quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Proust, Alan Pauls, Caetano Veloso e o tempo


















Ele tem pensado muito em Proust, nas suas frases longas. Em como soam polifônicas nos períodos extensos de Alan Pauls, suas "frases habitat". Tem pensado no tempo perdido, na sua longa linha de gasto e espera. Tem pensado muito em Proust depois que leu o capítulo "Narciso em Férias", que integra o "Verdade Tropical", de Caetano Veloso - o capítulo que deu origem ao filme/documentário sobre sua prisão nos anos 60. Tem pensado muito no tempo, no tempo da quarentena, nas pessoas que o mundo está perdendo (que não poderão mais ler Proust), nas frases compridas da prosa de Caetano, na grande envergadura do texto e obra do artista baiano. Tem pensado no tempo que perde lendo e escrevendo frases de curta ou longa duração. O tempo que gasta com livros infinitos ou gigantes como Grande Sertão, Os Sertões, Paradiso, ou Rayuela. O livro é essa casa em que está preso e na qual abre a vista e o passo para a liberdade em sua infinita ou indefinida clausura. Tem pensado também nos livros que tocam nele como canções. Esse tempo gasto não lhe parece perdido, mas busca pensar e então sente que todos (inclusive ele) estão perdendo algo mais do que o tempo.

c.moreira

fonte da imagem: jornal Estado de São Paulo

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Vinícius de Moraes, Jaime Lerner e Curitiba

 


Vinícius de Moraes tem uma parceria musical com o Jaime Lerner. Foi quando o poeta viajou até Curitiba para fazer o show de inauguração do Teatro do Paiol, com Toquinho, Maria Medalha e o Trio Mocotó. Vinícius teria batizado o espaço com uísque. A visita rendeu esta pérola:

Malandro de araque
(Vinícius de Moraes - Azeitona - Jaime Lerner)
"Mosquito que sabe não voa rasante
Em água de rio que tem jacaré
Embrulho bem feito não leva barbante
Bandido não briga com homem de fé
Não jogue esse charme nem use esse jogo
Fazendo passinho pra ver se dá pé
Escute um conselho: não brinque com fogo
Malandro não pega no pé de mulher
Zuzu
Zazá
Zizi
Zezé
Ninguém lhe dá asa, ninguém lhe dá bola
Já esteve na casa, já viu como é
Pois vê se se manda porque nesta escola
Malandro não pega no pé de mulher!"

Imagem: Vinícius em Curitiba no Paiol. O lugar inspirou o música Paiol de Pólvora, parceria com Toquinho.
"Malandro de araque" é executada por Toquinho no encontro informal com Vinícius, Mutinho e Azeitona, registrado por Aramis Millarch, em Curitiba. A música parece estar sendo composta ou arranjada naquele momento informal. O áudio pode ser ouvido no site do jornalista. No link abaixo:

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Pasolini e Maria Callas



Como "E lucevan le stelle", o Brasil é uma ária de Tosca e queima


Em 1970, depois de participar do Festival de Cinema de Mar del Plata, e antes de voltar à Itália, Pier Paolo Pasolini conheceu o Rio de Janeiro e Salvador. Antes de chegar ao Festival, ele já havia feito uma parada em Recife, quando o avião sofreu uma pane, precisando fazer uma parada forçada. Ele viajava com Maria Callas, diva da ópera que atuara em "Medéia" (1969). O encontro com o Brasil é evocado em dois poemas que integram o livro "Transumanar e organizzar", de 1971: "Comunicato all’Ansa (Recife)" e "Gerarchia". No primeiro, ele faz uma referência aos operários brasileiros que encontrou no aeroporto: "no aeroporto em construção, passando / diante de um grupo de operários que trabalham, dos olhos / que se levantam aos passageiros / É assim que o Brasil me saúda". No segundo poema, Pasolini se irmana ao brasileiro, lendo criticamente suas contradições. O poema é tristemente atual...

"(...)
Brasil, minha terra,
terra de meus verdadeiros amigos,
que não se ocupam de nada
ou se tornam subversivos e como santos são cegados.
(...)
Ó Brasil, minha pátria desgraçada,
destinada sem escolha à felicidade
(de tudo são donos o dinheiro e a carne,
ao passo que você é tão poético)
dentro de cada habitante seu, meu concidadão,
há um anjo que não sabe nada,
sempre dobrado sobre seu sexo,
que se move, velho ou jovem,
para pegar em armas e lutar
indiferentemente pelo fascismo ou pela liberdade –
Oh, Brasil, minha terra natal, onde
as velhas lutas – bem ou mal já vencidas –
para nós, velhos, readquirem sentido –
respondendo à graça de delinquentes ou de soldados
à graça brutal (...)"

(Tradução do poema: Maurício Santana Dias)

quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Uma luz no vácuo



 

Uma luz no vácuo viaja a quase trezentos milhões de metros por segundo. Alguns filósofos antigos acreditavam que sua velocidade era infinita. Outros diziam que ela era emitida pelos olhos. Galileu tentou sem sucesso medi-la. Foi só no século XIX que alguém o fez com pequeno erro em relação à medida atual. Foi com um espelho semirrefletor e uma roda dentada giratória que certo físico conseguiu medir a velocidade da luz. Às vezes, uma descoberta custa a chegar. Ela viaja muito mais devagar que o som – às vezes, mais devagar que uma bicicleta. Saber de ti não foi uma descoberta. Foi como ver uma luz se acender no escuro do quarto. Ela veio viajando do infinito a trezentos mil quilômetros por hora. Foi como piscar o olho e no abrir das pálpebras ver uma flor em botão desabrochada sobre si mesma. E tal surpresa só se traduz em encanto porque talvez quando todos os mistérios da vida forem esclarecidos a gente nem perceberá que continuamos girando com o mundo mesmo depois de termos dado uma volta em torno dele. E que na memória o que decidirmos fazer continuar existindo ainda existirá até quando quisermos. Perceberemos também que as coisas mais complexas e maravilhosas são aquelas que nos parecem mais simples. Como a minha mão na tua ou a tua na minha. Ou a forma como os pelos de seu braço se eriçam logo depois que te abraço com um certo aperto. Perceberemos com mais clareza que o calor vai transferindo sua energia para um corpo mais frio e nossos corpos vão encontrando assim um equilíbrio térmico. A ciência nos ensinou que quando dois corpos possuem duas temperaturas distintas com o tempo essa temperatura tende a se igualar e equilibrar. A mesma e outra onda vão quebrando na mesma praia há milhões de anos. A terra segue girando ao redor do sol numa rapidez muito maior do que aquela produzida em torno de seu próprio eixo. Foi assim quando abri meus olhos e te vi olhando pra mim, perdi o meu eixo e comecei então a girar em torno de você.


c.moreira

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

9 poemas para rezar

***

Cristo
tua cruz
É o nosso
mundo

Antes fosse
Que a treva
Esse peso
Um facho de luz

De tudo o que o Pai
Criaste
Somos
Mesmo e de fato
O calvário e a cruz

Perdoa os desatinos,
Não sabemos o que dizemos,
Não sabemos o que fazemos,
Livra-nos de nós mesmos,
Mas deixa um cadinho
Pra esperança,
Pra ver se o sopro
chamusca de novo a chama,
Amem, Jesus!

***

Santo Antonio

 

Antes do mundo
Do que de Pádua
ou Lisboa


Devoto sou
Desse ser
que tirou
As sandálias
Para virar
O senhor
dos caminhos

Quem me dera
Seguir os seus passos
Ou ficar em seus braços
Feito fosse de gesso ou barro
No altar Jesus menino


***


Oratório

Fadado na imagem
A carregar ad aeternum
Como Atlas o mundo
Jesus criança nas costas

Vai e cruza o rio
Pagão convertido
Reprobus ou Offerus
Em Cristóvão cristão

basta ao mártir
um bastão ou cajado
E a fé, essa carga pesada,
Que transforma
Em divina graça
O karma do peregrino

E assim
Benfazejo
Vai Cristóvão
Vai benzendo
Com água santa
O viajante,
O motorista
O caminhão

E então o milagre
No nascer da palmeira,
Me empolgo com a história
E como num filme de Pasolini
Me transformo no santo:
Vem o rei e me corta a cabeça
Agora só vejo
Por Deus,
Nosso senhor,
Com o coração:
Corta!

***

Ano novo

 

Que você
Receba

(No ano que chega)

Tudo o que quiser!
Sagrado seja
O teu viver e
Tudo o que vier!

!Hay que hacer da vida
Un eterno
Milagro!
Como o ar
que se respira
O sal do mar,
Do pão, o vinho,
E o sangue vivo de
San Gennaro


***

Um tau para Francisco,
Solo para árvores e passarinhos

Uma vida desapegada
De tudo o que o tempo rói
Espero um dia alcançar
Um centímetro das relíquias
morais de Francisco
Um fio de cabelo que seja
Um fiozinho só
Um pouco de seu destino de índio
(avesso a todo e qualquer latifúndio)
Um pouco de sua poesia em reza
Regar com ela a semente
e regá-la
Para além da hagiografia
Só pra ver brotar a virtude
Em púrpura, índigo
ou vermelho carmim
Para que desabrochado em flor
Tudo o que é bom
Nasça naturalmente
Em meu jardim

***

São Chico

São como São Chico
Das coisas do céu e da terra
Os índios respeitando seus rios
Os bichos e toda floresta

São como São Chico
O homem um dia será
Se ler em seu breviário
No tempo que ainda lhe resta
O canto de um sabiá

São como São Chico
O tal rio que leva seu nome
E a água como a fé o tau
E a palavra a todo mortal
Que dela tem sede e tem fome

***

Santa Maria
Madre Aparecida 
Teu ventre
em Ó
todo sol irradia
O mundo
Fecunda 
Em teu nome
Toda mãe
Engravida
Em teus braços
Sou eterno menino
Senhora do sagrado feminino
Em meu ser o teu
Tudo o que sei
Santíssima
Mater nossa
Mater dei

***

Em toda mãe preta
O semblante da padroeira
Que abraça seu filho Brasil

Regando com seu leite
O solo auriverde
E a boca faminta
Do menino que traz
Gravado no peito
E ao mesmo tempo
Seu destino de pária
Neste vale de lágrimas
E a esperança
De uma pátria
mais mátria
mais justa e gentil
 
***

Ó

o ventre
entre
o dentro
e o fora

o ventre 
dando a Deus
circunferência
no Ó da barriga
de Nossa Senhora

no ventre
a chama vive
vibra e sopra
e entre
o dentro 
e o fora
como labareda
ou meteoro 
arde divina
e imensíssima
agora

O poema "Ó" foi publicado com o pseudônimo Maria de Fátima Marcondes, 
na antologia Poesia, da Therezinha Cartonera, de União da Vitória (2013).
***


Caio Ricardo Bona Moreira


quinta-feira, 3 de setembro de 2020

“Poema para a catástrofe do nosso tempo”, de Alberto Pucheu: As ondas e o levante

 


O livro “Poema para a catástrofe do nosso tempo”, de Alberto Pucheu, acaba de ser publicado pela Editora Bregantini e disponibilizado em formato e-Book na Amazon, tendo sua verba de arrecadação destinada ao Observatório de Favelas, do conjunto das comunidades da Maré.  

 

Há um tempo de luto e um tempo de luta. Tanto em um como no outro, encontramos uma situação favorável à poesia, essa experiência que faz da linguagem escrita um instrumento de interrogação da vida, de criação de novas possibilidades de entendimento do ser individual e coletivo, sendo por isso um convite permanente à transformação. Há ainda um momento mais pungente, aquele que abarca um tempo de luto e luta simultaneamente. A luta, aliás, é quase sempre consequência de um luto. A humanidade atravessou inúmeras vezes esse período específico em que o choro pelos mortos e o pesar por uma condição adversa deu lugar à revolta, ao grito e ao levante. Esse acontecimento é mais recorrente do que imaginamos. Hoje, por exemplo, temos experimentado com uma força imensa a coexistência entre luta e luto. “Poema para a catástrofe do nosso tempo”, de Alberto Pucheu, é uma síntese de nosso triste presente que capta como um sismógrafo duas ondas sinistras que ameaçam o nosso país, lendo nossa particular tragédia à luz da catastrófica pandemia que já matou quase um milhão de pessoas no mundo.

O poema-livro dá continuidade à produção de alguns textos que tratam da história recente da política brasileira. O primeiro, “Poema para ser lido na posse do Presidente”, publicado em 2010, no dia anterior ao segundo turno da eleição que levou Dilma Rousseff ao poder. O segundo, “Para quê poetas em tempos de terrorismo?”, escrito enquanto ocorria o processo de impeachment que começou a desenhar o absurdo e triste cenário político atual de nosso país. O “Poema para a catástrofe do nosso tempo” começou a ser escrito um pouco antes do segundo turno da eleição de 2018 e foi finalizado há algumas semanas, no momento em que assistíamos (e ainda assistimos) à assustadora situação da pandemia no Brasil e no mundo, paralelamente a uma série de abusos, descasos, arbitrariedades e escândalos envolvendo o Governo que, por sinal, desde o início do surto da Covid-19, tem agido de forma irresponsável na condução de políticas que poderiam minimizar a contaminação e consequentemente as mortes em território nacional.


(Fonte: www.albertopucheu.com.br)

Daqui a alguns anos, as pessoas interessadas em compreender o que está acontecendo hoje no Brasil encontrarão no poema-livro de Alberto Pucheu uma lúcida, emocionada e apaixonante análise (o poema é bem mais que isso, no entanto), três qualidades que não são em nada contraditórias. O poeta, aliás, tem consciência disso e escreve quase no final de seu texto: “Que se tenha aqui em registro para que se possa, um dia, quem sabe, pelos sintomas narrados, investigar a doença maior de nosso tempo, ganhando antídotos sociais, vacinas políticas, curas históricas de modo que ela, em hipótese alguma, retorne”. As duas ondas, a da Covid-19 e a da insensatez política, no Brasil, são avassaladoras, tendo sua catástrofe dimensionada pelo atual Governo. No entanto, cumpre observar, as ondas com o tempo se dissipam ou pelo menos perdem potência, enquanto outras ondas se formam, muitas delas conscientes de nosso estado e capazes de interpretar, bem como de combater nossas misérias. O poema de Pucheu é uma dessas ondas que integrando um conjunto de outras, vai produzindo movimentos e choques capazes não apenas de sintetizar o nosso tenso tempo, mas de abrir brechas nos caminhos fechados por meio da poesia, afinal de contas, como escreveu Lindolf Bell, “o lugar do poeta é onde possa inquietar”. E mesmo confessando um estado de puro desencanto, não há um bom poema que não ilumine, mesmo que timidamente, a escuridão do nosso presente, ou de que pelo menos assinale essa treva, o que pode por sua vez estimular a abertura de uma fresta de luz. Se a onda das excepcionalidades políticas do nosso atual Governo, gestadas desde o impeachment, e a onda da Covid-19, amplificada pela irresponsabilidade do Estado, trouxeram desgraça ao nosso país, há uma onda contrária, então, que demarca um gesto de força no contexto de um luto pelas perdas – pouco sentidas, aliás, pelo alto escalão governamental, como podemos observar avaliando suas ações e discursos – e de uma luta contra nossa catástrofe política. 

A grande onda de Kanagawa, de Hokusai

Insisto na imagem das ondas. Ela encontra ressonância no ensaio “Ondas, torrentes e barricadas”, de Georges Didi-Huberman, publicado no Brasil recentemente pela Revista Serrote (nov. de 2019 – n. 33). No texto, o ensaísta francês compara os levantes às ondas do oceano. Para ele, a potência da onda passa despercebida até o momento de sua explosão: “É exatamente isso que os poemas, os romances, os livros de história ou de filosofia, as obras de arte sabem registrar, amplificando as coisas, dramatizando sob a forma de ficções, imagens de todos os gêneros”. Didi-Huberman analisa como a história e a arte ensinam que a revolta nasce do luto e se propaga em um turbilhão pessoal e, então, coletivo. O texto aponta como as grandes revoluções francesas do século XVIII e principalmente do XIX são representadas a partir de imagens que conjugam, na metáfora da catástrofe meteorológica, a onda, o ciclone, as tormentas, as tempestades, as efervescências climáticas, etc. São “imagens-sintomas” que traduzem um mal (mau) tempo. O céu fecha, o mar se agita e as ondas se levantam para se chocarem umas com as outras. Assim como Pucheu, Didi-Huberman nos fala em catástrofe. Assim como Didi-Huberman, Pucheu nos fala em ondas: “Estamos tristes, poeta, o mar da história é, de fato, agitado, atravessamos ameaças e guerras”. Isso sem contar a onda (nuvem) de gafanhotos e os vendavais no Sul do Brasil, surgidos depois do lançamento do livro. O poema e o ensaio, lidos em conjunto, convidam a uma minuciosa análise comparativa, que, infelizmente, não fazemos aqui por falta de espaço.


Ondas, de Robert Longo

("É preciso aprender a ficar submerso" é o nome de um sugestivo poema em que Pucheu explora a imagem da onda para falar de resistência. Aparece no livro "[Mais cotidiano que o cotidiano]", 2013, Azougue Editorial) 

O espectro que ronda o poema de Pucheu é o do mal tempo, em versos que enfatizam o tom de seu lamento: “Amanhã não será um dia melhor / do que hoje, que não é um dia / melhor do que ontem. Há um / sentimento fúnebre no ar (...)”. Um conjunto de palavras que se repetirá ao longo do livro. O poema aponta para o fato de não assustar mais ninguém com o seu berro: “São, eles, antes, os inassustáveis que diariamente nos assustam”. E esse é um grito de desesperança. Está logo no início do texto e revela a consciência trágica de sua contemporaneidade. Estamos dentro da onda. Há poucas semanas eram 10.000 mortos no Brasil, o poeta nos informa jornalisticamente. Agora, poucas semanas depois da publicação do livro, já são mais de 120.000. Enquanto a informação já envelhecida nos impressiona, colocando o livro no rol das obras do passado, tudo o mais que está ali é profundamente atual e ainda em movimento.

Para Pucheu, o poema não é uma arma contra o autoritarismo, mas o desejo de desarmar o autoritarismo. A viagem ao nosso passado recente, da ditadura de 64 ao processo de impeachment, bem como uma lúcida análise do Governo de Bolsonaro e o acontecimento da pandemia, traçam o pano de fundo da catástrofe de nosso tempo. A inserção de depoimentos de mulheres torturadas pelo Regime Militar e a reunião de frases proferidas nos últimos meses pelo presidente, ganham sentido e força ao serem inseridas no poema-testemunho, recuperando uma potência perdida no dia a dia pelo desenfreado e gasto vai e vem midiático. O poema de Pucheu parece produzir um “lirismo jornalístico”, sobre o qual nos fala Didi-Huberman, um lirismo que insere com propriedade o político na lógica do poético. Um dos pontos fortes que diz respeito a isso aparece na importante e bem elaborada resposta que Alberto Pucheu dá ao filósofo Giorgio Agamben, que recentemente causou polêmica ao questionar a imposição do confinamento por parte do Estado. Só esta passagem já vale a leitura do livro.

Nossa tragédia não é grega, sugere o poeta, mas o poema que aponta para o abismo é uma espécie de Tirésias, talvez o mais lúcido personagem de Sófocles. O poeta não é cego, e assim como Tirésias – que o era – vê: “Sou feito de nervos, carne, assombros / e muito do que olho me intoxica. / Nunca foi tão difícil olhar à minha / volta, mas muito mais difícil é ver / o que olho. Hospitais a cada dia / mais lotados, mortes, pânicos nos olhos / das pessoas, ameaças reais de mortes / por contágio familiar em muitos lares, / cemitérios cavando covas sem parar, / preços disparados do que se tornou / o mais necessário, decretos autorizando / demissões em massa, decretos autorizando / reduções da jornada de trabalho, decretos / autorizando cortes salariais de 30 a 50% / do funcionalismo público, decretos / para reduzir o isolamento, decretos / obrigando as pessoas a trabalharem (...)”. A lista segue adiante e vai longe. Tudo sob controle, só não sabemos de quem, como afirmou o vice-presidente. O poema nos ajuda a entender mais do que a nossa triste realidade. Ajuda-nos a constatar que mais importante do que enxergar, é preciso saber ver, algo fundamental quando diante de uma catástrofe e sem fé na luta, não nos resta muito mais do que levantar a luta. Continuar vivo e não perder a capacidade de ver, aliás, são os primeiros passos. Ao contrário do Governo, que tem revelado como nunca sua maquinaria biopolítica, ou melhor necropolítica, o poema em foco defende a vida e nos convida com presteza a ver. Apesar do desencanto que o move é um alento essa onda que se levanta.             


Caio Ricardo Bona Moreira

Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR).


Fragmento de "Poema para a catástrofe do nosso tempo", de Alberto Pucheu:

XVII

Como quem busca um mínimo
vestígio dos mortos, uma linha
que nos possibilite algum modo
de convívio, ainda que mínimo
e desigual, um horizonte qualquer
de memória, uma contemporaneidade,
um caminho que nos leve até eles
ou os traga até nós, de todo modo,
que não os permita ir completamente
embora, que não nos permita ficar
para sempre sem suas histórias,
sem seus afetos, sem o que
pensaram, sem o que sonharam,
sem o em nome de que e contra
o que lutaram, sem seus testemunhos,
procuro, sem as encontrar, listas
com seus nomes, levando-me a crer
que eles são a cada vez anonimizados,
desprezados, relegados imediatamente
ao esquecimento. Há milhares de nomes
que deveriam estar disponíveis
em algum lugar para sabermos
quem são os mortos diretos e indiretos
pelo vírus e, sobretudo, pelo presidente
que se aproveita do vírus para matar,
mas, além de não sabermos seus nomes,
não sabemos, tampouco, e menos ainda,
os nomes dos subnotificados, daqueles
que passam por fora dos dados
oficiais, daqueles que o governo
não testa e que, mesmo se os testasse,
esconderia os resultados de todos nós.


(Video-poema "É preciso aprender a ficar submerso"

https://www.youtube.com/watch?v=jGwY2daOJGs )