sábado, 2 de dezembro de 2023

Um álbum de linguaviagens: as crônicas-poemas de Dennis Radünz



"Esses hóspedes sem peso" (Editora Nave, 2023), de Dennis Radünz, é um livro que devolve sentido e graça a uma ideia literária muito recorrente - para não dizer quase gasta - traduzida na expressão "ler é uma viagem", ou na equivalente "escrever é uma forma singular de viajar". A obra é uma espécie inusitada de álbum de viagens, ao passo que poderia ser pensada como a viagem propriamente dita. Difícil imaginá-la sem as fotografias - quase todas elas tiradas pelo próprio autor - que acompanham a coletânea de textos. Aliás, tais imagens se constituem como crônicas-poético-visuais, cumprindo o papel de serem ao mesmo tempo "uma coisa alheia, mas inteirada", recorrendo aqui a uma expressão usada por Valêncio Xavier, quando falou do seu fascínio pelas fotografias de Luigi Crocenzi no romance Conversa na Sicília, de Elio Vittorini.



Penso que a expressão esteja ligada ao fato da fotografia estar e não estar diretamente relacionada com o sentido dos textos. Essa dimensão, do que é alheio e ao mesmo tempo inteirado, é responsável pela potência enigmática das imagens dialéticas que se disseminam a partir da relação entre fotografia e texto. O alemão W.G. Sebald desenvolveu procedimentos semelhantes em seus livros. Neles, as fotografias aparecem como estrangeiras e simultaneamente muito mais do que meramente ilustrativas.

A obra de Radünz reúne, além dessas imagens, uma série de prosas que são reviagens do autor a lugares de sua infância ou àqueles por onde ele passou um pouco antes da pandemia. As fotos que o cronista-poeta-fotógrafo catarinense fez desses 'locus" dão um toque especial ao volume.

Poderíamos pensar que autor e leitores são hóspedes do livro enquanto as crônicas são suas anfitriãs hospitaleiras. Flâneur andradino, perambulo feito um turista aprendiz em uma série de lembranças evocadas pelas memórias do escritor. Da minha e sua infância com os Beatles, com os blocos de madeira de montar (aqueles que vinham com torres de relógio e telhados), e nossa vocação para a construção de cidades em miniaturas, sinônimo da própria literatura - essa máquina de guardar o mundo nos livros ou de carregá-lo, feito um Atlas, nas costas -, vamos percebendo que ler e escrever são formas não só de buscar o perdido, mas também de remontar o passado e o presente criativamente.   

(Foto de Ayrton Cruz)

A experiência do confinamento pandêmico parece ter motivado sua escrita, ou pelo menos amplificado a potência de seus sentidos, afinal de contas viajar (pelo tempo e pelo espaço) é uma forma de reencontrar o mundo e as pessoas em um momento de clausura e luto. Na reviagem, a imaginação ressignifica as descobertas do turista que tem olhos e ouvidos dispostos a captar aquele "rés-do-chão" que um dia Antonio Candido observou como um elemento importante para fazer da crônica, como gênero, “uma inesperada embora discreta candidata à perfeição”.

Na segunda parte do livro predominam o que poderíamos chamar de viagens via leitura. Estão ali os textos que abordam a morte da mãe do narrador. É quando o conjunto vai ficando mais comovedor. Mas agora o pesar, embora sendo também pela genitora, é principalmente por todos os mortos da Covid. Nesse sentido, penso que a publicação é mais sobre a vida e a morte, do que sobre a viagem, ou melhor, talvez seja sobre a viagem pela vida através de tantas outras viagens, inclusive a da morte.

Em "Esses hóspedes sem peso", a viagem é antes de tudo pela própria língua. É quando a geografia se faz mágica como em Guimarães Rosa. Constitui-se aí uma escrita a nos lembrar que o livro, assim como um rio, se “translocaliza”. Fica aquela impressão de que não há nele nada fora do lugar, ou seja, de que a direção do seu autor está onde deveria estar, seja no Acre, no Pará, Mato Grosso, Paraná ou Santa Catarina, bem como em outros lugares visitados. No horizonte do vírus, se dá um encontro com o Brasil, ou ainda com a necessidade de reencontrá-lo na iminência de tanta morte.

Insisto na ideia de que estamos diante de um livro de viagem que é a própria viagem, ou seja, uma obra tornada viagem (um jeito de Dennis ser Galáctico, como Haroldo de Campos, com as devidas e óbvias distâncias, é claro). Uma viagem em torno de si, acima de tudo, como em Xavier de Maistre. A ideia de uma viagem via linguagem, tal como se constitui na escritura de Radünz, parece encontrar ressonância em experiências como a do cubo-poema Linguaviagem, de Augusto de Campos (1967-1970). A palavra, que virou título de um livro do poeta concreto, é o resultado do desdobramento das partículas LIN / GUA / VIA / GEM, em variadas direções de um cubo. Tais elementos morfológicos, postos em movimento, dão a dimensão polissêmica dos neologismos LINGUAVIAGEM / VIALINGUAGEM. Se por um lado do cubo o livro promove a viagem para sanar a clausura via língua, por outro, nos leva até a língua e nela faz a sua viagem. 


Caio Ricardo Bona Moreira

Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR), em 02 de dezembro de 2023.