terça-feira, 20 de outubro de 2020

Vinícius de Moraes





Libriano como eu
Ou eu de libra feito ele
Temos com a poesia
Essa musa nunca substituída
Uma história em comum
e longa de amor e interesse
Libriano como eu
Ou eu de libra feito ele
Vinicius meu velho,
Saravá,
Este filho de Oxalá
Vem e mata
Como a água de beber,
Camarada, a nossa sede
Goza os prazeres deste mundo
E chora do mundo também a dor
Canta a Rosa desfolhada
Ou aquela de Hiroshima,
E faz da natureza -
Seja ela morta ou viva -
Um caso permanente de amor

c.moreira

terça-feira, 6 de outubro de 2020

Praça Alvir Riesemberg


 



Na Praça Alvir Riesemberg, o busto de Getúlio recebe flores, ano após ano, religiosamente, no fatídico 24 de agosto. No local, tudo envelhece menos o presidente, fundido em metal perene, e a célebre dúvida: foi assassinato ou suicídio? No começo de setembro, ainda é possível vislumbrar a homenagem posta ali por algum fiel correligionário do PDT. Mas dia após dia o buquê vai decompondo como a história do Brasil, contrastando com o monumento a simbolizar outra decadência, a de um país petrificado pela mão do homem e pelo olhar da Medusa. A estátua solitária faz lembrar o sujeito parado na esquina do Boulevard du Temple na foto de Daguerre. Em repouso, a personagem lustra os sapatos e tem por isso sua imagem gravada pelo daguerreótipo. Os que passam pela rua não são registrados na foto porque estão em movimento. O filósofo Giorgio Agamben enxergou nessa foto, e na fotografia em geral, a imagem adequada do Juízo Universal: “A multidão dos humanos – aliás, a humanidade inteira – está presente, mas não se vê, pois o juízo refere-se a uma só pessoa, a uma só vida: exatamente àquela, e não a outra”. Assim como o homem que lustra os sapatos e o busto do presidente, uma foto e um poema existem para serem vistos ou lidos, mas também para nos lerem ou verem lá de onde estiverem. No fim, não seremos nós as imagens deles? Dependendo da posição em que estou é a estátua que me olha. No Dia do Juízo, todos serão julgados: o homem que lustra os sapatos, o presidente, a mulher do presidente, o juiz, o ministro, as fotos, os poemas, nós mesmos, e os assassinos que num dos prédios defronte à praça esquartejaram o corpo de um homem que saiu da vida para entrar para a história. Como os crimes não são perfeitos, os rastros sempre aparecem com o tempo ou com luminol. Nas fotos, estátuas, textos e autos policiais, os finados estão sempre lá a nos perscrutarem da iníqua profundeza da morte, dispostos a contar o que de fato aconteceu. Mas a verdade nem sempre vem à tona porque os mortos não falam e o silêncio dá margem para muitas interpretações.

c.moreira

Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória - PR (03/10-2020)

sábado, 3 de outubro de 2020

Opus

 


1 - É como se fosse uma noite com duas luas cheias e nenhuma estrela em volta ou um dia em um campo de trigo e seu céu com dois sóis. Tudo tão alto mas forte e em voga que eu nem conseguiria ver com clareza ou contar sem cegar.

2 - É como se fosse um soul, ou um jazz, um blues qualquer. Só que tocado no oásis de um deserto. E é como se vibrasse em mim teu ser, esse som que vem junto com beleza e uma onda gigante se levantasse. Uma senhora imagem, certamente, a tua.

3 - É como se voasse tua imagem até aqui e me caísse no colo como uma pena, uma penugem, uma folha, ou quem sabe até um fio de cabelo. Seria uma graça ver você chegar assim sem pressa da rua, de lá de trás das montanhas ou de alguma praia longínqua, forjando com os óculos escuros em teus olhos a plácida profundeza do mar. Eu trouxe uma concha, diria você. E ela se abriria imediatamente como um sim. E ninguém saberia dizer bem ao certo se esse quadro seria um sonho ou se o sonho teria sido o real tão obviamente assim. Eu diria: o real me enigma. Por isso ele fez do sonho uma espécie de milagre particular.

c.moreira