"Esses hóspedes sem peso" (Editora Nave, 2023), de Dennis Radünz,
é um livro que devolve sentido e graça a uma ideia literária muito recorrente -
para não dizer quase gasta - traduzida na expressão "ler é uma
viagem", ou na equivalente "escrever é uma forma singular de
viajar". A obra é uma espécie inusitada de álbum de viagens, ao passo que
poderia ser pensada como a viagem propriamente dita. Difícil imaginá-la sem as
fotografias - quase todas elas tiradas pelo próprio autor - que acompanham a
coletânea de textos. Aliás, tais imagens se constituem como
crônicas-poético-visuais, cumprindo o papel de serem ao mesmo tempo "uma
coisa alheia, mas inteirada", recorrendo aqui a uma expressão usada por
Valêncio Xavier, quando falou do seu fascínio pelas fotografias de Luigi
Crocenzi no romance Conversa na
Sicília, de Elio Vittorini.
Penso que a expressão esteja ligada ao fato da fotografia estar e não estar diretamente relacionada com o sentido dos textos. Essa dimensão, do que é alheio e ao mesmo tempo inteirado, é responsável pela potência enigmática das imagens dialéticas que se disseminam a partir da relação entre fotografia e texto. O alemão W.G. Sebald desenvolveu procedimentos semelhantes em seus livros. Neles, as fotografias aparecem como estrangeiras e simultaneamente muito mais do que meramente ilustrativas.
A obra de Radünz reúne, além dessas
imagens, uma série de prosas que são reviagens do autor a lugares de sua
infância ou àqueles por onde ele passou um pouco antes da pandemia. As fotos
que o cronista-poeta-fotógrafo catarinense fez desses 'locus" dão um toque
especial ao volume.
Poderíamos pensar que autor e leitores são
hóspedes do livro enquanto as crônicas são suas anfitriãs hospitaleiras. Flâneur
andradino, perambulo feito um turista aprendiz em uma série de lembranças evocadas
pelas memórias do escritor. Da minha e sua infância
com os Beatles, com os blocos de madeira de montar (aqueles que vinham com
torres de relógio e telhados), e nossa vocação para a construção de cidades em
miniaturas, sinônimo da própria literatura - essa máquina de guardar o mundo
nos livros ou de carregá-lo, feito um Atlas, nas costas -, vamos percebendo que
ler e escrever são formas não só de buscar o perdido, mas também de remontar o
passado e o presente criativamente.
A experiência do confinamento pandêmico
parece ter motivado sua escrita, ou pelo menos amplificado a potência de seus
sentidos, afinal de contas viajar (pelo tempo e pelo espaço) é uma forma de
reencontrar o mundo e as pessoas em um momento de clausura e luto. Na reviagem,
a imaginação ressignifica as descobertas do turista que tem olhos e ouvidos
dispostos a captar aquele "rés-do-chão" que um dia Antonio Candido
observou como um elemento importante para fazer da crônica, como gênero, “uma
inesperada embora discreta candidata à perfeição”.
Na segunda parte do livro predominam o que
poderíamos chamar de viagens via leitura. Estão ali os textos que abordam a
morte da mãe do narrador. É quando o conjunto vai ficando mais comovedor. Mas
agora o pesar, embora sendo também pela genitora, é principalmente por todos os
mortos da Covid. Nesse sentido, penso que a publicação é mais sobre a vida e a
morte, do que sobre a viagem, ou melhor, talvez seja sobre a viagem pela vida
através de tantas outras viagens, inclusive a da morte.
Em "Esses hóspedes sem peso", a
viagem é antes de tudo pela própria língua. É quando a geografia se faz mágica
como em Guimarães Rosa. Constitui-se aí uma escrita a nos lembrar que o
livro, assim como um rio, se “translocaliza”. Fica aquela impressão de que não
há nele nada fora do lugar, ou seja, de que a direção do seu autor está onde
deveria estar, seja no Acre, no Pará, Mato Grosso, Paraná ou Santa Catarina,
bem como em outros lugares visitados. No horizonte do vírus, se dá um encontro
com o Brasil, ou ainda com a necessidade de reencontrá-lo na iminência de tanta
morte.
Insisto na ideia de que estamos diante de
um livro de viagem que é a própria viagem, ou seja, uma obra tornada viagem (um
jeito de Dennis ser Galáctico, como Haroldo de Campos, com as devidas e óbvias
distâncias, é claro). Uma viagem em torno de si, acima de tudo, como em Xavier
de Maistre. A ideia de uma viagem via linguagem, tal como se constitui na
escritura de Radünz, parece encontrar ressonância em experiências como a do
cubo-poema Linguaviagem, de Augusto
de Campos (1967-1970). A palavra, que virou título de um livro do poeta
concreto, é o resultado do desdobramento das partículas LIN / GUA / VIA / GEM,
em variadas direções de um cubo. Tais elementos morfológicos, postos em
movimento, dão a dimensão polissêmica dos neologismos LINGUAVIAGEM / VIALINGUAGEM.
Se por um lado do cubo o livro promove a viagem para sanar a clausura via
língua, por outro, nos leva até a língua e nela faz a sua viagem.
Caio Ricardo Bona Moreira
Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR), em 02 de dezembro de 2023.