segunda-feira, 27 de março de 2017

Que falta de Cultura



O discurso do Ministro da Cultura, senhor Roberto Freire, na entrega do Prêmio Camões a Raduan Nassar, um dos maiores escritores de nossa história ("Maravilhoso senhor da vida", para usar uma expressão que o querido Roberto Cossan acaba de usar), é sintoma da intrépida desfaçatez do atual Governo. Prefiro celebrar a literatura de Raduan, cujas palavras serão lembradas daqui há séculos, enquanto que as palavras do Ministro serão sepultadas no limbo da história, ou no máximo lembradas como um conjunto de trapalhadas, cópia mal feita de ópera-bufa. As palavras, a postura e o tom de Freire, ao pleitearem seriedade, soam burlescos.
Só uma observação para aqueles que acham que Raduan Nassar deveria devolver o dinheiro do Prêmio Camões com o qual foi contemplado: o valor da propriedade que ele doou ao Governo Federal de bom grado para a construção de um campus da UFSCAR é muito superior à quantia simbólica do prêmio. Vale milhões! Segundo, o Governo não fez um favor a um oposicionista, mas deu andamento a um processo de premiação - iniciado no Governo de Dilma - ao maior escritor vivo da literatura brasileira. Terceiro, o senhor Roberto Freire, Ministro da Cultura, nem é da Cultura, mas sim o presidente de um partido subserviente ao Golpe e àquilo que ganhou com ele.

sexta-feira, 24 de março de 2017

"Com medo ninguém escreve"




Clarice, cuja escrita sempre rimou com coragem, lembrada por José Castello

"Poderia contar como foi recebido da primeira vez que você ligou para Clarice, dizendo que era escritor? Eu tinha uns 25 anos de idade. Um dia, pelo correio, lhe mandei um conto. “Carta a um observador romano”, ele se chama. Entre os 20 e os 30 anos, escrevi muitos contos, embora nunca os tenha publicado. Junto com meu relato, mandei meu telefone, mas nunca pensei que ela iria me ligar. Um dia o telefone toca em minha casa. “José? Aqui Clarice Lispector”, ela me disse. Eu mal consegui falar. Então, antecipando-se, ela disse, com aquela sua pronúncia cheia de erres, que atribuíam a sua origem ucraniana, mas que ela dizia ser o resultado de uma língua presa: “Li seu conto e só tenho uma coisa a lhe dizerrrr: você é um homem muito medrrrroso e com medo ninguém escrrrreve. Boa tarde”, e simplesmente desligou. Até hoje, passados 40 anos, ainda ouço com nitidez sua voz. Foi a crítica literária mais importante que já recebi."

José Castello

quarta-feira, 22 de março de 2017

Sobre a arte de montar uma aula


Sempre imaginei, como professor, a aula como puzzle. Aprendi com Barthes e tenho procurado exercitar tal jogo ao longo dos anos. Posso ser acusado de barroco, complexo, hermético ou doido. Assumo risco. Barroco e completo são quase sinônimos; dobras obre dobras, dobradas deleuzianamente ao infinito. Hermético é alquimista em estado de graça. Sinto-me, poeticamente, nessa brincadeira, quase um Zeus. Doido é fugir do lugar comum, já nos dizia o filósofo. Barthes escreveu um belo fragmento sobre a arte de montar uma aula:

"Colocamos casas para serem preenchidas = uma tópica (grade de lugares). Que cada um as preencha; jogo coletivo: puzzle. Eu sou o fabricante (o artesão) que corta a madeira. Vocês são os jogadores. Princípio da não-exaustividade. Irei mais longe (talvez para me inocentar). O curso ideal seria talvez aquele em que o professor -o locutor- fosse mais banal do que seus ouvintes, no qual aquilo que ele diz fosse menos do que aquilo que ele suscita. Se o curso é uma sinfonia de propostas, a proposta deve ser incompleta, caso contrário é uma posição, uma ocupação fálica do espaço ideal. O sonho: uma espécie de banalidade não-opressiva, arejada. Ou uma vaga alegoria: o Viver-Junto. Toques sucessivos: uma gota disso, um brilho daquilo. Enquanto a coisa está se fazendo, não se compreende aonde ela vai: cf. em pintura: o tachismo, o divisionismo (Seurat), o pontilhismo. Justapõem-se as cores sobre a tela em vez de misturá-las na paleta. Eu justaponho as figuras na sala de aula, em vez de misturá-las em casa, à minha mesa. A diferença é que aqui não há um quadro final: na melhor das hipóteses, caberia a vocês fazê-lo".

Barthes em Como Viver Junto