quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Ricardo Daniel Piña, poesia em papelão

Em dezembro de 2014, andando pelo centro de Buenos Aires, num fim de tarde, eu e a Gé, minha namorada, encontramos em um dos tradicionais kioskos da cidade, entre las calles Paraná y Corrientes, as famosas cartoneras, publicações literárias de baixo custo editadas com capas de papelão (daí o seu nome, pois o papelão é comprado de catadores - cartoneros), pintadas à mão, uma diferente da outra. Verdadeiros objetos de arte, as cartoneras que encontramos foram confeccionadas pela Eloísa Cartonera que é uma das editoras mais tradicionais do gênero na Argentina, situada no Bairro da Boca. Conversando com o vendedor do kiosko, que aliás era muito versado em literatura brasileira (perguntou-me de Douglas Diegues, Joselly Vianna Baptista e Haroldo de Campos), descobri que ele é um dos escritores editados pela própria Eloísa - coisas de Buenos Aires. Comprei o seu livro, intitulado La Bicicleta, que acabo de ler, encerrando meu 2015. A doce e fulgurante poesia de Ricardo Daniel Piña se destaca no cenário literário portenho contemporâneo. Na dedicatória que me foi ofertada, depois de uma agradável conversa, Ricardo plantou-desenhou flores na cestinha da bicicleta que ilustra a folha de rosto de seu livro. 




Amadeu Bona, 90 anos em esboço - Retrospectiva 2015

Em setembro de 2015, tive a alegria de participar da organização da exposição "Amadeu Bona: 90 anos em esboço", que trouxe à tona desenhos, rabiscos, projetos pictóricos de um dos maiores artistas plásticos do Sul do Brasil, Amadeu Bona. Sem sombra de dúvidas foi um dos grandes acontecimentos artísticos deste ano, nas cidades de União da Vitória e Porto União. Abaixo, alguns dos desenhos que integraram a vasta exposição:
























Amadeu Bona, o pintor dos pinheirais

Amadeu Bona nasceu em 13 de setembro de 1925, em Doutor Pedrinho, na época pertencente ao município de Timbó (SC). Em 1934, passou a residir Rio dos Cedros, onde recebeu os primeiros ensinamentos escolares. Estudou no Seminário São Paulo, em Ascurra e, em 1942, passou a trabalhar como entalhador na Indústria de Artefatos de Madeira, em São Bento. No dia 09 de maio de 1944, veio para Porto União, contratado pela primeira Indústria de Artefatos de Madeira da cidade, como desenhista na seção de entalhação, data inesquecível em sua vida.   







Em 1945, ingressou no exército. Concluída a missão, passa a trabalhar como escriturário no cartório do Sr. Bentinho. Casou com Helena Mansur em 1947. Como fruto dessa feliz união vieram os filhos Amadeu Filho, Wancler, Roberto, Vera Lúcia e Ana Maria. Na mesma época, trabalhou na Farmácia Minerva e depois no escritório da firma Bohrer & Filhos até meados dos anos 50, momento no qual criou seu próprio estabelecimento comercial, a Casa das Rendas. 















Amadeu considerava-se um amante da música, canto e pintura, desde a infância. Nos anos 60, fundou um quinteto de harmônicas, cantou em coral e em grupos de seresta. Via em Schuwaloff seu maior incentivador. Quando se aposentou em 1978, passou a dedicar-se exclusivamente às artes plásticas. No entanto,  já pintava desde os anos 40, participando de exposições desde 1961. Reconhecido em vida, foi homenageado pelos municípios de Porto União e União da Vitória. Sua obra está espalhada não só pelo Brasil, mas também no exterior.

  

terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Pensando a Vida: retrospectiva 2015


Em 2015, tive o prazer de receber o convite para escrever a orelha o livro Pensando a Vida, de Marli Terezinha Andrucho Boldori. Seguem as breves reflexões da orelha, que desejam apenas ser um convite para os leitores:

Nada acontece por acaso. Assim como um chocolate lambuzado na roupa de alguém pode salvar-lhe a vida, cada um dos textos que compõe este livro tem um destino a cumprir. Que esta convicção não passe despercebida durante a leitura de “Pensando a Vida”, rico e curioso mosaico literário de Marli Terezinha Andrucho Boldori. Estamos diante de uma máquina de produzir imagens, ou seja, de um caleidoscópio. Para conhecê-lo, o leitor precisa girá-lo contra a luz, pô-lo em movimento, ou melhor, virar suas páginas, lendo cada uma de suas frases como quem degusta com júbilo uma imensidão íntima e repleta de sabores e saberes. Daí a pluralidade de gêneros (poemas, crônicas, contos, ensaios) e de temas (política, família, amor, nostalgia, ecologia, segurança pública, cinema, música e outras artes), responsáveis pela riqueza do livro, riqueza potencializada também pela dimensão poética que a autora alcançou em sua escrita. Os textos delineiam em suas cores e formas uma filosofia poética do cotidiano, por meio de um desvendamento da realidade que, ao mesmo tempo, dá prazer e faz pensar. Talvez o seu destino seja essa epifania! Não é por acaso, acredite em mim. E não estranhe, caro leitor, se em alguma frase deste livro algo muito importante se esclareça ou torne-se mais mágico e misterioso para você.  



Tive o prazer também de fazer a apresentação do livro na noite de lançamento. Segue abaixo o texto lido no evento:

APRECIAÇÃO DO LIVRO "PENSANDO A VIDA", DE MARLI TEREZINHA ANDRUCHO BOLDORI
26 DE NOVEMBRO DE 2015

Boa noite a todos e todas. Coube-me a importante e difícil tarefa - embora ainda menos árdua que prazerosa - de apresentar o livro da professora, amiga e escritora Marli Terezinha Andrucho Boldori, intitulado "Pensando a vida", que para a nossa alegria vem a lume nesta noite de 26 de novembro de 2015. Embora não me considere à altura de apresentá-lo com a devida qualidade e atenção que merece, aceitei pensá-lo, desejando pensar este "Pensando a vida" como quem pensa o pensamento, como quem, curioso, mergulha no íntimo de uma escrita pensante e poética, prenhe de sabor e saber, para usar uma expressão do crítico e teórico Roland Barthes, em sua aula inaugural no Collège de France. Pelo menos assim se mostrou para mim desde o início essa obra gestada carinhosamente pela autora durante alguns anos, um livro de sabor e saber.

Roland Barthes

Apresentar um livro talvez exija mais do que falar "sobre" ele. Apresentar um livro talvez signifique falar "com" ele, ou em outras palavras criticá-lo, não para dele falar bem ou mal, posto que a crítica sempre me pareceu menos destinada a dar um veredito feito um juiz no Tribunal da Santa Inquisição e mais vocacionada a devolver potência à obra lida, estabelecendo relações curiosas, ou seja, constelando os próprios textos que lê, fazendo assim com que aquele que ouve ou lê a apresentação - ou mesmo o comentário crítico -, nunca mais leia a obra apresentada ou criticada com os mesmos olhos, que os leitores sejam transformados também pelo comentário, ou pelo menos por ele convidados a ler. Alegro-me em poder aqui, neste momento, convidá-los a ler este livro encantador de uma escritora encantadora. Encantadora em dois sentidos, por ser agradável, simpática, sensível, e encantadora por, feito uma alquimista-feiticeira, transmutar palavras, acordando-as de seu sono e sonho de dicionário, despertando-as, assim, para a magia da literatura. Não se trata de um falso milagre, como aqueles produzidos por encantadores e magos diante de Moisés e Arão, no Velho Testamento, em uma das passagens de Êxodo. Trata-se de uma operação literária que, para usar uma expressão de Octavio Paz, é "capaz de mudar o mundo", já que a atividade poética é, como ele sugeriu, "revolucionária por natureza". Que ela, antes de mudar o mundo, mude-nos. 

Octavio Paz

Por isso lemos, por isso pensamos no que lemos, por isso pensamos com o que lemos, por isso, na apresentação, desejamos falar "com" a obra que lemos. Que essa fala seja poética como a obra é o que desejamos, principalmente em se tratando de um livro tão rico em temas e gêneros. Como não lembrar aqui da alquimia descrita pelo poeta simbolista Dario Vellozo, nascido curiosamente no dia 26 de novembro. Seus versos hoje são sinais de bom agouro: "Genuflexo, o alquimista ora e medita / A Grande Obra o preocupa, o arcano / da existência, a Fênix, soberano / anseio de dar ouro à alma precita" (VELLOZO, 1069, p. 542).

Dario Vellozo

Davi Arrigucci Júnior, ao prefaciar o livro "Valise de Cronópio", de Julio Cortázar, observou algo que traduz uma certa experiência literária que encontro no livro "Pensando a Vida". Faço minhas as palavras do crítico e peço licença para ler na íntegra a citação:

"Neste livro há um mosaico; no mosaico, como sempre uma única e múltiplas faces, facetas e assim por diante. (...) Os mosaicos são múltiplos por natureza: nascem um pouco daqui e dali; podem ser híbridos, integrar a variedade, recompor figuras inteiras através dos cacos, da dispersão dos fragmentos; de repente, a visão se alarga e, zás, as partes consteladas são um todo. No fundo de um tubo, um livre rodopio cria do caos um cosmos: os cacos imantados são céu e são estrela (...). Quando se descolam e liberam seus componentes na descontinuidade do fragmentário, revelam sempre o lúdico essencial que encerram, armados. São, então, um convite ao jogo, à montagem problemática, à participação ativa de quem se delicia com eles, como certos brinquedos de criança: caleidoscópios, quebra-cabeças, enigmas, labirintos e outros avatares de provas iniciatórias, capazes de tocar fundo na gente (...)" (in CORTÁZAR, 2004, p. 7-8).


Júlio Cortázar

Esta longa citação de Arrigucci nos ajuda a compreender não apenas a obra de Cortázar, mas também o livro que hoje se apresenta, permitindo-nos imaginá-lo como uma espécie de máquina de produzir imagens, porque, feito um caleidoscópio, "Pensando a Vida" produz a cada movimento de leitura novos desenhos e cores, de variados matizes e nuances. Talvez, dessa maneira, sua riqueza não esteja apenas na qualidade da escrita literária de Marli Terezinha, mas principalmente na forma como a escritora arma um mosaico, convidando os leitores a montar com ela um quebra-cabeça de temas e estilos variados. Figuram nesse mosaico o cinema de Mazzaropi, de Francis Ford Copola, Hitchcock, Vittorio de Sica, Meryl Streep, Elizabeth Taylor, entre outros. Surgem também de seu baú literário poemas que evocam, por exemplo, o lirismo amoroso em "Juro-te", a paixão pelos livros e pela literatura, na bela "História para Viajantes Anônimos", o amor pela terra natal, em textos como "Ser de lá..." e "Ode a União da Vitória",  a nostalgia da infância em poemas como "Um dia o trem passou por aqui", "Ao meu avô" e "Saudades". 
À medida que avançamos na leitura de "Pensando a Vida", é possível nos sentirmos muito próximos da autora. A forte presença das nossas cidades em seu livro, bem como a de sua família, em especial a da figura de seu pai, permite a nós, leitores, adentrarmos em um universo íntimo e lírico que traduz não só uma subjetividade sutil e encantadora como imprime marcas poéticas em cada um de seus textos. Generosa, a escritora cria uma série de tableaux para homenagear pessoas especiais como Fernanda Montenegro, Fernandinho, René Augusto, Odilon Muncinelli, Inezita Barroso, Chico Mendes etc. Perfis embalados pela música, por exemplo, de Dorival Caymmi. Viremos um pouco mais esse caleidoscópio e seu movimento nos revelará também uma Marli cronista e ensaísta, pensadora crítica que olha para a vida social com um perfil humanista e ao mesmo tempo engajado. Preocupada com a ecologia no textos "A palmeira solitária", e "A enchente nas Gêmeas do Iguaçu", atenta a questões de educação e segurança pública, em ensaios como "15 de outubro: dia do professor" e "Polícia para quem precisa". Como é bom ler um livro difícil de ser resumido. Trata-se, de fato, de um gabinete de variedades.
A escritora argentina María Negroni, em um dos ensaios que integram seu "Pequeno Mundo Ilustrado", observa que os poetas, como as crianças, intuem o vínculo exato entre curiosidade e memória, melancolia e resistência, aventura e tolerância:

María Negroni

E o que buscam é nada menos que liberar as coisas de seu destino utilitário e a linguagem de suas taras mais odiosas: permanecer em seu próprio terreno de caça onde é possível continuar sendo um pequeno príncipe. A poesia é a continuação da infância por outros meios (2011, p. 103).
Essa associação da poesia ao reino da infância, tão forte na obra de Manoel de Barros, por exemplo, se traduz na obra de Marli não apenas no interesse pela memória, inscrita em textos que viajam até a sua infância, mas principalmente na atividade lúdica de escrever um livro como quem monta um quebra-cabeças, cujas imagens, como sugerimos anteriormente, são produzidas por uma máquina semelhante a um caleidoscópio. Nesse sentido, "Pensando a Vida", como uma espécie de colcha de retalhos, ou um álbum de figurinhas, faz a graça de um colecionador. Marli produz e coleciona pérolas, poemas e prosas, reunidas no dia a dia, nos mais variados lugares e situações. E essa pluralidade é sinônimo de sua grande riqueza. Cumpre lembrar que para um bom colecionador a coleção nunca está completa. Seu compromisso, para usar palavras de María Negroni, é com o "inalcançável". E aqui reside seu segredo mais árduo: ao priorizar o que falta ("já que uma coleção completa estaria morta), o colecionador consegue relançar o desejo, estando disposto então a multiplicar as séries, ou seja, a continuar escrevendo. Sempre lhe falta uma figurinha. E se a coleção de textos produzida por Marli está incompleta, é apenas porque desejamos que ela continue escrevendo e que novos textos aumentem a sua coleção, em outras palavras, encerro solicitando que a autora continue pensando a vida. Vida longa a sua obra! Muito Obrigado!

Família Teixeira: retrospectiva 2015


Tive o prazer neste ano de prefaciar o novo livro de poemas da Família Teixeira, seu Affonso, Ulysses e Siomara. Segue o prefácio:

3

No Cine-poema dessa família,
três poetas para a nossa alegria:
Affonso compõe a trilha,
escreve o roteiro Siomara, a filha,
e Ulysses, pintor enluarado,
faz a fotografia

Quando Ezra Pound escreveu ABC of Reading, antes de ser internado em um sanatório, refletiu sobre os três elementos básicos que compõe a poesia, nominando-os: melopeia, fanopeia e logopeia. O poema que concentra sua energia na musicalidade poderia ser chamado de melopaico. Na tradição da poesia de língua portuguesa, desde os trovadores até os poetas-músicos de nosso cancioneiro popular, Vinícius, Leminski, Arnaldo Antunes, entre outros, a melopeia sempre rendeu belos frutos. O poema, por sua vez, que concentra sua energia nas imagens, é chamado de fanopaico. Inserem-se nessa linhagem não apenas os poemas concretos que delegam à visualidade seu valor estético, mas também os poemas cujos versos se caracterizam como máquinas visuais, evocando nos leitores imagens das mais variadas. Chico Buarque, por exemplo, na música Vitrines cria uma bela imagem ao escrever "Na galeria, cada clarão / É como um dia depois de outro dia / Abrindo um salão / Passas em exposição // Passas sem ver teu vigia / Catando a poesia / que entornas no chão". Uma cena de cinema. O poema que trabalha com um jogo de ideias, explorando o trabalho sofisticado da construção do pensamento, é chamado de logopaico. É o que encontramos recorrentemente nos poemas barrocos de Gregório de Mattos ou mesmo nos Sermões de Padre Vieira. Rio de raciocínio, dobras e redobras. Muitas vezes, alguns poemas trazem mesclados dois, ou três desses elementos, ressaltando-se, no entanto, sempre um deles. Penso se essas três categorias unidas em laços espirituais e consanguíneos de afinidades eletivas ou familiares não se encontram bem representados na publicação da família Teixeira que agora se publica. Aqui, a tríade familiar se transforma numa potente e bela tríade poética.
Que não se olvide: em Affonso a melopeia se destaca nos poemas que soam como canções, músicas para o ouvido e para a alma, sinfonias também da saudade. Nos poemas de Siomara, que fazem lembrar por vezes o simbolismo hermético de uma poesia nefelibata, no melhor sentido da palavra - ou mesmo barroca -, a logopeia marca com força sua presença, produzindo um jogo sofisticado de ideias e sensações. Em Ulysses, que também é artista plástico do mais alto calibre, a fanopéia grita aos olhos. Não poderia ser diferente nesses quadros poéticos, altamente sinestésicos, que me levam a pensar que o poeta/pintor escreve o que não pode pintar e pinta  o que não pode escrever. Que não se enganem os leitores. Não se trata de incapacidade de expressão, mas de uma pluralidade artística que se derrama em duas linguagens: Ganha a poesia, ganha a pintura. Nada se perde, tudo se faz poesia.
3 poetas, pai, filho e filha, 3 sangues de um mesmo sangue, 3 escritas muito particulares que parecem migrar para um mesmo oceano. 3 rios em discurso, postos em movimento, como que percorrendo seu caminho singular para desaguar na foz da vida que é a poesia. 3 elementos, como 3 são os estados da matéria, como três são as pontas de triângulo, figura geométrica que muitos místicos afirmam representar a perfeição. Santíssima trindade essa música/pensamento/cor, essa "verbivocovisualidade" quase cinematográfica da família Teixeira, família que consegue com presteza recuperar o sentido da palavra poesia, do grego "poiésis", que quer dizer ação. Entrem nesse cine-poema, apaguem as luzes, acendam o projetor: 3,2,1, ação...


Caio Ricardo Bona Moreira