sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Lepra Criadora

Sempre admirei a forma como Lezama Lima leu o nosso barroco. E sempre achei muito importantes as observações deste prosador-poeta-ensaísta cubano sobre Aleijadinho para uma compreensão geral das ideias presentes em La Expresión Americana:
"Quando maduro, o destino o engrandece com uma lepra (...),que está na raiz proliferante de sua arte, eriça e multiplica, bate e acresce o hispânico com o negro. Anda ao compasso das edificações da cidade (...) vive na noite, deseja não ser visto, rodeado do sonho dos outros, cujo mistério interpreta. Na noite, no crepúsculo da folhagem espessa e sombria, chega com a sua mula, e aviva com novas chispas a pedra hispânica com a prata americana, chega com o espírito do mal, que conduzido pelo anjo, obra na graça. São as chispas da rebelião que, surgidas da grande lepra criadora do barroco nosso, estão nutridas na sua própria pureza, pelos bocados do verídico bosque americano"



terça-feira, 30 de setembro de 2014

Pensar a Política: A(r)mar a arte


Saindo do Forno: Escritos de Filosofia e Política, livro organizado pelo professor Thiago David Stadler, da UNESPAR (Campus de União da Vitória). O lançamento ocorre nos próximos dias. Tive o prazer de participar com um texto onde ensaio algumas reflexões sobre possíveis relações entre Arte e Política, ou melhor, em que arrisco um pensamento sobre a Política, a(r)mando a Arte, em divagações sobre Didi-Huberman, Benjamin, Agamben, etc e tal. Congratulações a toda equipe do curso de Filosofia da Universidade, em especial ao professor Thiago. Grato pelo convite!

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Imagens da América Latina

Os professores André Bueno, Inês Skrepetz, Caio Ricardo Bona Moreira e Dulceli Tonet organizaram na UNESPAR em 2014 o livro Imagens da América Latina, que reúne trabalhos de vários pesquisadores, oriundos de diversas Universidades brasileiras. Todos os textos interessados, de uma maneira ou de outra, em pensar a literatura e/ou a crítica latino americana.


O livro pode ser baixado no link abaixo:


SUMÁRIO

Rita Diogo

Ana Cristina dos Santos

Cláudia Luna

Suely Reis Pinheiro

Manoel de Andrade

André Bueno

Caio Ricardo Bona Moreira

Daniel de Oliveira Gomes

Keli C. Pacheco

Dulceli de Lourdes Tonet Estacheski

Bairon Oswaldo Vélez Escallón

Helano Ribeiro

Leonardo D’Avila

Julia Magalhães de Oliveira

Rubens da Cunha

Artur de Vargas Giorgi

Camila Bylaardt Volker

Tiago Lanna Pissolati

Selomar Claudio Borges

Maytê Regina Vieira

Rafael Miguel Alonso Júnior

Valdir Olivo Júnior

Miguel Angel Schmitt Rodriguez

Juan Manuel Terenzi

Silviana Deluchi

Alexander V. B. Moraes

Louisy de Limas

Inês Skrepetz
 

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Contatos e contágios: escrituras sobre Valêncio Xavier


Este livro é o resultado do Simpósio 30 anos de O mez da grippe: contatos e contágios, realizado em Florianópolis em 2011. Pesquisadores como Raúl Antelo, Ana Luisa Andrade, Luis Felipe Soares, Manoel Ricardo de Lima, Jorge Wolff, Caio Ricardo Bona Moreira, Carlos Eduardo Capela, entre outros, participam da publicação, organizada por Maria Salete Borba.
O mez da grippe é um livro em que Valêncio Xavier retoma algumas características próprias do fazer moderno e “brinca” com a ficção e a realidade. Este jogo moderno é constituído de fragmentos, de textos, de imagens de textos, ou de recortes. Valêncio Xavier incorpora magistralmente os mais variados recursos plásticos e jornalísticos, o que faz de O mez da grippe um exemplo de escritura, tal como nos ensinou Roland Barthes. Desse modo, a “novella” de Valêncio Xavier “é uma galáxia de significantes, não uma estrutura de significados; não tem início; é reversível, nele penetramos por diversas entradas, sem que nenhuma possa ser considerada principal”. (Barthes: 1992, 39) Assim, O mez... passa a ser um convite a transitar entre o que é compreendido por literatura, cinema e jornalismo.
De recortes coletados ao longo de sua vida de pesquisador surge então esta “novella”, na qual os fragmentos de realidade ao deixarem seu espaço no jornal passam a relatar e a esconder fatos, tornando o leitor, co-autor e responsável por todo encadeamento do texto ou da ficção. Tais características possibilitam e exigem várias leituras de fundo teórico, plástico e literário, para que se dê conta de realizar um trabalho de leitura que vá além da simples crítica.
É com o intuito de explorar essa literatura que advém das formas passadas, como nos é apresentado através de O mez da grippe, que buscamos recuperar, a partir do modernismo, referências e fortuna crítica que nos auxiliem a ler Valêncio Xavier, não como démodé, mas como alguém que lê o presente “brincando” com o passado.

(texto de Maria Salete Borba): http://nenaborba.blogspot.com.br/2014/08/httpwww.html


sábado, 14 de junho de 2014

FILME DE AMOR, DE JULIO BRESSANE: POR UMA CARTOGRAFIA DOS GESTOS (Parte II)


Balthus, citado por Bressane como um dos pintores que influenciou a concepção estética do seu Filme de Amor, merece um comentário à parte, já que várias cenas do filme são re-criações de quadros desse pintor francês morto em 2001, aos 92 anos de idade.
Balthasar Klossowski de Rola ficou conhecido por pintar adolescentes, retratadas em cenas aparentemente banais, como em um momento de leitura, sentadas no sofá, ou dormindo. Nem meninas, nem mulheres, as jovens que posaram para Balthus, à maneira de Lolita, de Nabokov, ganharam por meio de seu traço, uma conotação erótica, como na obra Menina e Gato, de 1937, e O jogo de Cartas, de 1948-1950. As personagens, geralmente pré-adolescentes e adolescentes, oscilam entre a ingenuidade da infância, conotada, por exemplo, pelo gato que aparece no quadro de 1937, e a perversidade, o erotismo, sintoma de um despertar do poder da sexualidade. No entanto, isso não significa que sua obra seja pornográfica.





                 
    (Pinturas de Balthus)                                       (Cenas de Filme de Amor)

Balthus, como o seu amigo George Bataille, talvez intentasse representar a natureza sagrada do erotismo. Tendo como incentivador Rainer Maria Rilke, que foi amante de sua mãe, Balthus construiu uma obra anacrônica. Suas adolescentes habitam interiores[1] e oscilam entre o tempo moderno do pintor e o tempo remoto, renascentista, já que suas personagens trazem no rosto expressões parecidas com as das imagens retratadas por Piero Della Francesco, cujos afrescos foram estudados por Balthus.
No texto “O doutor inglês e o paciente argentino ou o médico e o monstro”, publicado em Cinemancia, Julio Bressane observa a sobrevivência da literatura de Browne na obra de Jorge Luis Borges. Bressane recorre às reflexões de Aby Warburg sobre os quadros de Durer e Botticelli, para mostrar que Borges estava interessado em buscar um “signo modular” fora de seus contemporâneos, “fora da espessa indiferença contemporânea” (2000). Relembra o passeio de Borges e Emir Rodrigues Monegal, em plena época do peronismo, pelas noites suburbanas de Buenos Aires, nas quais o autor de História da Eternidade mergulhava nos labirintos da literatura inglesa para buscar fora do espírito da época, do gosto dos criadores da época, “uma influência, uma alusão, que convém a uma intuição, para com ela encontrar-se, misturar-se (BRESSANE, 2000). 
Em um outro texto do mesmo livro, dedicado ao estudo da obra de Emerson, e de como ela sobreviveu no cinema, Bressane escreve uma interessante passagem, aquela em que associa a última estrofe do poema “Brahma”, de Emerson ao filme Je vous salut Marie, de Godard. O cineasta francês, segundo o olhar de Bressane, teria assimilado o mito, bem como traduzido a sua força na tela de cinema, percebendo que mito e poesia se confundem desde sempre:

Je vous salut Marie: A luz, sobretudo a luz, luz soberana e altiva, no alto das árvores e no rosto de toda gente. O mito em movimento, o mito fruindo em nossos dias e influenciando-os. Palestina em Paris. Maria, a água, sua pela branca lavada e revelada. A pele branca em movimento, a película branca, transparente como a água, em movimento transpassado pela luz. Nada fixo, tudo escorrendo na natureza, na vida. O poeta liga-se a sua amada na loucura poética, diz Platão. E prossegue: mas na loucura erótica liga-se o indivíduo à forma de divindade que lhe é própria. Maria traz com ela a sombra de Nossa Senhora ou de Cleópatra. Ave Maria, flor de orquídea, abrindo-se desde a origem do mundo. Gruta encantada, deleitosa, úmida. Água de onde tudo emana. Mito e poesia se confundem desde sempre, desde a aurora do mundo. Aqui o mundo eleva-se com voz e diz: Os deuses desejam minha morada. Meigo amante do bem, une-te a mim! (2000).    

O que Bressane percebe em Je vous salut Marie é de certa forma o que produz em Filme de Amor. Os temas são diferentes, mas em ambos o mito sobrevive, mesmo que em forma de uma ruína. O filme de Jean-Luc Godard apresenta uma versão para a concepção da Virgem. Maria é uma jovem estudante que joga basquete e trabalha no posto de gasolina de seu pai. José é um jovem taxista. Ao saber da gravidez de Maria, José a acusa de traição. O anjo Gabriel tenta convencer José para que ele aceite a gravidez.  Em Filme de Amor, que contou com a belíssima fotografia de Walter Carvalho, as Três Graças são pessoas comuns que vivem no subúrbio carioca e se refugiam em um pequeno sobrado no fim de semana para viver uma experiência amorosa, erótica e pornográfica. No mito, Vênus surge na praia. A beleza indescritível faz brotar flores na areia. A trindade que Vênus projeta se revela nas Três Graças. Eufrosina, Aglaê e Talia eram as deusas do banquete, da dança e de todas as diversões e das belas-artes. Sobre as Graças, escreve Spenser, dando-lhes um aspecto apolíneo:

Ofertam as três ao homem os dons amáveis
Que ornam o corpo e ornamentam a inteligência:
Aspecto sedutor, bela aparência,
Voz de louvor e gestos de amizade.
Em suma, tudo aquilo que, entre os homens,
Se costuma chamar Civilidade
(SPENSER apud BULFINCH).

Aby Warburg, que não dissocia o traço apolíneo e dionisíaco na cultura renascentista, lembra que Vasari viu os dois quadros de Botticelli na vila Castelo, propriedade do duque Cosimo. Vasari considerava Vênus como um elemento central dos quadros de Botticelli, sublinhando a correspondência entre eles. O Nascimento de Vênus representando a origem de Vênus e Primavera representando o momento posterior, em que a divindade aparece em seu reino, tendo como fiéis assistentes Hermes, que dissipa as nuvens, as Graças como a beleza juvenil, a deusa da Primavera e o vento Oeste (WARBURG, 2005). Assim, o pintor florentino, seguindo os conselhos de Alberti, deu corpo às Graças. Na alegoria, tomada de Sêneca, a primeira Graça dá um benefício, a segunda recebe e a terceira devolve. A representação é recorrente em vários trabalhos literários e pictóricos da Antigüidade e do Renascimento. Um dos exemplos pode ser encontrado em uma moeda cunhada em homenagem a Giovanna Tornabouni. Um dos lados da moeda mostra as Graças nuas entrelaçadas da forma já conhecida e do outro lado aparece Vênus que exibe novamente um intenso movimento nos cabelos e na vestimenta, traço sobrevivente da iconografia da Antigüidade.      
Na leitura criativa de Bressane, uma das Graças é um barbeiro, protagonizado por Fernando Eiras. As outras Graças são vividas pelas atrizes Bel Garcia e Josie Antello, uma acessorista e uma manicure. Três pessoas comuns que se encontram num cortiço no centro da cidade e, por meio da embriaguez, do prazer sexual, entram em contato com as três divindades, vivendo uma espécie de “hiato” no sofrimento da vida. Assim, as personagens têm “um pendor, um dom” de criar um intervalo no sofrimento, vivendo um momento de descoberta e prazer. Penso que a leitura de Bressane não deve ser considerada apenas como uma adaptação do mito. Dizer apenas isso seria ainda muito pouco. O cineasta trans-cria – para usar uma terminologia de Haroldo de Campos - o mito numa espécie de movimento centrífugo, já que não é apenas o mito que está em questão, mas também as leituras desenvolvidas a partir dele ao longo da história. É o caso dos textos de Poliziano e Alberti que fizeram sobreviver o mito na obra de Botticelli. Dessa maneira, arriscamos dizer, o filme não é sobre o mito, mas é sobre os gestos. Os gestos do amor, da Antigüidade aos tempos contemporâneos, os gestos da escritura e da iconografia renascentistas, os gestos da pintura de Balthus, os gestos do próprio cinema. Relembremos a hipótese inicial, de que o cinema de Bressane busca filmar a si próprio. Uma obra sobre os clichês cinematográficos do amor. Essas colocações, à guisa de uma conclusão, nos fazem pensar que a tarefa do cineasta é extremamente requintada, já que o que está em jogo é a montagem de tempos. Tarefa que Giorgio Agamben defende como fundamental no trabalho do artista contemporâneo. Para ele, o contemporâneo não é apenas aquele que, percebendo o escuro no presente, “nele aprende a luz resoluta”, é também aquele que, dividindo e interpolando o tempo, “está à altura de transformá-lo e de colocá-lo em relação com outros tempos (...)” (AGAMBEN, 2009). O que Julio Bressane consegue fazer com destreza.



[1] Raúl Antelo, no texto “La comunità che viene, ontologia da potência”, lembra que Thomas Carl Wall associou o livro A comunidade que vem, de Giorgio Agamben, à análise que Antonin Artaud faz da pintura de Balthus, valorizando o aspecto anti-real, ou mesmo anti-moderno de sua linguagem, capaz de funcionar como uma decreatio da vida disciplinada, em que ele (Balthus) captou a impureza ideal da arte:

Não interessavam a Artaud essas cenas de rua tanto pelo aspecto inacabado ou fetal das formas, um pouco à la Dali, que facilmente permitiriam extrair delas uma leitura imprevista ou fantástica da vida moderna. Ao contrário, anti-real, a linguagem de Balthus tinha sentido para Artaud somente quando inserida em contexto. Aí passava a brilhar seu efeito de trompe-l´oeil: quando essa linguagem fisga, no real, no esclarecimento artificial da tela, o sentido secreto, congelado, detido dessa vida, que, no entanto, flui na rua. Mas ainda: Artaud diz, em ensaio posterior, que Balthus fez uma mise à nu da vida banal. Ora, é nesse sentido que caberia falar do livro de Agamben, como uma decreatio (um trompe-l´oeil, uma mise à nu) da vida disciplinada, comunitária. Balthus, ou melhor, seu intérprete, Artaud, bem como Agamben, segundo Wall, teriam assim captado a impureza ideal da arte, de tal maneira que, partindo de uma forma contingente e eventual, a ontologia da potência que todos, de algum modo, perseguem, visa à formalização secundária de uma forma ou potência captada como informe (ANTELO, 2007).

quinta-feira, 5 de junho de 2014

FILME DE AMOR, DE JULIO BRESSANE: POR UMA CARTOGRAFIA DOS GESTOS (Parte I)



Em uma entrevista concedida a Vitor Angelo (2009), para a revista Trópico, o cineasta Julio Bressane falou sobre o seu Filme de Amor. Perguntado sobre o processo de criação da obra, Bressane lembrou que a idéia do filme surgiu quando leu o historiador da arte Aby Warburg e o filósofo Giorgio Agamben, na década de 80. Na época em que o filme foi lançado, o cineasta, convidado para uma conversa com o hebdomadário OPasquim21, observou que pretendeu com a obra interpretar o mito das Três Graças e, por meio dele, “mostrar a sobrevivência dos gestos arcaicos do amor” (2004). A questão de fundo do filme era, a seu ver, uma certa interpretação do cinema como “cartografia de gestos”. Assim, e essa é a hipótese que aventamos aqui, a arte de Bressane poderia ser lida como sintoma de um cinema que busca filmar a si próprio, um cinema que se olha no espelho e não vê outra coisa que a repetição e a diferença, fundadas em seus gestos. 
     Reconhecido como representante do chamado Cinema Marginal, geração posterior ao Cinema Novo, o cineasta foi buscar na leitura de dois teóricos, Warburg e Agamben, importantes subsídios para a criação cinematográfica. Essa troca de experiências, a presença da história da arte e da filosofia em seus filmes dá uma dimensão, ao mesmo tempo, criativa e intelectual, e tende mesmo a abolir a fronteira entre esses dois universos. Assim, o universo intelectual (filosófico) em Bressane não está dissociado do universo criativo. E é da ficção, ou melhor, da fricção dessas duas forças que o artista consegue extrair um terceiro elemento que chamaremos aqui, não por mera conveniência, de “cinema de gestos”. Um cinema consciente da dimensão histórica das imagens por ele produzidas.  
Lembremos que Giorgio Agamben, que caracterizou o homem como um animal que vai ao cinema, em um interessante ensaio sobre Guy Debord, se refere ao estatuto da imagem, não só no cinema, mas nos tempos modernos em geral. Recorrendo aos estudos de Gilles Deleuze, o filósofo italiano concorda que a imagem no cinema não é mais algo de imóvel, não é mais um arquétipo, ou seja, alguma coisa fora da história: é um corte móvel, uma “imagem-movimento”, carregada de uma tensão dinâmica:

A experiência histórica se faz pela imagem, e as imagens são elas próprias carregadas de história. Poderíamos considerar nossa relação com a pintura sob esse aspecto: não são imagens móveis, mas antes fotogramas carregados de movimento que provêm de um filme que nos falta. Seria necessário recolocá-los nesse filme (vocês devem ter reconhecido o projeto de Aby Warburg) (AGAMBEN, 1995).

A concepção de história que permeia esse ponto de vista é messiânica, portanto não-cronológica. Nesse sentido, o princípio constitutivo do cinema é a montagem, caracterizada a partir da repetição e do corte. A montagem sempre foi o princípio do cinema, no entanto, agora, com Guy Debord, esse princípio passa para o primeiro plano. Diz Agamben:

A técnica de composição não mudou, é sempre a montagem, mas agora a montagem passa a primeiro plano, e é exibida enquanto tal. É por isso que podemos considerar que o cinema entra em uma zona de indiferença em que todos os gêneros tendem a coincidir, o documentário e a narrativa, a realidade e a ficção (AGAMBEN, 1995).

 Assim, o cinema é produzido a partir de imagens do próprio cinema. É a transição do regime da fábula para o regime da ficção, como diria Michel Foucault[1] (2001), e que podemos muito bem detectar no cinema de Julio Bressane. Quando Agamben fala da repetição, não a considera como o retorno do idêntico, o mesmo enquanto tal que retorna. Filiado na tradição de Kierkegaard, Nietzsche, Heidegger e Gilles Deleuze, Agamben defende que a força e a graça da repetição, a novidade que ela traz, é o retorno como possibilidade daquilo que foi. Dessa maneira, repetir uma coisa é torná-la novamente possível. Repetição e memória são, assim, dois lados de uma mesma moeda: “Pois a memória não pode nos restituir tal qual aquilo que já foi. Isto seria o inferno. A memória restitui ao passado sua possibilidade” (AGAMBEN, 1995). 
     A memória, como órgão de modalização do real, é “aquilo que pode transformar o real em possível e o possível em real” (AGAMBEN, 1995). Agamben nos lembra que esta é também a definição de cinema, que ao contrário das mídias em geral - que nos dão sempre um fato, o que aconteceu, sem a sua possibilidade -, possui uma potência inexistente no jornal e na televisão. Se pensarmos na imagem cinematográfica como carregada de história, uma história que se repete com diferença - uma diferença potencializada pelo corte, pela fissura, pela ruptura da continuidade história, restituindo ao passado sua possibilidade -, devemos relembrar de Aby Warburg, para que possamos perceber como essa proposição pode ser pensada à luz do cinema de Julio Bressane.
        

Júlio Bressane

Aby Warburg era o primogênito de uma importante família de banqueiros alemães. Seu nome é associado à biblioteca que fundou em Hamburgo e que foi transferida para Londres em 1933. Em 1893, Warburg lançou um estudo sobre as representações da Antigüidade no primeiro Renascimento italiano. A pesquisa ganhou o título: O Nascimento de Vênus e a Primavera de Sandro Botticelli. Warburg tinha em mente com o estudo comparar esses dois quadros mitológicos de Botticelli com as representações equivalentes da cultura poética e teórico-artística contemporânea com o objetivo de verificar quais foram os aspectos da Antigüidade que interessaram a esse artista do Renascimento. 
     O historiador da arte acreditava que era possível seguir passo a passo como os artistas e seus mentores viam na Antigüidade o modelo de um movimento externo intensificado e “como se apoiavam nos modelos antigos sempre que se tratava de representar motivos acessórios em movimento (bewegtes Beiwerk) – tanto na roupagem como nos cabelos” (WARBURG, 2005). Warburg resgata uma passagem do texto em que Poliziano, na sua História da Literatura Italiana, descreve o nascimento de Vênus. A descrição assemelha-se ao quadro de Botticelli. Poliziano, que fora amigo de Lorenzo de Medici, havia tomado um hino homérico como base para a caracterização da divindade. Warburg compara a descrição de Poliziano com um hino homérico para demonstrar que a idéia do movimento sobrevive no texto florentino e por sua vez na pintura de Botticelli. Em ambos, Vênus[2] emerge do mar e é tocada pelo sopro de Zéfiro, sendo recebida pelas deusas das estações. Curiosamente, os movimentos do vento são valorizados por todas as representações elencadas. Um típico caso de sobrevivência. De certa maneira, é o que Didi-Huberman percebe em Brecht. 
Seguindo os passos de Burckhardt, Warburg acreditava que o Renascimento buscara na Antigüidade pagã um modelo de cultura que transcendia o cristianismo medieval e desenvolvera uma experiência global diferente daquela expressada pelas sociedades urbanas e mercantilistas. A “volta à vida do antigo”, como José Emilio Burucua tratou a obra de Warburg, foi o tema central nos textos do historiador. Os movimentos da ninfa, seus cabelos e vestimentas, formaram “um signo privilegiado e manifesto da vitalidade pagã” (BURUCÚA, 2007), que tinha sido obliterada e esquecida durante séculos de civilização. De certa forma é o que Bressane procurou desenvolver em Filme de Amor.


                           
   Estátuas das Três Graças e     Cena de Filme de Amor



Warburg falava da sobrevivência do pathos da Antigüidade, o que chamou de fórmula do pathos, pathosformel. Bressane devolve potência ao mito das Três Graças justamente a partir da sobrevivência dos gestos do amor, tendo em vista que o trio de personagens (um homem e duas mulheres) representa cada uma das facetas do amor: a beleza, o prazer e o amor. Bressane observou que esses traços aparecem na Renascença com Poliziano, íntimo de Botticelli, a quem forneceu os argumentos filológicos para as duas pinturas analisadas por Warburg[3]:

Os gestos espontâneos e automáticos de hoje são os gestos ritualizados de ontem. As posições naturais das pessoas hoje eram feitas de maneira ritual representando aqueles conceitos. Por exemplo: a mulher na ponta dos pés é o sinal do início da reflexão. É o início da dança. Uma indicação do alçar vôo filosófico. Essa mitologia e esses gestos – como se passa no jogo do dar, do receber e do retribuir – são os mesmos até hoje. A metamorfose é como as coisas mudaram de valores através dos tempos. Por exemplo: o arco e a flecha, duas coisas temidas na Antigüidade como instrumentos de morte, com o tempo passaram a ser brinquedo de criança. Enfim: o que é permitido ou não no código e nas regras de um momento da sociedade. Até onde isso foi na imagem? Aí entra o Balthus, um pintor importante, não pelo seu aspecto biográfico – sua mãe foi amante do Rilke – mas por ter feito, como Ravel na Música, a pintura da Pintura. Toda a obra de Balthus é uma parataxe, ou seja, é uma recriação ou um aspecto de determinado quadro. Com esse princípio ele criou o maior repertório de gestos eróticos da Pintura. A chave do filme é essa discussão de como esses gestos vão se transformando e como é possível essa mitologia ter vindo até hoje (BRESSANE, 2004)



[1] Refiro-me ao ensaio “Por Trás da Fábula”, de 1966, em que Foucault contrapõe dois regimes da narrativa, o regime da Fábula, feito de elementos colocados em uma certa ordem, ao regime da Ficção, em que se valoriza a trama das relações estabelecidas.  Fábula é o que é contado (episódios, personagens, funções que eles exercem na narrativa), Ficção é o regime da narrativa, ou melhor, “os diversos regimes segundo os quais ela é narrada” (2001, p. 210).

[2] Um ano depois de pintar O nascimento de Venus, Botticelli coloca o rosto de Vênus em um retrato de Maria, em La Virgen de la granada (1487).

[3] Sobre esse aspecto, Bressane justifica:

A idéia desses homens renascentistas era fazer uma introdução das idéias de Aristóteles e Platão sobre a questão do Belo, valendo-se das traduções e dos comentários feitos pelos árabes (...). A força da Renascença são os conceitos de Platão vistos através da filosofia dos árabes. Poliziano, Laudino, Mattei, todos eles (BRESSANE, 2004, p. 15).

terça-feira, 27 de maio de 2014

A POTÊNCIA DA IMAGEM EM OUTONO/O JARDIM PETRIFICADO, DE MÁRIO PEIXOTO E SAULO PEREIRA DE MELLO: PARTE II


Mário Peixoto

O conto Missa do Galo, de Machado de Assis, foi publicado em livro pela primeira vez em 1899, em Páginas Recolhidas, sete anos antes do lançamento de Relíquias de Casa Velha, em 1906. Páginas Recolhidas apresentava como epígrafe a seguinte frase de Montaigne, extraída do primeiro livro dos Essais: “Quelque diversité d´herbes qui´il y ayt, tout s´enveloppe sous le nom de salade”. A presença de Montaigne não é fortuita na obra. Ela se justifica na variedade do livro, uma espécie de “salada”, reunião de textos como crônicas, contos e novelas, muitos dos quais publicados inicialmente nas folhas de jornais da época, em datas diversas.
O contexto do qual participa a publicação do livro é de grande euforia no cenário cultural. No ano anterior, Machado fora eleito presidente da Academia Brasileira de Letras. Em 1900, a Garnier publica integralmente o romance Dom Casmurro. Acontecimentos como o suicídio de Raul Pompéia, em 1895, e o fim de Canudos, em 1897, ainda ressoavam enquanto se anunciava um novo Rio de Janeiro, que passaria por grandes transformações em sua reurbanização, iniciada em 1904, pelo prefeito Pereira Passos, uma espécie de Barão Haussmann dos trópicos. Brito Broca (1960), em A vida literária no Brasil - 1900, assinala que a transformação da paisagem urbana se refletia na paisagem social e igualmente no quadro de nossa vida literária. Tais mudanças anunciavam não apenas uma nova paisagem a ser descrita, mas principalmente novos modos de operar na literatura as complexas relações entre o homem e o mundo[1]. Na mesma época, José do Patrocínio traz da Europa para o Rio parisiense o automóvel, fazendo todo mundo correr espantado “para contemplar aquela máquina diabólica, de que se desprendia muita fumaça e um cheiro insuportável de gasolina” (BROCA, 1960). Entre a derrocada de um sistema messiânico, que resultaria na morte de Antônio Conselheiro, e o anúncio de um Brasil moderno, pautado pelo nascimento do século XX, uma Missa do Galo.


 Difícil dizer se a Conceição pintada por Machado seria uma femme fatale ou uma femme fragile; um tipo de personagem presente em outros textos do escritor, e que encontraria em Capitu sua fórmula máxima. É provável que essa margem de indecisão seja o fator primordial do fascínio da personagem de Missa do Galo em outros escritores. Não muito distante estaria Salomé, figura bíblica que inspirou várias representações na pintura, no cinema e na literatura, principalmente no século XIX. Salomé ora seria uma espécie de anjo, mesmo no momento em que pede a cabeça de João Batista, ora uma devassa, como fora representada na peça homônima de Oscar Wilde. É justamente por aparecer e desaparecer, como que escorregando para o vazio, delicadamente envolta em levíssima musselina de um amarelo junquilho pintalgado de preto, que Salomé, de Jules Laforgue, ganha contornos de um anjo que seduz ao mostrar e não mostrar ao mesmo tempo o seu corpo. Visão semelhante é a do narrador que contempla o “aparecer” e “desaparecer” do corpo de Conceição:

Pouco a pouco, tinha-se reclinado; fincara os cotovelos no mármore da mesa e metera o rosto entre as mãos espalmadas. Não estando abotoadas as mangas, caíram naturalmente, e eu vi-lhe metade dos braços, muito claros, e menos magros do que se poderia supor (...).

Deu volta à mesa e veio sentar-se do meu lado, no canapé. Voltei-me, e pude ver, a furto, o bico das chinelas; mas foi só o tempo que ela gastou em sentar-se, o roupão era comprido e cobriu-as logo. Recordo-me que eram pretas (MACHADO DE ASSIS, 1959).

A frase bastaria para fundamentar a própria teoria implícita na produção imagética de Mário Peixoto, que, por sinal, era avesso a teorizações. Blanchot nos diz que ver supõe a distância, “a decisão separadora, o poder de não estar em contato e de evitar no contato a confusão” (1987). Se tomássemos esse contato meramente como um completo aparecimento, deveríamos concordar que tal experiência, mais do que trazer confusão, esvaziaria o próprio contato. Falemos então em aparecimento-desaparecimento. O que parece interessar a Mário é justamente o hífen (hímen), aquilo se apresenta como resto no jogo do aparecer e do desaparecer, um entre-lugar. Dessa maneira, o que vemos à distância pode também sugerir um tipo de “toque”. O hífen não seria mais que o erótico, fundamentando a lógica de suas imagens. Se fosse pornográfico, o excesso resultaria numa espécie de falta; não seria mais que um contato esvaziado pela própria presença. Questão semelhante nos é apresentada por Roland Barthes, um escritor que soube muito bem identificar na linguagem o que anteriormente chamamos de hífen:

O lugar mais erótico de um corpo não é lá onde o vestuário se entreabre? Na perversão (que é o regime do prazer textual) não há ‘zonas erógenas’ (expressão aliás bastante importuna); é a intermitência, como o disse muito bem a psicanálise, que é erótica; a da pele que cintila entre duas peças (as calças e a malha), entre duas bordas (a camisa entreaberta, a luva e a manga); é essa cintilação mesma que seduz, ou ainda: a encenação de um aparecimento-desaparecimento (BARTHES, 2002).

No roteiro, o jogo mostrar-não mostrar, criado por Machado, é mantido:

114. CORTE. MEDIUM CLOSE SHOT
(...) uma expressão de aborrecimento se desenha, e ela se inclina em direção ao chinelo que caiu. Ao fazê-lo, o pano da gola do robe, que bambeara, abre-se, revelando o começo dos seios e a separação entre eles (2000).
(...)
374. CORTE. CLOSE MEDIUM SHOT
do primeiro plano do joelho de Helena. Câmera baixa; ao fundo, Abel. Helena segura a bandeja. O robe começa a abrir.
375. CORTE. CLOSE MEDIUM SHOT
de Helena segurando a bandeja, com a mão em primeiro plano. Ao fundo o robe que acaba de abrir vendo-se a parte interna do joelho (2000).

Uma das diferenças significativas do roteiro em relação ao conto é que os personagens são apresentados com outros nomes: Conceição agora é Helena; Nogueira é Abel. Outro fator importante é que Helena possui uma feição sedutora mais nítida do que Conceição. Em vários momentos, impõe-se o desejo feminino como um dos motes que conduzem o encontro. Criar uma imagem que represente esse fato é uma das preocupações dos roteiristas, o que esclarecem numa das notas presentes no scenario: “A decisão de seduzir o rapaz deve expressar-se claramente – mas não é uma sensualidade puramente carnal: há uma certa espiritualidade nela, indefinível ternura, grande doçura e muita delicadeza” (2000). Essa delicadeza se apresenta de maneira contundente numa das cenas mais bonitas do roteiro, aquela em que o contato é traduzido em imagem, num crescendo que culmina no ato mínimo do gesto:

428. CORTE. MEDIUM CLOSE-UP
de Helena. Câmera aproxima-se dela. Pára. Mão de Abel entra em quadro pousa nos cabelos de Helena, acaricia-os, depois penetra por eles sob a cabeça e puxa para a objetiva até o máximo.
429. CORTE. CLOSE-UP
do rosto de Abel crescendo para a câmera até o máximo.
430. CORTE. EXTREME BIG CLOSE-UP
dos lábios. De lado: entram em quadro e lentamente se tocam – depois se unem -, se esmagam.
431. CORTE. EXTREME BIG CLOSE-UP
de pingo de água na janela – “explode” em luzes... (2000).
 
Julio Bressane, um cineasta que se interessou pela obra de Machado de Assis, e que criou uma versão de Memórias Póstumas de Brás Cubas, em 1985, observa que o que é fundamental nesse tipo de atividade é a tradução criativa, uma desleitura capaz de forçar os limites do meio traduzido: “tradução em cinema faz-se com luz-movimento-angulação-montagem” (BRESSANE, 2000). Essa espécie de tradução identificadora poderia ser pensada como uma espécie de profanação - tal como aquela desenvolvida pelo grupo de Osman Lins -, que não estaria preocupada nem em repetir o original, o que seria mesmo impossível; nem em destruí-lo, o que anularia a própria idéia de uma possível desleitura. Lembremos com Giorgio Agamben (2007) que profanar não significa destruir, mas aprender a fazer um uso novo do objeto profanado. O espaço profanador em que circula tal prática seria responsável por fundar uma maneira diferente de operar a própria noção de transformação:

Descobrir a luz, o ritmo, o fino fio de uma tradição de clichês cinematográficos que, transformados, transvalorados, recriados, reinventados, podem, de alguma maneira, nos sugerir, nos remeter, dar-nos uma idéia do formalismo do texto, do objeto, do humor, do mau humor, do original (BRESSANE, 2000).

Mario Peixoto e Saulo Pereira de Mello trabalharam em Outono/O jardim petrificado em prol da desleitura, o que faz com que o roteiro ganhe um traço poético fortemente marcado pela justaposição de planos sugeridos.
Julio Bressane, no artigo intitulado “Brás Cubas”, presente em Cinemancia, observa: “Brás Cubas filme começa por objetos sólidos, passa às águas de um poço e depois ao mar. De líquido torna-se fumaça, neblina, nuvem e termina no céu gasoso. De imagem saturada a imagem rarefeita. Do figurativo ao abstrato. De todas as cores ao branco” (2000). Essa valorização do branco, uma espécie de procura do Neutro, em que as imagens rarefeitas ganham força, já pode ser encontrada na definição apresentada por Saulo Pereira de Mello sobre o cinema de Mário Peixoto: “Em cinema tudo deve ser indireto. Esta formulação simples, como todas as de Mário Peixoto, resume, na verdade, toda a poética do cinema silencioso do qual seu filme Limite é a obra final, resumo e remate” (2001). Esse reino absoluto do indireto poderia ser lido como uma perversão da própria linguagem. Nesse reino, acredita-se na infinita possibilidade narrativa da imagem. 

(Fotograma da transcriação de Bressane para a obra de Machado de Assis)

É como se as imagens tivessem vida e pudessem se relacionar umas com as outras. Aliás, uma das cenas de Outono/O jardim petrificado nos faz lembrar uma das passagens de Dom Casmurro, aquela em que o narrador descreve os olhos de ressaca de Capitu: “442. CORTE. LONG SHOT de Helena – como no shot número 250. Onda se formando, erguendo-se – quebrando e correndo – câmera segue até que “explode” em rochedo. Ruído de mar” (2000). Esse parentesco entre passagens, seja do roteiro com outros textos, ou entre as próprias cenas, é um sintoma de imagens que funcionam como uma espécie de mônada leibniziana. Ou seja, em cada cena do roteiro estaria presente a dobra da cena anterior e o desdobramento da cena seguinte, ou mesmo todo o roteiro. Os corpos de Helena e Abel seriam também o espectro das duas estátuas que aparecem no início do texto, povoando o jardim petrificado, à espera de um incidente que possa mudar o seu estado de pedra, dar-lhe vida, permitir-lhe o amor. O incidente poderia ser uma folha que cai no outono. Poderia também ser o encontro enigmático entre um jovem e uma mulher casada, um encontro que transforma em imagem o gesto de um amor que não se realiza; o único amor que se concretiza aqui é entre o cinema e a literatura. Para finalizar poderíamos perguntar: “Por que dois títulos?” Outono é de Mário. O Jardim Petrificado é de Paulo. Talvez o conto de Machado de Assis nos responda.



[1] Talvez seja na modalidade da crônica que Machado apresente de maneira mais contundente os reflexos do processo de modernização do país. Não que seus romances não o façam, mas é por meio de uma literatura não institucionalizada como a da crônica produzida no final de século XIX que tais questões aparecem com mais freqüência. É o que Ana Luiza Andrade analisa em Transportes pelo olhar de Machado de Assis: “Machado de Assis foi um leitor de seu tempo e do nosso. De seu olhar transicional entre oitocentistas e novecentistas despontam radicais transformações, substituições e deslocamentos culturais, a partir da industrialização. No trânsito finissecular para a modernidade, coincidente com os inícios da reprodutibilidade técnica e com a chegada da imprensa de maior circulação, Machado se projeta, entre o feitiço do olhar e o fetiche do capital, sobre a crônica como metonímia abreviada e desligada de uma literatura institucionalizada” (1999, p.18).