia
e consulta
uma vidente
que tudo revela
com o poder
da mente
agora ele prefere uma dama da noite
que franca
mente
doce
mente
ela o abraça
gentil
mente
ela o beija
forte
mente
ela o ama
simples
mente
ele desconfia
e consulta
uma vidente
que tudo revela
com o poder
da mente
agora ele prefere uma dama da noite
que franca
mente
sábado, 2 de março de 2013
Por dentro é o o(v)co
o que quero é estar agora
um pouco por dentro
um pouco por fora
me olhar com os olhos
de um outro
pra saber o que se passa
por fora da casca
por dentro do ovo
c.moreira
terça-feira, 19 de fevereiro de 2013
potlatch porteño: Haikus de César Aira
No ensaio "Psicologia do Dinheiro",
George Simmel apresenta a semelhança psicológica entre a noção de Deus e a
representação do dinheiro na sociedade moderna: "O tertium comparationis é o sentimento de paz e de segurança, que a
posse do dinheiro justamente garante, em contraste com todas as outras formas
de posse, e que, de um ponto de vista psicológico, corresponde àquilo que o homem
deve encontra no seu Deus". Para Simmel, o dinheiro, tal como Deus na
forma da fé, é a "máxima abstração" a que se alçou a razão prática na
forma do concreto. Interessante perceber a atenção que Simmel dá ao dinheiro no
processo de modernização da nossa cultura. Impossível entender o mundo moderno
sem considerar nele o papel do dinheiro (seja de papel ou outros formatos). A
literatura também faz do dinheiro um de seus temas mais recorrentes.
O crítico Victor da Rosa,
no texto em que descreve o encontro que teve com Cesar Aira ("Um encontro com César Aira"), relembra o momento
em que falou ao escritor argentino que achava divertida e também um pouco
perversa a maneira como o dinheiro aparece em seus livros. Ao comentário, Aira observou que, de fato, o dinheiro é um dos grandes temas da literatura. Os
outros seriam o amor, o dinheiro e o nazismo. Na literatura argentina, basta lembrar de "Plata Quemada", de Ricardo Piglia.
Um dos livros de Aira no qual
aparece com frequência o dinheiro é "Haikus". Mais do que aparecer com
frequência, nele o dinheiro é o eixo sobre o qual se move toda a narrativa. "Haikus" é
uma brevíssima novela que se aproxima da forma poética japonesa do haikai não
apenas pelo tamanho, mas também pelo fato de nela o "enredo" mover-se pela
lógica das quatro estações. O livro traduzido pelo Carlito Azevedo foi lançado
no Brasil pela editora Pipa Livros, em uma pequena tiragem numerada. A que
tenho em mãos é de número 120.
Trata-se de um conjunto de cartas
em que o narrador, desesperadamente, tenta cobrar uma dívida de alguém. Não
sabemos quem é o narrador, muito menos o devedor. Nada acontece no livro, a não ser a tentativa desesperada do pagamento da dívida ao lado de uma impressão apocalíptica de fim de mundo, aliada ao fim da História, já que falar do tempo é uma obsessão do narrador; e quando um dos nossos únicos assuntos é o clima, talvez já não faça tanto sentido o "sentido" de História. À medida que o livro corre e
a dívida não é saldada, o narrador tem surtos de ira. Assim como ele,
ficamos na espera de algo. O dinheiro no livro
de Aira é o Godot que nunca vem. Quem leu "Haikus", como eu, deve
ter lembrado de Beckett também. Como o Godot é uma espécie de Deus, na peça,
não nos custa imaginar, no livro, o dinheiro do narrador como sendo uma espécie de Deus. Como vimos,
Simmel soube, com boa percepção, detectar uma afinidade entre as duas coisas.
Como Vladimir e Estragon, o
narrador de Aira repete repete repete, no entanto, estamos agora diante de um
personagem mais impaciente. O narrador de "Haikus" repete a cobrança, gastando a
palavra e a paciência: "Será possível que ainda tenha que repetir,
grandíssimo escroto, filho de mil putas? Com você, repetir é a única forma de
falar. Vamos ver se me entende de uma vez: Pague o dinheiro que me deve. Pague
e me calo para sempre". Naturalmente, o que alimenta a escrita aqui é a
dívida. Sem ela, não haveria o livro. Com a sua quitação, a prosa acaba.
Ao contrário do personagem que
deseja recuperar o seu dinheiro para comprar um par de sapatos (a quantia,
nota-se, é irrisória. Depois, com a desvalorização da moeda, ele decide por
apenas um ou dois pares de meia), Aira gasta a escrita de forma simbólica. Quem
acompanha a trajetória do escritor argentino, percebe que a noção de despesa -
tal como pensou Bataille a partir de Marcel Mauss - parece fazer parte de sua
estratégia literária. Aliás, Bataille, no texto em que discute o "Ensaio sobre a
Dádiva", de Marcel Mauss, observa que a poesia (poderíamos estender aqui para a
literatura) é uma espécie de despesa simbólica que, por sua vez, faz parte das
formas improdutivas no universo da produção. Bataille lembra que a poesia, que
se aplica às formas menos degradadas, menos intelectualizadas da expressão de
um estado de perda, pode ser considerada "como sinônimo de despesa:
significa com efeito, de modo mais preciso, criação por meio de perda". Como
uma espécie de brincadeira, gosto de pensar que, como em um ritual de puro
gasto - potlatch porteño -, Aira produz uma literatura que poderíamos pensar a
partir do princípio da "economia do dom". Com quase 80 livros
publicados - a maioria deles em editoras pequenas - Aira recupera a
noção de despesa de Bataille, fazendo do excesso e do gasto um princípio vital
e um modo de reestabelecer a ligação da literatura com a potência.
Carlito Azevedo, no "biograma"
que escreve para Aira, nas últimas páginas de "Haikus", observa que nem chega a
surpreender que quando anunciaram ao escritor a tradução, o autor manifestou o
desejo de não receber nada pelo livro. O "livrinho"seria "un
regalo para sus amigos brasileños". Como não ver aqui a imagem de um potlatch?
obs: Gasto! gasto! gasto tudo aqui. Talvez a crítica, assim
como a literatura, possa funcionar a partir do
princípio da economia do dom. Estaríamos diante daquilo que Ana Cristina Chiara chamou de Leitura Malvada: "Ler para o gasto de si mesmo e do outro. Lê-se, então, para que se dê a comunicação forte, não submetida à ordem da economia produtiva. Leitura em que a experiência estética compartilha com a atividade erótica, com o jogo, mas também com o submundo do lixo, do resto, dos refugos sociais, seu caráter de resistência à utilidade prática. Não há derivativos possíveis desse gesto. Não há aplicabilidade direta, fórmula, receita".
domingo, 17 de fevereiro de 2013
Eflúvios
Na foto, sem data, o poeta-mago Dario Vellozo
para Ariete Nasulicz
a luz que em cima e ao lado
feito fosse um alaúde ou lira
tange e emana
sutis e sidéreos eflúvios
acordes vibram
para quem lê ou sente
os sons dessa serpente
altissonantes vibram
docemente
almas afins
regam de cor e som
a síntese alquímica dos contrários
regato que perdura
para além do bem e do mal
pousa na terra a esfumatura da nuvem celeste
e aterra no céu o seu tom sideral
c.moreira
sábado, 16 de fevereiro de 2013
Máquina poética (profética) de produzir crítica
De um lado encontramos o anjo
(poeta), fazendo da criação o sentido do seu existir, de outro o profeta
(crítico), salvando a obra de criação (para usar dois termos caros a Giorgio Agamben no texto "Criação e Salvação"). Agora, no entanto, estamos diante de um profeta que
também é anjo, ou de um anjo que também é profeta. Criação e salvação são atos
que habitam um mesmo corpo, um corpo que poderíamos chamar aqui, a título de
ilustração, de ensaio. Se o poema para Roberto Corrêa dos Santos é ensaio-crítico-teórico-experimental,
o ensaio de Pucheu, lendo Roberto, é teoria-crítico-poética-experimental.
Como produzir um ensaio sobre a poesia
senão com imaginação e com o tino de poeta? A escrita aqui, repetindo e
diferindo, faz ao mesmo tempo poesia-crítica-cinema-teoria-ensaio-experimental.
Pucheu encena e filma o seu próprio teatro.
Alberto Pucheu, no ensaio intitulado Roberto
Corrêa dos Santos: O poema contemporâneo enquanto o "ensaio
teórico-crítico-experimentak", publicado em 2012, mergulha no trabalho
crítico-criativo do professor e poeta/artista Roberto Corrêa dos Santos. A alusão ao mergulho aqui não pressupõe
necessariamente uma licença poética materializada na metáfora, mas uma ação de
leitura/escrita que propõe um corpo a corpo com a própria crítica. Nesse
sentido, talvez fosse mais pertinente pensar o livro como um mergulho não
apenas no trabalho de Roberto, mas também na crítica do próprio Pucheu.
Trata-se de um livro que toma e é tomado
por uma experiência poética e crítica que é uma experiência de crítico e poeta.
Portanto, o mergulho não é tomado aqui como um trabalho exaustivo interessado
em esgotar o seu objeto, dissecando todas as suas partes, mas como uma ação
capaz de tornar indiscerníveis não apenas os limites entre crítica e poesia,
mas também os limites entre os trabalhos de Roberto e Pucheu. Poeta que fala de
poeta, crítico que fala de crítico, poeta-crítico que fala de poeta-crítico.
Texto que se contamina e se contagia com texto: "Escrever sobre o que se
lê é ir tornando seu e do outro aquilo antes apenas pressentido, mas sem força
de existência, de uso ou de intercâmbio".
Ao invés de escrever "sobre"
Roberto Corrêa dos Santos, Pucheu escreve "com" ou mesmo
"em", fazendo da leitura uma "sobre-escrita", um ensaio de
"mais-valia", fazendo do objeto com o qual escreve ou àquele no qual escreve um corpo tatuado que lhe deve
"sobrevida". De um lado o leitor é convidado a experimentar o
pensamento de Roberto Corrêa dos Santos, de outros é chamado a vislumbrar a
escritura do poeta-ensaísta, que como vimos não fala de fora, mas de dentro do
próprio texto que lê. De um lado o leitor é chamado a visualizar os
livros-objeto de Roberto, refletindo sobre os limites entre arte e pensamento,
de outro é seduzido pelo crítico que, enquanto lê, escreve, presentificando em
seu tecido uma concepção de crítica profética (poética) que não apenas
"salva" a obra angelical de criação, mas que mantém a
inapreensibilidade de seu objeto, no jogo de uma trama que busca ao mesmo tempo
o gozo e o conhecimento.
André Monteiro, em um texto sobre o
livro, chama a atenção para a "zona de confraternização" que se estabelece
entre os textos de Pucheu e Roberto, que poderiam ser considerados anjos e
profetas ao mesmo tempo, no sentido que Agamben dá à expressão:
"Quando se entra em textos de
Alberto Pucheu-Roberto Corrêa dos Santos, sejam os considerados poéticos, sejam
os considerados ensaísticos, sejam os falados e performados em palestras,
encontros acadêmicos, encontros não acadêmicos, percebe-se, neles, uma
propositada e impura “zona de confraternização”, como quer Alberto Pucheu,
entre o poético e o teórico, o poético e o filosófico, o filosófico e o
ficcional, o teórico e o ficcional, o ensaístico e o literário, o literário e o
não literário, o literário e o plástico, o plástico e o não plástico, a palavra
e a não palavra, a fala e o silêncio, o silêncio e o grito" (MONTEIRO,
2012).
Nota-se que essa "zona de confraternização"
não é inerente apenas ao livro sobre Roberto, mas também em ensaios de Pucheu,
como aquele interessado na obra de Antonio Cicero. Trata-se de um projeto que
já é vislumbrado nos trabalhos especificamente teóricos do poeta-ensaísta, já
que as próprias fronteiras entre o artístico e o teórico são por ele
questionadas.
Aquilo que Pucheu detecta em Roberto
Corrêa dos Santos é o que poderia ser também encontrado em seu próprio
trabalho: "Uma indecidibilidade entre o ensaio e a ficção, uma inseparabilidade
entre o ensaio e o poema, um desguarnecimento de fronteiras entre o ensaio, a
ficção e o poema, entre o gesto e o conceito, entre conceito e a imagem e o
ritmo". Dessa forma, à medida que Pucheu discute o trabalho de Roberto
Corrêa dos Santos, vai tecendo, ensaiando no ensaio, suas considerações acerca
da especificidade do trabalho crítico, sempre com força poética. Por isso, o
elogio maior é à imaginação como combustível para a máquina de produzir
crítica: "A imaginação é uma aceleradora dos processos de conhecimento,
que ela antecipa. Sem a imaginação, não há crítica, comparação, discernimento".
quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013
quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013
sábado, 2 de fevereiro de 2013
ensaio colorido
A orelha-poema que integra os
livros da coleção Ciranda da Poesia, organizada por Italo Moriconi, e editada
pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, é bastante explicativa:
"Poeta que lê poeta que lê poeta / Crítico que lê poeta que lê poema /
Poema leitura de poema, poesia / e crítica, poesia é crítica / leitura /
escrita em movimento". Trata-se de um conjunto de pequenos-grandes livros
interessados no exercício de análise "literária" das obras de poetas
contemporâneos. Propor uma análise "literária" da literatura
significa para o crítico não só se debruçar com atenção no objeto que está
disposto a ler, mas também se debruçar com imaginação, já que a poesia é tomada
ali como crítica e a leitura entendida como uma escrita em movimento.
"Celebrar o trabalho do poeta.
Estimular o trabalho da crítica". Esses são os objetivos principais da
Ciranda. Não é à toa que alguns dos críticos selecionados para compor a
primeira fornada (outros livros estão chegando agora (2011 e 2012), somando-se aos sete
lançados em 2010) sejam poetas, como é o caso de Alberto Pucheu, Renato Resende
e Paulo Henriques Brito. Na Coleção, mesmo aqueles críticos que não são
necessariamente poetas, não deixam de flertar voluptuosamente com o objeto em
questão, a poesia. Essa parece ser uma tendência da boa crítica contemporânea
que, inevitavelmente, é flagrada na Coleção.
Depois de ler os sete livrinhos,
tenho a impressão de que estou diante não apenas de livros coloridos (a capa de
cada livro possui cor diferente), mas também de ensaios coloridos. Explico!
Voltemos rapidamente no tempo. Antonio Candido, no texto "Ironia e
Latência", que integra o livro "O albatroz e o chinês", parafraseando
Mefistófeles, afirma que a "crítica é cinzenta, e verdejante o áureo texto
que ela aborda". O argumento sisudo soa estranho vindo justamente de um de
nossos maiores críticos. De um lado está a crítica, cinza, e de outro, o texto
colorido que ela analisa. De um lado está uma coisa, de outro, outra. O corpo -
escritura - é o mesmo, mas a mistura
impossível, já que óleo e água são duas soluções incompatíveis entre si. Há uma
concepção de autonomia que está implícita no argumento de Candido em relação a
esses domínios específicos, o crítico e
o poético. Em uma República está o filósofo, o crítico, na outra o poeta,
exilado e manco feito o albatroz de Baudelaire. No entanto, o aparecimento da
Ciranda da Poesia permite que essa a questão seja revista justamente no ponto
central, lugar que ela imaginava sólido e estável.
Se a crítica pode ser colorida
como nos mostram os ensaios da Coleção, isso se dá, penso, por dois motivos.
Primeiro, por não considerar a crítica como cinzenta (resto sem cor de um corpo incendiado
e já sem vida). Nesse sentido, não concorda com Candido, que vê a crítica,
indiretamente, como "segundo plano" em relação ao objeto analisado. Ou seja, não sofre do complexo de vira-lata. Segundo, por pensar a crítica e a poesia não como territórios circunscritos,
delimitados, autônomos, impassíveis para um namoro, ou pelo menos para uma
conversa inteligente. Assim, a Coleção parece colocar o argumento de Candido em
xeque, porque pensa a crítica como "leitura em movimento", ou seja,
também como pensamento criativo, ou ainda, como "poema leitura de
poema". Não se trata de fazer crítica com versos, como se ela tivesse a
intenção de ser aquilo que não é, mas de remover, ou pelo menos ensaiar (não é
este também o objetivo do ensaio?) a cisão que separa os dois domínios, o
crítico e o literário. Por isso, falo de um ensaísmo colorido.
O ensaio colorido a que me refiro
aparece com mais frequência nos livros sobre Antonio Cicero, de Alberto Pucheu;
sobre Carlito Azevedo, de Susana Scramim; e sobre Sebastião Uchoa Leite, de
Franklin Alves Dassie. Pucheu encontra em Cícero a experiência poética de
vários tempos, sujeitos e lugares, cujos poemas guardam ressonâncias do que
"iluminando-nos, foge de nós e nos ofertam a potência de nossa própria
atualidade". Ou seja, uma poética do "agoral", ou ainda,
extemporânea, intempestiva. Heterotópica e heterocrônica, a poesia de Cicero,
passa a ser vista pelo crítico como eminentemente contemporânea. Estamos diante
de um poeta falando de poeta. Crítico falando de um crítico (Cicero é também
ensaísta), crítico falando de poeta, poeta falando de crítico, crítico-poeta
falando de poeta-crítico. Resultado: uma experiência colorida.
Em uma das passagens mais bonitas
de seu ensaio, Pucheu escreve sobre a poesia com "pinta" de poesia:
"O poema é o limite que guarda o ilimitado oculto da poesia na resplandecência
de sua superfície. O poema é uma forma que guarda o informe oculto da poesia na
resplandecência de sua superfície. O poema é o corpo que guarda o incorporal
oculto da poesia na resplandecência de sua superfície. O poema é o determinado
que guarda o indeterminado oculto da poesia na resplandecência de sua
superfície. O poema é alguma coisa que guarda o nada oculto da poesia na
resplandecência de sua poesia (...)." A sequência é longa. Não se trata de mero charme ou de uma "maneira
bonita de dizer", mas de uma escrita cujos objetivos podem ser imaginados
aqui. Impossível tocar no poema sem ser por ele tocado. A crítica olha com
presteza para o poema na exata medida em que é por ele olhada. A crítica é
entendida aqui como solução imaginária para os impasses com os quais se depara
o leitor. A crítica como leitura criativa, e o poema como
"ensaio-teórico-crítico-experimental", para usar uma expressão de
Roberto Corrêa dos Santos, poeta-professor-crítico que é analisado com minúcias
por Pucheu em seu mais recente livro.
Susana Scramim, por sua vez,
discute a poesia de Carlito Azevedo como potência. Está à altura do
contemporâneo na medida em que é um ser sem substância. Para Scramim, não são
poucos os poemas de Carlito em que a experiência empírica, a vivência, não gera
o poema: "gera em vez disso um poema que poderia ter sido, uma experiência
no limite da morte, ou seja, a da não existência". Ou seja, a poesia como
imagem - fantasma - de sua própria finitude. Ao pensar na finitude da poesia e
nos dos limites a ela inerentes, da poesia como possibilidade, como
procedimento, ou mesmo como potência passiva, Carlito faz de ser trabalho uma
pictografia, uma "coisa mental". Por trás dessa experiência radical,
há aquilo que Susana considera como a propulsão do trabalho do poeta carioca, a
"noção de vida e seu entrelaçamento com a noção de vida da poesia", o
que pode ser verificado em seu mais recente livro Monodrama (2009).
Franklin Alves Dassie, desde o
início de seu estudo sobre Sebastião Uchoa Leite, demonstra, indiretamente, que
está pensando não só a obra do poeta, mas o próprio fazer crítico que é também
o seu. Como fazer uma apresentação? Como apresentar o poeta? Para quem
apresentá-lo? Para que apresentá-lo? Essas são perguntas que movem o crítico e
que são centrais não só para este livro, mas para qualquer experiência crítica.
O que se destaca em sua leitura é a possibilidade de ler Uchoa tendo em vista
uma subjetividade em permanente conflito. Entram aí figuras bastante
interessantes que, além de fazer parte do universo do poeta, passam a ser
personagens do próprio crítico: a máscara, a marionete, o vampiro, etc. A
imagem do duplo na poesia de Uchoa é o eixo sobre o qual se move a crítica de
Dassie. O jogo entre o "eu"e o "outro, se por um lado é o
motor do poeta, passa a ser também o motor do crítico que, posicionando-se
em relação àquilo que lê, e investindo nos sentidos da leitura, acaba cúmplice
- e até parceiro - do próprio poeta, já que os poemas ganham outras
possibilidades de leitura a partir do trabalho de leitura criativa. Assim, as
máscaras são também do crítico: "Posso ser muitos e ser um só usando
máscaras, mas não tento esconder a dupla identidade; ao contrário, pretendo
ressaltá-la, umas vez que a intenção é lembrar que alguém fala por trás delas,
diria o ventríloquo". A frase que é dirigida à poesia de Uchoa pode, sim,
ser lida como dirigida por Dassie a ele mesmo: a dupla identidade, crítico/poeta,
é ressaltada, afirmada, e não negada. Quem fala, o ventríloquo-poeta, ou aquele
que opera a máquina ensandecida de leitura, o crítico? Onde acaba a voz de um e
começa o voz do outro? Não seria interessante remover a barra (/) que cinde as
duas atividades, potencializando, assim, outros modos de ler?
Resta-nos desejar vida longa à Coleção,
e esperar os próximos livros, os próximos poetas, os próximos críticos.
Coleção Ciranda da Poesia: Antonio Cicero por Alberto Pucheu (100 págs); Carlito Azevedo por Susana Scramim (110 págs); Chacal por Fernanda Medeiros (116 págs); Claudia Roquette-Pinto por Paulo Henriques Britto (84 págs); Guilherme Zarvos por Renato Rezende (80 págs); Leonardo Fróes por Angela Melim (64 págs) e Sebastião Uchoa Leite por Franklin Alves Dassie (92 págs)
Em 2011 e 2012, foram lançados livros sobre: Angela Melim, Ana Cristina Cesar, Armando Freitas Filho, Marcos Siscar, Douglas Diegues, Ingeborg Bachmann, Ghérasin Luca, Zbigniew Hertbert, Salgado Maranhão, Afonso Henriques Neto, Roberto Piva, Nathalie Quintane.
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