quinta-feira, 27 de maio de 2021

“Notas Mínimas”, de Katherine Funke: pequenas grandes canções



Leio o livro “Notas Mínimas”, de Katherine Funke, como um filme-colagem no qual cada cena tem a receita exata para capturar, mais do que a minha atenção, o meu desejo. Cada fragmento, ou pequeno conto, é uma nota mínima que se abre musicalmente ao leitor, convidando-o para a nota seguinte. E assim o livro vai se descortinando com esses pequenos acasos. Nietzsche escreveu que o acaso guia a nossa mão e toca conosco uma melodia. De nota mais nota vai se fazendo um livro ou uma sinfonia. Na escrita, a nota é esse rabisco, as ideias que brotam em qualquer lugar, uma pequena observação, uma anotação breve, o registro de uma cena. Na música, a nota é o elemento mínimo de um som, uma vibração, uma agitação de moléculas de ar. Em ambos os casos, as notas são esses movimentos que preenchem a vida de verso e canção. Aliás, escuto Joni Mitchell enquanto leio o livro. Tudo a ver.

Não é à toa que Roland Barthes, ao escrever sobre o fragmento, tenha observado que ele é como uma ideia musical de um ciclo: “cada peça se basta, e no entanto ela nunca é mais do que o interstício de sua vizinha”. O compositor Schumann, lembra Barthes, chamava o fragmento de intermezzo, multiplicando em suas obras os intermezzi. Tudo o que ele produzia era intercalado. Nesse sentido, a sequência de fragmentos é uma espécie de “soma de espetáculos”.   

Os românticos alemães sabiam da potência filosófica dos fragmentos. Novalis tratava suas anotações como sementes literárias, grãos de pólen, que “deviam ser acolhidos e estudados como textos para pensar”. O dicionário diz que o fragmento é um pedaço de uma coisa partida ou quebrada; parte de um todo; pedaço, fração; parte que resta de uma história literária ou antiga, ou de qualquer preciosidade.


Katherine Funke (acervo da autora)


No livro de Katherine, cada fragmento, cada nota mínima, mais do que uma fração, ou um simples pedaço, é um microcosmo do dia a dia que se descortina para o sublime, seja na sua dimensão lírica ou trágica. Sim, cada conto é um pedaço de uma vida partida ou quebrada, mas é também a possibilidade de sua redenção. Não à toa, já no primeiro pequeno texto, um espírito religioso inventa sua transcendência na aceitação do trágico, quando um cigarro, mesmo que industrializado e cancerígeno, salva-o do vazio da vida: “Dane-se, pensava e aquela rebeldia era na verdade seu grande alento. Dane-se! Santo cigarro! Tinha o poder de conectá-lo com essa grandeza universal de não ser melhor nem pior que ninguém”.

 As notas mínimas de Katherine nos convidam a encarar o vazio da vida, o drama cotidiano da monotonia e da fixidez, mas também nos convocam a continuarmos andando no meio da chuva, mesmo com os pés em havaianas numa estrada cheia de lama. O livro revela as duas mil toneladas que o mundo já tinha às nove horas da manhã para a secretária Maria Lúcia, mas nos convida a dançar, porque a dança leva a um outro mundo no qual podemos nos descobrir anjos de novo. Todo embrulho nos oprime, mas nos mostra também que estamos vivos.



O livro apresenta uma série personagens que podemos encontrar no dia a dia de qualquer cidade grande. No metrô, somos aquelas “minhocas esquecidas nesse negreiro subterrâneo”. A vida sufocante das grandes cidades, aliás, é o pano de fundo de boa parte dos textos, compondo um mosaico da nossa triste e tensa contemporaneidade. E é justamente essa dimensão que faz a grandeza de seus personagens, sujeitos interessantes vão desfilando pelo livro. O Edson, por exemplo, que nos ensina a sentir o agora, e só. A garçonete Geisa que suporta os clientes insatisfeitos. O Marujo que ama a esposa depois de dormir com a amante. A imaginação que viaja na noite de insônia ou na fila. O carteiro que nunca recebeu cartas e decide abrir uma apenas por curiosidade. A Érica que queria ser uma flor de boldo. O desempregado Ricardo Moura que está feliz porque não lhe faltam cigarros. A Carla que é fã do Arnaldo Baptista e canta na chuva. Alguém que é feliz porque é míope. A mulher que com medo de perder a razão decide não decidir mais nada. As confissões de uma jornalista no velório de Zélia Gattai. O assassinato do pobre e negro Alexandre. O violonista anônimo. O bêbado que tenta se equilibrar no ônibus. A Marília que ama flores. A menina Roberta que vende balas no semáforo. O percussionista que era o sol de sua banda. O jardineiro que ri. E segue essa festa da vida! E muitas outras pessoas comuns vão ganhando uma dimensão profunda na obra de Katherine. São seres simples, mas não simplórios, grandes personagens. Os cenários são aqueles da avenida Dorival Caymmi, a Ladeira da Preguiça, a Quinta dos Lázaros, entre outros lugares de Salvador, onde morou a escritora durante um tempo de sua vida.

Os pequenos contos que compõe o livro são ricamente ilustrados por Enéas Guerra. Há um lindo projeto gráfico de Valéria Pergentino e Elaine Quirelli, a lembrar antigos almanaques nos quais as imagens, mais do que ilustrar, participam ativamente na construção de sentidos dos textos. 

Roland Barthes escreveu certa vez que o fragmento implica um gozo imediato: “é um fantasma de discurso, uma abertura de desejo”. É o que sinto lendo os textos de Katherine Funke. Ainda com Barthes, poderia dizer que há em “Notas Mínimas” (Solisluna, 2009) “uma condensação, não de pensamento, ou de sabedoria, ou de verdade, mas de música”. Cada texto é uma pequena grande canção ou uma breve sinfonia, Joni Mitchell ou Beethoven. É abrir o livro e ouvir.

Imagens: acervo editora Solisluna

Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR).

quinta-feira, 6 de maio de 2021

Cinco canções pra afastar a peste

  

Os filósofos gregos já nos falavam dos poderes medicinais da música. Em muitas culturas ameríndias, xamãs cantam para espantar maus espíritos, curando doentes e afastando a morte. Em um de seus namoros com a medicina, Mário de Andrade escreveu que Tamísides aconselhava a música contra pestes e as feridas. Demócrates, em especial, utilizava a flauta para curar pestes. Nas matrizes religiosas afro-brasileiras, canta-se para chamar os deuses. Sugiro que ouçamos e cantemos juntos, caros leitores, as cinco canções abaixo, para chamar os santos e espantar a pandemia que já ceifou só no Brasil mais de 400 mil vidas...   

 


Tempo de Amor - O encontro de Baden e Vinícius, do violão e da voz, da potência de Powell e da pena do poeta. Aquele encontro religioso e musical de dois bruxos na encruza do afro-samba. Pra quem faz de seu instrumento um berimbau, não há mandinga que não possa ser dedilhada e cifrada nos acordes de uma canção. E assim o som vai quebrando todos os quebrantos. "Tempo de amor" é tempo de dor, ensina a faixa de um dos discos mais emblemáticos da MPB. Sofrer e amar, para Vinícius, são sinônimos inalienáveis. São coisas do coração. Na versão dessa música, registrada por Pierre Barouh, no Filme Saravah, Baden fuma e dedilha alucinadamente ao mesmo tempo, como se tocando em estado de transe. Chamo a atenção para essa cena. Em Afro-sambas, dá-se o encontro do Brasil com a África por meio de um oceano chamado música. São águas profundas. Saravá, Baden e Vinícius!

 


Por uma cabeza - Uma volta por Chacarita, seguindo os rastros do cantor, ou en la Boca, bairro boêmio de compadritos, nos arredores de Buenos Aires, ou mirar um velho casal milonogueiro na feira de San Telmo, ou ouvir o bandoneón convidando a cantar Por una Cabeza, na confeitaria Tortoni, talvez nos bailes domingueiros de La Ideal, depois uma pizza en el Cuartito, ao som de Gardel e seus bons ares em todos os cantos da cidade. Chorar todos os mortos ilustres na Recoleta ou espairecer en la Plaza San Martin, depois no Parque Lezama, depois mirar Lola Mora, en la Fuente de las Nereidas, lendo ao mesmo tempo um poema de Douglas Diegues. Tudo além da fronteira. Quem sabe trocar uma canção por essa cidade, ou uma cidade por essa canção. Salve a malandragem porteña! E a música segue tocando.

 


Sinhá – Sinhá, de Chico Buarque e João Bosco, é uma canção que conta a história do Brasil. O primeiro narrador é um negro da senzala que é acusado de ter espiado uma dona branca que estava se banhando no açude. Ele se defende inutilmente e é torturado pelo senhor no pelourinho. Depois de uma alteração tonal (signo de uma mudança temporal no enredo da música), surge um segundo narrador que se diz herdeiro tanto do escravo quanto do senhor de engenho, ou seja, estamos diante de um narrador mestiço, que é o próprio brasileiro. O próprio Chico? Ressignifica-se a primeira parte da canção. Se o segundo narrador é herdeiro da casa grande e da senzala, isso significa que provavelmente o escravo tenha, no açude, enfeitiçado a sinhá. Somos, no Brasil, todos filhos desse idílio, isso sem contar o recorrente estupro sofrido pelas negras e índias, e tantas outras violências que geraram o que chamamos hoje de país. Brasil: Ame-o ou deixe-o!? Como em um poema de Drummond, o leite ao misturar-se com o sangue, formou o terceiro tom a que chamamos aurora. A imagem pode ser bela, mas não deixa de ser trágica.

 


Kosmic Blues - A voz de Janis Joplin vem do Éden (que fica próximo ao rio Mississippi), dá pra perceber ao ouvirmos Kosmic Blues. Perfumada de patchouli, abraça o espaço, depois o rasga e encanta. É alada e azul como o blues, mas ferve avermelhando o vazio da imensidão. Faz os seus feitiços para não ficar sozinha, mas, como sua dona, sofre astuta e angustiada sempre com a solidão. Anda de mãos dadas com o céu e nele tenta se agarrar para não cair. Nem Jimi nem Hendrix sabem de seu sal a queimar a pele em meio a algumas lágrimas que chovem ácidas e com atropelo pelo branco de seu lindo rosto.

 


Aquarela Brasileira - Meu Brasil é o Brasil de Leci Brandão, de José Datrino, vulgo Gentileza, de A.B. do Rosário, de Pixinguinha e Noel, Milton Santos, tia Ciata, Cruz e Sousa, João Maria, dos Sertanejos de Taquaruçu. Meu Brasil é o dos pobres e miseráveis, de Santa Cruz do Piauí, onde conheci o forró e a cajuína, do pinhão do Paraná, de Riobaldo e Diadorim. Meu Brasil é o profundo, de Tom Jobim, Villa-Lobos e Pedro Archanjo, do fandango, do pandeiro, da embolada, da vanera e catimbó! Dos novos baianos e dos velhos marinheiros. De Estamira e de João Lopes, bicho do Paraná. Meu Brasil é o que amo. Das novenas e benzeduras, com arruda ou cera quente, da dona Josefa lá no bairro São Cristóvão. Do Saci e Antônio Conselheiro, do Sururu ou Vatapá, dos encantados, Jamelão e Carcará. Na minha reza de amém-jesus-maria-e-josé, contra quebrantos e inveja, sou mangueira e portela, menino da porteira, a Deus dará... O Brasil do meu amor, terra de nosso Senhor. Não me venham, generais, com a história de indolência negra ou indígena, que, como Vinícius, sou o branco mais preto dessas cercanias... quem é homem de bem não trai o amor que lhe quer!


Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR), no dia 06 de maio de 2021