terça-feira, 30 de agosto de 2011

Semana Literária & Feira do Livro 2011




PROGRAMAÇÃO UNIÃO DA VITÓRIA


Semana Literária – Feira do Livro
Literatura e Sociedade
Autor homenageado Antonio Cândido
Período 12 a 16 de Setembro

Palestra - “O discurso artístico no mundo contemporâneo:
uma relação arte e literatura”
Dia 16 (sexta-feira) 19h
Palestrante: Nádia Régia Maffi Neckel
Mediador: Caio Ricardo Bona Moreira
Local: Auditório da Fundação de Cultura

FEIRA DO LIVRO
Livrarias e Editoras de União da Vitória e Porto União
De 12 à 16
Público em Geral
Local: Fundação de Cultura de União da Vitória
Horário: 08h às 12h e das 13h30 às 20h

EXPOSIÇÃO
Exposição sobre Antonio Candido
De 12 a 16
Público em Geral
Local: Fundação de Cultura de União da Vitória
Horário: 08h30 às 19h30

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Chico: entre a música e a literatura... sofrendo de palavras



Há uma tendência na crítica em “planificar” a obra dos artistas que costuma avaliar. O que é lamentável. Na música, quanto mais plural é a produção de um compositor, mais ele é vítima da própria obra, que acaba sendo julgada com base na tradição que ele próprio constituiu para si. Um exemplo: Chico Buarque.

Depois de lançar o requintado disco “Chico”, em julho de 2011, o autor de “Roda Viva”, ou é louvado ou execrado. Marcelo Moutinho, no texto “Chico versus Chico" (Bravo! agosto 2011), observou que a cada novo disco, “um espelho se ergue diante de Chico Buarque”: “Porém, como um Dorian Gray às avessas, é a imagem do artista jovial e engajado da década de 1970 que se reflete no aço”. O crítico ainda escreve: “Nesse confronto consigo mesmo – promovido não pelo cantor, mas por parte do público e da crítica -, o gongo costuma soar rápido: vitória por nocaute do Chico de outrora”. Moutinho foi muito feliz ao levantar a questão.

O público, muitas vezes, acaba imaginando um compositor ideal que, se não for coerente com os procedimentos musicais que lhe renderam os louros, acaba sendo açoitado, como aquele escravo que é o narrador de boa parte da música “Sinhá”, que integra o novo disco. Os ouvintes mais boçais talvez digam: “Chico não é mais o mesmo”. Claro. Concordo. Mas pergunto: Deveria ser diferente? Que artista queremos? Aquele que repetirá sempre as mesmas fórmulas de sucesso, ou aquele que tem um compromisso, antes de tudo, com a sua própria obra, e não com o mercado? Se o Chico produzia um tipo de música na época da ditadura isso não significa que ele deva, depois de 30 ou 40 anos, escrever as mesmas coisas. A liberdade deve ser o princípio constitutivo de toda obra. O mundo mudou e não mudou. A música de Chico mudou e não mudou. É assim com todos os artistas.

Parece-me que a relação entre a literatura e a música, em Chico, está cada vez mais próxima. É o próprio autor que aponta essa aproximação. O narrador de “Querido Diário”, que abre o disco, é um sujeito desterritorializado, que faz lembrar alguns de seus personagens da literatura: “Há algo de incômodo nesse personagem, talvez ele pertença mais ao mundo da literatura que ao da música popular, a exemplo do narrador de O Estorvo. De certa forma, me identifico com tipos assim”, diz Chico Buarque em um depoimento para a Folha de São Paulo (15 de julho de 2011 - Ilustrada). Esse namoro entre música e literatura aparece em vários momentos do disco. Aliás, um outro namoro inspira o novo álbum. Trata-se da parceria entre o autor e Thais Gulin. Basta ouvir a música “Essa pequena”, que tematiza o romance entre o homem mais velho e a mulher mais nova. Aliás, Thais participa do disco, dividindo o vocal de “Se eu soubesse”.


Minhas duas canções prediletas já estão escolhidas: “Sou eu”, cantada com Wilson das Neves, e a já citada “Sinhá”, composta com João Bosco. A primeira é um bonito samba – alegre e engraçado - que repete a parceria entre Chico e Wilson (ambos haviam composto anteriormente Grande Hotel). A música relata a história de um homem que vai com sua amada a um baile, uma gafieira, uma gandaia, seja lá o que for. Ela dança com vários, joga charme para todos, mas o homem está seguro, pois sabe que quem a levará para casa “sou eu”, ou seja, ele.

A segunda merece um comentário mais acurado. Chico e João Bosco já haviam composto uma música a algumas décadas. Voltaram a escrever juntos e assim nasceu “Sinhá”, talvez a canção mais refinada do disco. A canção é narrada inicialmente em primeira pessoa por um escravo que pede clemência ao seu senhor depois de ser flagrado próximo ao açude em se encontrava a “sinhá”, mulher do “sinhô”. O escravo será açoitado por supostamente ter visto a mulher tomando banho nua. O canto é de desespero e mimetiza o lamento dos escravos banzando nas senzalas. A primeira parte da música é executada em acordes menores, com o objetivo de criar um ambiente de lamentação. Em um segundo momento, a fala do escravo dá voz a um outro narrador – talvez o próprio Chico – que confessa ser herdeiro tanto do escravo sarará quando do senhor. Para chamar a atenção para esse outro narrador, Chico cria uma modulação, levando a música para acordes maiores. A belíssima música acaba sendo um retrato do Brasil. Chico é um legítimo Buarque de Holanda. O que seu pai fez no âmbito teórico ele faz na arte.

Lembremos que em “Leite Derramado”, o racismo é tematizado e a questão da mestiçagem também. Mais um elo entre a música e a literatura de Chico. Há um detalhe em "Sinhá" que eu não havia percebido até que um amigo, apaixonado por Chico, apontou-me. Trata-se do pronome de tratamento que o escravo dirige ao senhor. O mesmo pronome é usado de três maneiras diferentes. Inicialmente “vosmecê”, na seguida, “vosmincê”, e, então, “vassuncê”. A transformação não é fortuita. É como se a palavra se modificasse a cada chicotada; como se o vocábulo, como o negro, sofresse e se despedaçasse. É possível que um quadro de Debret traduzisse essa história, colocando mais feijão nessa feijoada. O Chico chegou a falar sobre o assunto no site que criou para revelar os bastidores do disco. Incrível! Aqui a história do Brasil acompanha a história da língua. Mais literário impossível!



c. moreira

veja a letra e o vídeo de Sinhá:
http://letras.terra.com.br/chico-buarque/1932795/

Trata-se de uma transmissão para a internet que foi feita ao vivo há alguns dias do apartamento do Chico, no processo de divulgação do disco.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Os Chuvosos, eu vos convido


A chuva que aqui cai, dia a dia, quase sem parar, transformou este que vos escreve em um chuvoso nefelibata. Do que escrevo aqui, nada preciso se anuncia. Destas palavras apenas sei que guardam carinhos, pingos de chuva, a que o vulgo chama lágrimas. O leitor guarde para si as respostas convenientes e as mesuras esclarecedoras que não ouso dedilhar. Nada sei, apenas sinto. Não me julgue pela imprecisão. São apenas períodos derramados, parágrafos que caem chuvosos. Vivo intensamente essa chuva sem deixar de imaginar que um arco-íris ainda nos dará o prazer de uma bela visita. Chover palavras ainda nos resta.


Certa vez, escrevi aqui no blog que só consigo escrever sobre aquilo que amo (mesmo que seja para falar mal). Outra vez, perguntei-me: “Por que sinto tanta necessidade de escrever sobre as pessoas que amo justamente quando elas vão embora?”. E hoje, pergunto: “Por que adio tanto escrever sobre aquilo que mais amo?”. Tenho mil coisas pra falar, mas deixemos o que há de mais íntimo nas profundezas das tardes e noites mornas ou frias de domingos e feriados. Tropeço no fim de semana e já estamos nas intermitências da segunda-feira (agora quase final de semana). Enquanto tenho alguns nós na garganta, brotados nas alegrias e tristezas da vida, vou tecendo gestos de uma escrita quase. De todos os meus adiamentos, há um que também trata do amor. Ele não se resume a este texto. Seria preciso pensar bem mais, imaginando uma forma justa e honrada de fazê-lo existir. Não estou falando só do amor. Estou falando de Wilson Bueno.

Quando fiquei sabendo – por meio de uma pessoa queridíssima – da morte do autor de "Mar Paraguayo", além de ficar extremamente triste, pensei imediatamente em escrever-lhe uma homenagem, como aquela que rabisquei para Dorival Caymmi e Valêncio Xavier. A mensagem me chegou como pedra. Talvez uma carta, talvez um tableau. Wilson Bueno foi um daqueles que produziu em mim um abalo sísmico. No entanto, minha admiração por ele é tão grande que me calei com a notícia de sua trágica e violenta partida. Como aqueles indígenas descritos por Freud em “O Totem e o Tabu”, intentei silenciar o meu luto com o silêncio. Há nomes de mortos que são impronunciáveis. Esse, é claro, não é o caso de Wilson Bueno. Como professor de literatura, faço questão de pronunciar seu nome e suas palavras – sobre-nomes, nomes de outros nomes – sempre que suas imagens brotam no meio dos meus dias, nas margens das minhas aulas. Mas não é só o luto que transformou minha homenagem em papel branco. Wilson Bueno é daqueles que, ao hesitarem constantemente entre o som e o sentido, deixam aos comentadores, ao mesmo tempo, um belo presente e um desafio constante: a impossibilidade de olhá-lo sem que sejamos imediatamente por ele transformados e a incapacidade de devolver um olhar à altura.

Mas ao invés de escrever um tableau para Wilson Bueno (Uílcon Blanco diriam os mais agressivos), prefiro tomar um banho de chuva. Quem não se lembra daquelas brincadeiras de infância. Como bichos corríamos pelo quintal à procura da felicidade antes de um raio de sol.

“Esses animais, eu vos convido, era uma vez”. Assim começa “Os Chuvosos”, poema-fábula, poema-música. Eu já sabia da existência desse livro, mas nunca prestei muita atenção. Até que encontrei no sebo uma bonita edição confeccionada pela Jussara Salazar, para a editora Tigre do Espelho. Conversando com ela, fiquei sabendo que só existem 50 exemplares dessa edição. Ela me contou que Bueno lhe pagou uns trocados para que os chuvosos começassem a cair. Depois caíram numa outra editora e na net também. Os 50 exemplares me fizeram lembrar daqueles poetas que antes de serem reconhecidos, bancam as suas edições em tiragens mínimas. Mallarmé é um bom exemplo. Quem serão os outros 49? Onde estarão chovendo?

Pois bem. Não foi só por isso que o livro me chamou a atenção. Quando li pela primeira vez, desde o primeiro momento, percebi que estava diante de um nefelibata falando sobre nefelibatas. A associação com os simbolistas foi imediata, tendo em vista que esses poetas finisseculares foram, muitas vezes, tratados pejorativamente como homens que viviam nas nunves, uma referência aos seres imaginados por Rabelais... Como, a meu ver, a poética simbolista sobrevive no trabalho de Bueno, a relação, por meio do livro, foi inevitável. Bueno, além de produzir uma escritura que devolve potência aos poetas simbolistas do Paraná, afirma-se também como um nefelibata, em “Os Chuvosos”. O sentido que o autor dá aos imagistas aéreos, no entanto, não é negativo. Nefelibata, aqui, não é aquele que é alienado porque recusa viver o mundo que vivemos. É aquele que, sobre a nuvem, consegue ver com mais clareza e de forma panorâmica o mundo em que habitamos. Nefelibatas são aqueles que se transformam em Chuvosos e, ao se transformarem, fazem da manhã uma “festa de luz e passarinho”: “O mais lindo nesta história, contudo, é o dia em que os Chuvosos sobre a Terra caem... múltiplos, gasosos, incessantes, transformados na névoa que deste lado se vê e que, feito um encanto, coroa os postes das madrugadas bêbadas de neblina... e vai pelas frestas das janelas e sobe à copa do velho pinheiro e ali fica, halo gentil que a noite abriga, até que o primeiro sol da manhã a dissolva... numa festa de luz e passarinho”. O poema, por mais estranho que pareça, parece ser uma visita do poeta contemporâneo aos nefelibatas da belle époque.

Sobre o texto, Adriana Peliano, escreveu um belo depoimento: "Quando eu era pequena, sonhava em saltar da janela do avião para brincar com os moradores do reino das nuvens. Meu amigo Wilson Bueno me mostrou que não era sonho, pois eles existem mesmo!" Em uma entrevista concedida a Cláudio Daniel, ao ser perguntado se depois do divertido texto voltado às crianças, o autor pretendia se dedicar mais à literatura infantil, Wilson Bueno respondeu: “Eu diria que Os Chuvosos se destina, ao menos este é o meu desejo, a leitores dos 0 aos 100. E tem sido esta a recepção dos escassérrimos 50 exemplares “fabricados”, um a um, à mão, como se fossem gravuras. Gente de todas as idades fica encantada com este livro. Mas ali tem o toque mágico da Jussara Salazar que reinventa o texto e faz dele no papel uma literal fulgurância”. Em uma conversa com Rodrigo de Sousa Leão, o chuvoso Bueno disse que não escreveu "Os Chuvosos" pensando especificamente nas crianças, pelo contrário - era até, em princípio, para integrar o seu livro "Jardim Zoológico", mas então Bueno e Jussara decidiram que o livro seria destinado às crianças e como ele o tinha escrito para uma menina, Kaira, então com 5 anos, e tinha a ela dedicado o texto, "Os Chuvosos" ficou sendo mesmo um título de literatura infantil.

Poderíamos aceitar que estamos diante de um texto de literatura infantil, mas apenas na medida em que, ao lermos o texto de Bueno, comportamo-nos como crianças a brincar com um caleidoscópio. Imagino que todo bom leitor é um leitor infantil. Eis a minha tese. Walter Benjamin defendia que o pensador deveria se colocar diante da história como uma criança a girar um caleidoscópio. Não seria diferente ao lermos esse texto de Wilson Bueno. Assim como os nefelibatas do final do século XIX e início do século XX, o autor de “Os Chuvosos” inventa uma máquina de produzir imagens, "múltiplos gasosos", a partir de cores e cacos. Eis a moralidade do nosso brinquedo.

Vale lembrar que o livro foi lançado em 1999, ou seja, trata-se da obra de um outro fim de século. Teria sido essa uma mera coincidência? Estamos, aqui, diante daqueles “dois umbrais” a que se refere o crítico argentino Daniel Link, no ensaio que compara os dois finais de século, tendo Rubén Darío como guia. Trata-se do texto: “Utopias: dois umbrais”, que integra “Como se lê e outras intervenções críticas”. Sobre “Os Chuvosos” apresentarei um trabalho em um Congresso de Literatura, em Buenos Aires, ainda este ano. Vamos ver quanta chuva ainda cairá até lá. Trata-se de uma homenagem tardia que pretendo fazer àquele que poderia ter inspirado Drummond a escrever: “A chuva me irritava até que um dia descobri... era Bueno que chovia... a chuva era Bueno... e cada pingo de Bueno ensopava o meu domingo".

c.moreira

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Vila-Matas de novo! considerações sobre o romance "Se um de nós dois morrer", de Paulo Roberto Pires



André Nigri, no texto “Defunto Brincalhão” (Bravo! junho 2011) afirmou que o romance “Se Um de Nós Dois Morrer”, de Paulo Roberto Pires, é, desde já, um dos romances mais cativantes, engenhosos e bem escritos do ano. Raquel Cozer (Estadão, 27 de junho de 2011), analisando o lançamento do mesmo livro e a proliferação da publicação de “romances de editor” no Brasil perguntou: “O que leva um editor, ciente das dificuldades de vender livros num mercado saturado, a publicar seu próprio romance?”. A meu ver, a importância do livro de José Roberto Pires suplanta o fato de ter sido produzido por um empresário do mercado editorial. Creio que Pires, antes de editor, deve ser considerado como escritor. A leitura, se de um lado pressupõe a inteligência e a curiosidade de um leitor para fatos da vida literária ou da vida do autor, de outro, exige um certo grau de inocência. Blanchot dizia que “a leitura é uma felicidade que exige mais inocência e liberdade do que consideração”. Portanto, lemos o livro porque ele existe e não apenas por ele ter sido escrito por um renomado editor. Devemos ler com inocência e alma aberta. Deixemos de lado a consideração.
A pergunta de Raquel Cozer poderia ser reformulada: “o que leva o ser humano, ciente das dificuldades de vender livros num mercado saturado, a publicar seu próprio romance?”. Mas essa não é uma questão que pretendo desenvolver. Quero pensar o mais recente livro de Paulo Roberto Pires sem levar em conta o fato de ter sido criado por um editor.
Este livro não é um livro de editor. É o livro de um leitor. Do leitor de um leitor, ou seja de um leitor de Vila-Matas. É o livro de um apaixonado, como o de Kelvin Falcão Klein. Aliás, coincidentemente, li o livro de Pires, o de Klein e o “Dublinesca”, de Vila-Matas, quase que simultaneamente. O exercício não foi planejado, mas foi bem curioso, por dois motivos. Primeiro, porque os acasos e os jogos do destino fazem parte do imaginário de Vila-Matas. Encontros inesperados, relações impensadas, transações inauditas, curiosidades, inventadas ou não, são, para o autor, bem mais que fatos fortuitos. Segundo, porque essa leitura quase simultânea permitiu que os textos viajassem no mesmo barco, dialogando entre si e permitindo o intercâmbio de uma experiência literária que diz respeito a um dos grandes escritores contemporâneos. Ou seja, as três leituras permitiram que os três livros ganhassem novos sentidos por meio desse passeio geminado. Não quero compará-los aqui. Já escrevi sobre um deles. Escrevo sobre o outro. E sobre o terceiro talvez nem escreva, quem saberá? Mas há algo que chamou a minha atenção. Os três livros foram publicados no mesmo mês. Terá sido essa uma coincidência daquelas tão caras a Vila-Matas? (“Dublinesca” já havia sido publicado no ano passado na Espanha, mas só agora foi traduzido e editado pela Cosac Naify).



Impressiona-me o fato de Vila-Matas despertar tanta curiosidade em outros escritores a ponto de levá-los a escrever livros que o elevam à categoria de personagem. Esse talvez seja um dos maiores prêmios que um escritor pode conquistar. Mas há algo mais interessante ainda. É o fato de o acontecimento exercitar aquela característica da literatura apresentada por Borges em “Sete Noites”: “A literatura não é esgotável, pela simples razão que um livro não o é. Ele é um ente comunicável: uma relação, um eixo de infinitas relações”.
Certa vez, José Castello, em um belíssimo ensaio sobre Raduan Nassar, intitulado “Segredos Íntimos”, escreveu que “livros não existem para o entendimento, mas para a invenção. Inventamos novas maneiras de ler os mesmos livros. Sobre livros, abrimos outros livros, e nada mais”. A frase cai como uma luva. Ler os livros de Vila-Matas significa abrir outros livros, ler os livros sobre Vila-Matas, como é o caso de Paulo Roberto Pires, significa abrir um livro de outros livros de outros livros de outros livros. Estamos diante do eixo de infinitas relações a que se refere Jorge Luis Borges. Estamos dentro da biblioteca de Babel. Estamos dentro do livro que está dentro do livro que está dentro da biblioteca de Babel que está dentro do livro. Um livro - lembrando da Maria, de Padre Vieira no “Sermão Nossa Senhora do Ó” - é o imenso maior que o imenso, por isso “imensíssimo”. Isso porque dentro do livro está toda a biblioteca. E não se trata de entendê-la, mas de inventar uma forma sempre diferente de lê-la.
André Nigri, apesar de escrever sobre o livro no mesmo espaço que, costumeiramente, Paulo Roberto Pires escreve – na Bravo! (amigos de verdade gostam de falar bem de amigos) – estava certo ao afirmar que “Se Um de Nós Dois Morrer” é um dos grandes livros do ano. Creio que foi até agora um dos melhores livros que li em 2011.


Paulo Roberto Pires

Théo, o protagonista, é um escritor que sofre daquele Mal criado em laboratório (escritório) por Vila-Matas, o Mal de Montano. Sofre do excesso de leituras e da falta de um livro. Trata-se de um distúrbio “lítero-psiquiátrico” que poderia chamar-se “síndrome de Vila-Matas”. Antes de morrer, Théo organiza em envelopes todos os fragmentos de um livro inexistente e incumbe a ex-namorada Sofia de entregar seu “legado de angústias” a Vila-Matas. Pede também algo bem mais esquisito. Que suas cinzas sejam espalhadas por ela em vários pontos estratégicos de Paris. Depois de viajar a França e entregar os restos mortais do escritor quase desconhecido aos ares da capital do século XIX, Sofia inicia a busca de Vila-Matas.
Entre o recebimento das instruções e o desfecho do livro, deparamo-nos com belíssimas ilustrações, com os fragmentos desse material inédito - que inclui cartas, apontamentos, confissões – com os passos de Sophia. Os textos de Théo, ao contrário do que poderiam parecer em um primeiro momento, não tornam o livro enfadonho. Pelo contrário. São eles que impulsionam aquele deslocamento narrativo tão presente nos livros do próprio Vila-Matas. “Doutor Pasavento” talvez seja um bom exemplo.



Em um livro que trata da busca do desaparecimento o que vemos é justamente o contrário, nada desaparece. Pasavento está fadado a não desaparecer, sua escritura também. O livro é um dos mais longos do escritor. Tudo aparece, as ruas de Paris, os hotéis, a Patagônia argentina, Robert Walser, a literatura. As divagações do narrador são tão interessantes quanto o enredo do livro. Trata-se de um deslocamento narrativo, como falamos, que, mesmo sendo, às vezes, demasiado longo, não faz da leitura um fardo que lamentamos carregar. É assim como os “pedaços de obra” que compõe a pasta literária de Théo. Nela, encontramos, por exemplo, “Treze instruções para Montano (e para mim mesmo)”; “A arte de abandonar livros”; projetos abortados; cartas; diários de Paris. Vila-Matas bem poderia aproveitar esses “restos” e fazer deles uma obra. Ou não. Poderia apenas constatar que o Mal de Montano e o Mal de Bartleby atinge mais pessoas do que parece. Diz Théo em uma carta dirigida ao autor de “Dublinesca”: “Você não tem o direito de tornar tudo isso seu, de beber a minha bebida, de beber até demais, de dedicar seus livros a Paula, de ter uma Paula como a personagem principal do único livro que publiquei, o único que saiu destes dedos sem o medo de fazer o já feito, de ser afogado pela falta de originalidade do mundo. E que mesmo assim naufragou, ainda que no reconhecimento dos críticos”. Théo odeia Vila-Matas (o que talvez não seja muito diferente de amá-lo). A relação de um leitor-escritor com sua influência pode ser de amor e ódio, de admiração e inveja. Somos todos um pouco donos daquilo que amamos. Sempre achei amor de fã um dos mais passionais da humanidade. Se de um lado a literatura de Vila-Matas lega a Théo uma maldição, a do escritor afogado pela falta de originalidade do mundo – como escrever aquilo que seu mentor já escreveu? -, por outro, é ela que permite a existência do livro, mesmo que imaginário, o livro virtual pressuposto pelo conjunto de fragmentos. Sem Vila-Matas, quem seria Théo?

Os relatos de Théo são pulsações vivas de um morto. Como em “Trapo”, de Cristóvão Tezza, em que um jovem poeta – “marginal, solitário, apaixonado e suicida” – lega ao mundo um envelope com a obra que nunca publicou. O material chega às mãos de um professor aposentado (se não me falha a memória de Linguística), por meio da dona da pensão onde o jovem morreu. Aos poucos, o professor vai mergulhando no universo de Trapo, sendo transformado pela sua presença – ausente - nos textos. É o que acontece com Sophia, no livro de Pires. Ambos os livros são retratos de dois mortos, de dois suicidas, de duas escritas que poderiam ter sido e não foram... mas que são. Nada mais justo do que celebrar a vida que se depreende de seus textos.

c.moreira

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

JOGO DE CENA ou A PRESENÇA AUSENTE DE VILA-MATAS (Sobre o livro Conversas apócrifas com Enrique Vila-Matas)


Michel Foucault, no texto “Por Trás da Fábula”, observa que em toda obra narrativa é preciso distinguir fábula e ficção. A fábula se refere ao que é contado, episódios, personagens, funções que eles exercem na narrativa. A ficção, por sua vez, está ligada aos diversos regimes segundo os quais ela é narrada. Ou seja, a fábula está diretamente ligada ao que é contado; a ficção, ao modo como se narra, aos procedimentos de escrita. Assim como a fábula está ligada à cultura, a ficção está ligada à língua. Foucault ainda observa que nenhuma época utilizou simultaneamente todos os modos de ficção que podem se definir no abstrato: “deles se exclui sempre alguns que são tratados como parasitas; outros, em compensação, são privilegiados e definem uma norma”. Essas observações talvez nos ajudem a pensar melhor o livro “Conversas apócrifas com Enrique Vila-Matas” (2011), de Kelvin Falcão Klein, publicado recentemente pela editora Modelo de Nuvem. Vejamos.

Já no início do livro o autor (usemos ainda essa palavra alegro ma non troppo) afirma: “Este livro foi construído de forma parasitária”. Se por um lado essa forma está ligada ao fato do livro nutrir-se daquilo que absorve de outros livros, “lendo as leituras que esses livros fizeram de outros livros ainda mais distantes”, por outro, está ligada à noção de “ficção” apresentada por Foucault. É parasita porque se aloja no texto do outro, ou melhor, porque aloja o outro, antropofagicamente, em si. Os limites se embaraçam. As fronteiras se diluem. E é parasita, no sentido foucaultiano, porque trabalha com restos, aparas, produzindo um bazar de variedades, um armazém de pegadas: “Em toda escritura há sempre um resto, algo que não é digerido e que deve ser retomado inúmeras vezes, e que, retornará sempre, oscilando na lacuna que define a diferença e a repetição”.

As duas formas parasitárias, a de Foucault e a de Kelvin Klein, penso, estão intimamente ligadas. O “autor” das Conversas Apócrifas coloca mais um tijolo na construção literária, quase gaudinesca, de Enrique Vila-Matas. Ou melhor, coloca mais combustível na máquina mitológica desse escritor catalão, doente de literatura. Isso por que ele não fala “de fora” daquilo que pretende analisar (a própria noção de análise, aqui, entra em torvelinho, pois estamos diante de uma traça que ao roer as páginas de um Livro, re-traça, recorta, reinventa).

A palavra análise vem do grego “análusis”, quer dizer dissolução, método de resolução. O verbo “analúo” significa desligar, dissolver, soltar, separar. Pressupõe a separação de um todo em seus elementos, o estudo pormenorizado de cada parte de um todo. A expressão parece estar ligada a uma tradição hermenêutica que, segundo Vicent Jouve, guarda para a leitura o princípio de coerência, já que acredita ser possível relacionar a obra com uma intenção, uma origem, que garante sua unidade de sentido. Herméneutikos significa “fazer conhecer”, “traduzir”, “interpretar”. O procedimento de escrita, praticado por Klein parece estar distante desses princípios, filiando-se muito mais a um procedimento de desconstrução que, ao invés de procurar uma coerência, pode se preocupar em “jogar com as oposições e contradições de um texto”. Não há interpretação, mas interferência. As traças de biblioteca não sobrevivem fora dos livros.

O desconstrucionismo derridiano, nas palavras de Jouve, inaugura uma leitura disseminadora e centrífuga. Barthes, que aliás é citado algumas vezes no livro de Klein, percebeu com inteligência que “interpretar um texto não é dar-lhe um sentido (mais ou menos fundamentado, mais ou menos livre), é ao contrário apreciar de que plural é feito” (S/Z). É exatamente esse tipo de perspectiva que parece se depreender do texto caleidoscópico de “Conversas Apócrifas”. Kelvin consegue trilhar o caminho que vai da obra ao texto, do autor ao leitor apaixonado, passando por uma escrita que torna impossível a existência de uma estabilidade discursiva. Estamos diante de um ensaio – se é que ainda possamos conferir aqui um gênero - que toma a crítica e a criação como um par indecidível. A primeira parte do livro poderia figurar como um sub-capítulo de sua tese acadêmica.

Interessa-lhe perceber de que plural é feito o(s) texto(s) literário(s). Trata-se de mergulhar o olhar em uma “galáxia de significantes”, para usar ainda uma expressão de Roland Barthes, devolvendo um novo uso aos objetos profanados. É claro que aqui estamos diante de uma profanação da profanação. Não é à toa que Francine Weiss, no texto Longe do Sagrado (jornal Rascunho, junho/2011), tenha percebido que o resultado obtido por Klein não aspira ao autêntico, “do que pode ser chancelado pela univocidade do divino”. Vale lembrar que apócrifos são os textos que apesar de pleitearem um caráter de sagrado, não são aceitos como canônicos. Isso porque o que está em jogo é a sua autenticidade. Os dois sentidos, o da autenticidade posta em corda bamba e o da marginalidade instaurada pelo seqüestro do sagrado, fazem do livro de Klein uma interessante máquina de produzir deslizamentos e erupções que abalam os limites entre o ficional e o não-ficional. De um lado, o gênero “entrevista” é posto em xeque – as conversas são montadas e remontadas a partir também de fragmentos dos livros de Vila-Matas - de outro, o projeto intelectual passa a ser entendido como algo que “só se realiza quando está disperso, quando aponta para várias direções, quando está disseminado”.

Kelvin é aquele que monta por meio do conhecimento e da imaginação. Por meio do caos e da experiência. E esse procedimento não está implícito em seus jogos de cena, mas é afirmado pelo próprio escritor: “Este livro também se posiciona na perspectiva de que, no mundo da palavra, não há nada de próprio ou exclusivo, somente recorte ou montagem”. Em outro momento: “A literatura estranha do presente captura o que está dado, o que está entregue como mercadoria corrente, e, a partir disso, faz montagem”. O que demonstra que não estamos apenas diante de um livro sobre Vila-Matas. Trata-se de um livro com Vila-Matas.

Kelvin produz fissuras, repetições, diferenças, cortes, costuras, armando um discurso tão parasitário quanto aquele exercitado pelo entrevistado. Para isso, ele mimetiza (no melhor sentido da palavra) os procedimentos de escrita do autor de Dublinesca, procedimentos que levam adiante a escrita vertiginosa com a qual decidiu con-versar. Francine Weiss, no artigo já citado pergunta: O entrevistador reduplicaria em seus apócrifos, o projeto ficcional de seu mentor? Creio que sim. O livro poderia funcionar como nota de rodapé da obra de Vila-Matas, ou é a obra de Vila-Matas que recheia as notas dessas Conversas Apócrifas? Para chegar a esse resultado, Kelvin pagou um preço. Transformou-se em um doente de citações, como Montano. Suas conversas estão "recheadas" de falas alheias. Se elas iluminam ou escurecem nossa leitura de Vila-Matas, aí é outra história.

O livro explora com criatividade os procedimentos que são recorrentes nos livros do homenageado, o esfumaçamento das fronteiras entre criação e crítica, entre leitor e escritor, entre leitura e escrita, entre o original e a cópia, entre a morte e a vida do literário, entre a saúde e a doença da escritura. Por trás da fábula, das conversas apócrifas, do chiste, dos jogos armados por um hábil admirador, há uma séria brincadeira que nos permite ler o livro de várias maneiras. Como fábula, como ficção, ou mesmo como ficção da ficção, a mais pura verdade.

Kelvin Klein, assim como Vila-Matas, faz antropofagia por meio da amizade. “Amigos” é o título da primeira sessão das entrevistas: “Eu deixo o outro viver em meu texto para que ele se transforme, efetivamente, em uma parte de mim, sem que perca, com isso, suas feições”. Aqui, Kelvin é Vila-Matas. E não é também. Ser amigo é ceder lugar ao outro em si. É fazer de si o outro e vice-versa. Para Agamben, no texto “O amigo”, o termo “amigo” pertence “àquela classe de termos que os lingüistas definem como não-predicativos, isto é, termos a partir dos quais não é possível construir uma classe de objetos na qual inscrever os entes a que se atribui o predicado em questão”. Se a amizade não é uma propriedade ou uma qualidade de um sujeito, isso se dá por que ela é a instância de um “com-sentimento da existência do amigo no sentimento da existência própria”. A amizade, por si, já seria a denominação dessa política da “condivisão”. Não se trata, como sugere Agamben de afirmar uma intersubjetividade, mas de aceitar o amigo como “um outro si”. Essa amizade se materializa no livro a partir do ready-made, assimilado pelo autor por meio principalmente das leituras de Vila-Matas, em Vila-Matas. E é aqui que as fronteiras se tornam mais rarefeitas ainda. Isso por que, se a escrita de Vila-Matas produz leituras de leituras, o livro de Kelvin exercita amorosamente a leitura de uma leitura de uma outra leitura. Ou como ele mesmo diz, o livro é um “longo inventário das evidências da sedução ativa de uma série de textos sobre o leitor”.

Voltemos ao ensaio de Foucault. Para ele, depois que novos modos da ficção foram admitidos na obra literária, “linguagem neutra falando sozinha e sem lugar, em um murmúrio ininterrupto, palavras estranhas irrompendo do exterior, marchetaria de discurso, cada um tendo um modo diferente), torna-se novamente possível ler, de acordo com sua arquitetura própria, textos que, povoados de discursos parasitas, teriam sido por isso mesmo expulsos da literatura”. É o que essas Conversas Apócrifas afirmam: a possibilidade de continuar lendo.

(Perdoem-me por este texto meio parasita)

Obs: Esse meu texto é intitulado Jogo de Cena numa franca alusão a um dos curiosos trabalhos de Eduardo Coutinho. Quem se atreve a enxergar em seu filme os discursos parasitas de Kelvin? Ou vice-versa?

c.moreira

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Literatura mediana ou crítica mediana?: “Então você quer ser crítico?” (Sobre o livro Então você quer ser escritor? e uma crítica)

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“Velai o rosto, ó cientistas da crítica!
– o bom crítico é... o artista da crítica"
Adolfo Casais Monteiro





Pergunto-me o que é pior, uma literatura mediana ou uma crítica mediana? Será possível circunscrevê-las em territórios estanques e seguros? Será possível ao crítico julgar uma literatura como mediana sem lambuzar os dedos, sem perceber que para julgá-la dessa maneira deve produzir uma crítica que não seja também mediana? O que estou querendo dizer é que uma crítica mediana pode ser tão censurável quanto uma literatura que é considerada como tal. Critiquemos a crítica, façamos literatura. Com isso não quero sugerir que uma é melhor do que a outra. Não se trata também de reiterar a tola cisão entre ambas, que é antiga e improdutiva. Trata-se de observar que se o crítico não se entusiasma com determinada obra, o leitor (quizás un crítico, mira, mira!) tem todo o direito de não se entusiasmar com uma crítica. Como leitor, defendo aqui, a título de piada, a disseminação de um novo gênero: a crítica da crítica. Ele não é novo, mas deveria ser mais valorizado por jornais e revistas, e não apenas pelos tratados acadêmicos. Críticos deveriam ser tão louvados ou execrados quantos os escritores que eles estão dispostos a analisar (julgar).

Depois de ler o mais recente livro de Miguel Sanches Neto, a reunião de contos “Então você quer ser escritor?”, deparei-me com uma crítica do livro produzida por Marcos Pasche, intitulada “Entre oito e oitenta” (Jornal Rascunho: maio de 2011). O crítico começa o seu texto observando que, diante de extremos - o “livro grandioso” ou o “péssimo” -, a tarefa da crítica ganha certo conforto. Para Pasche, seria muito mais fácil criticar as ótimas obras e as péssimas obras, do que as medianas. De início, estamos diante de um ponto problemático, já que o fenômeno literário não se entrega fácil aos charmes de um crítico-juiz, aquele que possui uma autoridade: “Esta obra é grandiosa”, “esta é péssima”. Reduzir a obra a um juízo de valor como esse é perigoso. Penso que a crítica exige um tipo de entrega que suplanta as meras noções de valor. Depois de ready-mades como o Urinol, de Duchamp – para citar o exemplo mais óbvio e um dos mais curiosos – o que fazer com as noções tradicionais de valor? Terá o crítico a mesma autoridade de um juiz do Tribunal da Santa Inquisição? Talvez, mas apenas no sentido de que esse juiz tenha a consciência de que os lugares do tribunal e suas vozes são intercambiáveis. Somos todos juízes (talvez a palavra não seja mais essa), réus, algozes, vítimas e testemunhas. Somos todos responsáveis pelo crime literário. Sem direito à fiança. Logo, essa zona de conforto, do crítico que julga sem lambuzar os dedos na lama, parece-me cada vez mais ineficaz. Walter Benjamin, em “Conceito de crítica de arte no romantismo alemão”, fez uma lúcida afirmação ao observar que com os românticos se estabeleceu de uma vez por todas a expressão “crítico de arte” em oposição à expressão mais antiga “juiz da arte”, evitando-se a representação de um tribunal constituído diante da obra de arte, “de um veredito fixado de antemão como lei escrita ou não escrita”.

Voltemos ao texto de Pasche. Ele escreve que os livros medianos são mais desconfortáveis para a crítica, precisamente “por se situarem numa terceira via, a qual, neste contexto, não costuma ser muito fértil, visto não ser tão curta a ponto de inviabilizar o trânsito, nem tão longa a desafiar o horizonte e nos impulsionar ao deslocamento”. Essa é a impressão que lhe causou o livro de Miguel Sanches Neto, “Então você quer ser escritor?”. Convém ressaltar que Pasche não deixa muito claro o motivo de considerar o livro como mediano, o que por si só bastaria para colocar seu texto no rol das críticas medianas. A justificativa mais convincente, porém ainda não satisfatória, advém do argumento: “O autor (Sanches Neto) nunca escreve de forma rasteira; não cede aos azulejos frios da abstração nem se embala pela chapa quente dos tiroteios neonaturalistas; também não decai na gozação banalizada que se acredita transgressora nem se confina na seriedade experimental refratária a qualquer espontaneidade. Tanto na prosa quanto no verso, o paranaense não se submete aos receituários da época, revelando um trabalho elaborado com idoneidade e autonomia. No entanto, mesmo a evitação dos vícios somada a essas virtudes não conferem às peças em questão maior expressividade”. Que idoneidade e autonomia é essa a que se refere Marcos Pasche? Não seriam suficientes? Que expressividade é essa que falta a Miguel Sanches Neto? Ficamos sem saber. O crítico, com esse argumento, pressupõe uma obra ideal, o que ela deveria ser em relação às outras obras, aos outros autores. Nota-se que o crítico parece se colocar em um lugar bastante seguro. Mas seria esse lugar suficiente? O analista contenta-se em julgar. O fato me faz lembrar de um livro quase esquecido de um intelectual também quase esquecido. Trata-se do estudo “Clareza e mistério da crítica”, de Adolfo Casais Monteiro. Em uma das passagens do belo livro, lemos que “a função da crítica não será pôr um rótulo definitivo em cada obra, em cada autor, mas atualizá-los permanentemente, conservá-los vivos, tirar deles o valor e o sentido que, por mais variável, se conserva permanentemente atual pelo seu poder de repercutir e reviver em nós, por muito diferentes que sejam as sucessivas interpretações”. Encanta-me a expressão usada por Casais Monteiro: “conservá-los vivos”. Se a boa crítica tem o poder de conservar vivos um autor e uma obra, isso se deve ao fato dela revestir-se de uma característica inquestionável: a capacidade de doar vida à literatura, dar força, devolver potência. Para que isso aconteça, a crítica deve lambuzar os dedos.



Nota-se que Casais Monteiro percebeu na década de 60 (o livro é de 1961) – momento que sofríamos com o excesso do Estruturalismo e da crítica marxista – que criação e crítica não são elementos opostos. Cito mais uma colocação: “(...) nada nos impede, essa é que é a verdade, de supor, também, que a crítica não está na dependência da obra anteriormente criada – mas que apenas a continua, a prolonga, e, assim, não se distingue dela por oposição”. Não sei se o autor dessas linhas era um leitor de Walter Benjamin, mas provavelmente leu com interesse os românticos alemães, e, convenhamos, aprendeu a lição.

Creio que uma crítica mediana pode ser pior do que àquela apaixonada, que execra ou acende uma vela à obra que está disposta a ler. Pasche, ao não exercitar a crítica apaixonante (ele escreve que “o estudioso inevitavelmente contamina seu juízo pela paixão” – ó inquisidor), abandona aquilo que Casais Monteiro considerou como algo fundamental para o exercício crítico: a paixão. Segundo ele, a paixão “não tem o significado de cegueira, nem de demência, mas indica precisamente aquela força comunicativa que se opõe ao frio raciocínio. O frio raciocínio nunca poderia levar um crítico a tomar partido, porque o caracteriza precisamente aquela presunção de objetividade à qual se deve por uma grande parte a má fama de que goza a crítica pelos seus repetidos malogros, e a freqüência com que prefere os autores de segunda (ou medianos, para aludir à expressão de Marcos Pasche), quando não de terceira ordem, os quais precisamente não perturbam o frio raciocínio, por isso mesmo que perturbar não é virtude sua”.

Em determinado momento, Pasche escreve que Miguel errou ao “não alicerçar sua forma narrativa sobre técnicas de composição que garantiriam ao conjunto maior densidade estética”. Forma narrativa? Densidade estética? O que é uma densidade estética? Os pressupostos do crítico estão intimamente ligados a uma linhagem modernista – autonômica - que pensava a literatura como forma e não como força. Em outra passagem, defende que, nos contos do livro, não há uma penetração aguçada no interior dos personagens, os quais, segundo Pasche, vivenciam “situações de grande tensão emotiva, as quais são relatadas com escassa tensão narrativa”. Pergunto-me se a tensão narrativa a que se refere o crítico não estaria nos pequenos detalhes que compõe os textos: na “coisa visguenta” que mancha o vestido da protagonista do conto “Sangue”; nas “árvores submersas” que dão nome a um dos textos (um dos mais bonitos do livro, por sinal); nos olhos do filho, que iluminam a narrativa de “Animal Nojento”; no misterioso personagem que é descrito em “Não comerás carne”, uma espécie de irmão pródigo; na vida que poderia ter sido e não foi, em “Duas Palavras”; na aventura e prazer que se convertem em asco, em “Redentor”; na vida que não é mais, em “O último abraço”. Outros pontos poderiam ser destacados. O livro, em sua heterogeneidade temática, parece guardar ainda elos, fios, redes subterrâneas. Penso que os contos guardam afinidades eletivas entre si. Não são secretas, mas tênues. Trata-se da vida que escorre, como aquela “coisa visguenta”, do conto. Estados estão em constante transformação nos contos de Miguel Sanches Neto. Não se trata de exigir deles grandes tensões narrativas, como quer Pasche, mas de perceber nessas pequenas transformações – na vida que escorre, que é e não é sempre a mesma – acidentes, acasos, desastres que transformam constantemente seus personagens, que são e não são todos nós.

Se eu me julgasse um juiz, certamente olharia para a crítica de Pasche, lembrando de Fellini, e daria a minha nota: entre oito e oitenta, 8,5.

c.moreira

domingo, 27 de março de 2011

ZOONA

ZOONA - encontro literário de Curitiba. Acontecerá
nos dias 15, 16 e 17 de abril. Durante três dias,
escritores e artistas da cidade e de outros lugares, com a intenção de
abrir um espaço simbólico que consiga festejar, refletir e mostrar
trabalhos criativos, apresentarão temas-provocações em debates de
mesa-redonda, poesia ao vivo, performances, lançamentos de livros e
mostra de video. APEGOS é apenas o começo de uma
série de atividades que comemorarão a obra e a vida dos
homenageados Wilson Bueno (1949-2010) e Valêncio Xavier (1933-2008).

terça-feira, 15 de março de 2011

Cineclube urtiga!

O Colegiado de Letras, da FAFIUV (Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de União da Vitória - PR) inaugurará o Cineclube Urtiga no próximo sábado (19/03/2011). O Cineclube é um projeto coordenado pelos professores Luisandro Mendes de Sousa e Caio Ricardo Bona Moreira. As sessões serão quinzenais e contarão, além da projeção de um filme previamente selecionado, com debates entre os participantes. As projeções ocorrerão normalmente no Salão Nobre da Instituição. Em caso de algum outro evento na Faculdade, será utilizada alguma sala de aula.

Visando cumprir o previsto no Projeto Polítco Pedagógico (PPP) do curso, o Colegiado de Letras promoverá durante o ano letivo de 2011 a exibição de diversos filmes, inseridos dentro de ciclos temáticos ou históricos. De acordo com o PPP do curso de Letras, é tarefa do curso promover atividades culturais que integrem a comunidade acadêmica com a população, visando a difusão dos bens culturais, tecnológicos e científicos. Um dos objetivos do cineclube é também ser uma alternativa ao cinema comercial convencional, educando o gosto da comunidade para outras formas de expressão cinematográfica, que de outra forma seriam inacessíveis ao público universitário e à comunidade em geral. Assim, esse tipo de atividade funciona como um incremento na formação cultural acadêmica, que nem sempre é possível de ser contemplada em sala de aula.


O cineclube exibirá no primeiro ciclo clássicos do cinema mudo. O segundo ciclo contemplará o documentário nacional. No segundo semestre os filmes serão de dois períodos do cinema europeu, a Nouvele Vague francesa, e o Neo-realismo italiano.

O primeiro ciclo exibirá no próximo dia 19 de março (sábado), às 17:00hrs, o filme "Limite" de Mário Peixoto. Lançado em 1931, e única produção do diretor, é um marco no cinema brasileiro, tanto por sua beleza, quanto por sua narrativa ousada, influenciada pelas vanguardas européias da época.
A entrada é franca e aberta a toda comunidade.  

Programação provisória:

- março/abril
Clássicos do cinema mudo
12/03 - Limite (Mário Peixoto, 1931)
26/03 - Homem com uma câmera na mão (Dziga Vertov, 1929)
09/04 - O gabinete do Dr. Caligari (Robert, Weine, 1920)
16/04 – Metrópolis (Fritz Lang, 1927)

- maio/junho

O documentário nacional
07/05 - Cabra marcado pra morrer (Eduardo Coutinho, 1984)
21/05 - O prisioneiro da grade de ferro (Paulo Sacramento, 2004)
04/06 - Ônibus 174 (José Padilha, 2002)
18/06 – Estamira (Marcos Prado, 2006)

- Agosto/setembro (datas a serem agendadas)

Nouvele Vague
- Acossado (Jean-Luc Godard, 1959)
- Os incompreendidos (François Truffaut, 1959)
- Band a part (Jean-Luc Godard, 1964)
- Hiroshima mon amour (Alan Resnais, 1959)

- Outubro/novembro (datas a serem agendadas)

Neo-realismo italiano
- Ladrões de bicicletas (Vitorio de Sica, 1948)
- Roma, cidade aberta (Roberto Rosselini, 1945)
- A aventura (Michelangelo Antonionni, 1960)
- A estrada da vida (Fellini, 1954)

terça-feira, 8 de março de 2011

amor de carnaval

Pierro, Arlequim e Colombina, óleo sobre tela - 78 x 65 cm- 1922 - Di Cavalcanti.
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Ela morava no Vice King. Ele no Cristo Rei. Eurídice trabalhava no comércio. Orfeu, de repositor, no mercado. Ela gostava de beijar e torcia para ser promovida. Orfeu gostava de palavras cruzadas e amava música. Nos finais de semana, tocava guitarra em uma banda gauchesca. E fazia segunda voz. Foi então que, em um baile de carnaval, conheceu Eurídice. Amaram-se no portão, depois no sofá e, por fim, na cama e no chão. Casaram-se. Passou um ano e ainda se amavam, alegres ma non troppo. Aristeu, o gerente, promoveu Eurídice. O casal comemorou na choperia. No entanto, Aristeu tinha segundas intenções. Queria amar Eurídice na cama e no chão. Eurídice amava Orfeu, mas desejava Aristeu. O outro carnaval chegou. Domingo, a jovem esperou Orfeu dormir. Escondida e fantasiada foi encontrar Aristeu no Clube. Alta madrugada, Orfeu acordou e encontrou o lado esquerdo da cama vazio. Ainda teve tempo de sentir os restos de um perfume ladino e sagaz que Eurídice, há meses, deixara de usar. Seguindo os eflúvios que atestavam a fuga momentânea e planejada da mulher amada, Orfeu invadiu o Clube, decidido a resgatar Eurídice daquele Inferno. Orfeu chegou ao trono de Hades. O deus dos mortos se enfureceu com a intromissão daquele que não comprara ingresso e nem era associado do distinto estabelecimento. Mas comoveu-se com a triste música de sua lira. E permitiu que Eurídice regressasse. No entanto, o jovem Orfeu não deveria olhar para ela, ou extrair sua máscara, até que nascesse a luz do sol. Caso contrário, Eurídice voltaria para o Inferno. Aristeu sai da história e Eurídice cai nos braços de Orfeu. Eu já disse que Eurídice amava Orfeu? Pois bem, saíram felizes pela cidade a caminho de casa. Orfeu, todavia, desrespeita a ordem de Hades e olha para Eurídice, que imediatamente é tragada definitivamente pelas profundezas do Inferno. O canto de lamento do jovem fez tremer a cidade e adjacências. Triste e desiludido, todos os anos Orfeu passa o carnaval bebendo, chorando, discutindo futebol e comendo batata temperada em um bar da cidade.

segunda-feira, 7 de março de 2011

é assim que deveria começar Metamorfose, de Kafka


Para Carmen, numa madrugada de Carnaval
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"Certa manhã, após um sono conturbado, Caio Moreira acordou e viu-se em sua cama transformado em um passarinho monstruoso. Com as asas abertas, cheias de penas, deparou-se com um pescoço negro e duas pernas finas, sobre as quais tentava, em vão, se equilibrar. Abriu o bico, abaixou a cabeça e enxergou seu ventre acinzentado, acentuadamente estufado, como o peito de uma pomba. Não, não era uma pomba. Era um pardal. O quarto transformara-se numa gaiola gigante. Ao seu redor, percebeu papéis, papéis e mais papéis, a que o vulgo chama Tese..."

domingo, 6 de março de 2011

a masturbação da crítica


Várias das críticas dirigidas ao Cisne Negro, de Darren Aronofsky, insistiram em “malhar” algumas cenas consideradas bizarras e grotescas, como a do nascimento de penas pretas nas costas da bailarina Nina, protagonizada pela linda Natalie Portman, e a da masturbação. Paulo Roberto Pires, na Bravo! (Fevereiro), argumentou que a obra mais recente de Aronofsky vai da tensão psicológica ao horror gótico e obtém um “resultado francamente cafona”. João Pereira Coutinho, no Caderno Ilustrada, da Folha de São Paulo, escreveu que ao confundir a natureza da arte com a arte da masturbação, “tudo que resta de Cisne Negro é um ecrã viscoso e sujo. Como um lençol de adolescente”. Ambos destacaram a bela interpretação de Portman, mas lamentaram o resultado final.

Antes mesmo de assistir ao filme, achei estranha a opção dos dois críticos, colaboradores de dois veículos informativos de grande circulação nacional, em reiterar lugares comuns, não apenas do filme, mas da própria crítica: Isso é ruim, isso é bom. E o pior, a transformarem a crítica em uma sátira de mau gosto. Não estou defendendo aqui uma crítica bem comportada, aquela que acende uma vela para o objeto que se propõe analisar. Pelo contrário, creio que uma crítica deve fazer faísca, produzir uma energia capaz de transformar a própria arte que julga necessário criticar. Não estaríamos aqui distante do Princípio da Incerteza, tal como formulou Heisenberg, cientista alemão que descobriu que o observador influência com o seu olhar o comportamento das partículas observadas. Ao modificar a obra, o crítico pode modificar um filme, bem como a nossa percepção da própria realidade. Situar-se em um lugar “de fora” da arte, como se não fizesse parte dela,  é um erro inocente de uma crítica que se julga apta para condenar ou louvar. Não seria fortuito aqui observarmos que são também os críticos masturbadores de plantão.

João Pereira Coutinho parece que só assistiu a cena da masturbação. Foi infeliz. Paulo Roberto Pires chegou a afirmar que a tensão produzida pelo filme ficaria melhor em A Bruxa de Blair. Há exageros no filme, concordo. No entanto, não devemos esquecer que o bizarro e o grotesco apontados pelos críticos fazem parte da materialização da “paranóia” de Nina. Qualquer indício de transbordamento do copo cheio é sintoma de um mergulho profundo no horror vivido pela bailarina perfeccionista. Exigir coerência interna da obra é uma coisa, cobrar sanidade de um filme que coloca em "xeque" a sua própria razão é outra. Prantear o fato dela extrapolar no bizarro pode ser infrutífero, já que estamos na ordem de uma personagem que não nos garante nada mais do que restos de uma luta interior.

Penso que não devemos olhar o filme como quem vê uma alucinada, mas como quem, alucinado, assiste a um balé de horrores. Em outras palavras, devemos assisti-lo com olhos de Nina. Se olharmos com olhos de “fora” o filme parecerá uma versão barata de um suspense-terror B. E tudo será arranhões à Bebê de Rosemary e corredores escuros de Stephen King. Se olharmos de “dentro” (e haja psicanálise para isso!), com os olhos dos dedos de Nina, tocando fundo os pêlos pubianos de um Cisne Branco/Negro, outras coisas poderemos ver. Trata-se de um filme-música. Uma obra que insiste em marcar uma zona de indiscernibilidade entre vida e arte. E mais do que isso, entre a vida que se deve viver e a arte que insiste em nos apavorar. Aí, então, poderemos perceber a transformação gradual e trágica na qual Nina se vê envolvida. Não estamos diante de um capricho, dos exageros de um diretor de forte expressão. Uma artista como ela (a Bailarina) poderia muito bem romper a fina linha que separa verdade e ficção (linha que alguns insistem em desconsiderar). Se por um lado as linhas separam, por outro, unem. Perceber a sua rápida metamorfose, acompanhada da música – como se o filme fosse o próprio balé – nos ajuda a entender melhor o que está em jogo aqui: uma reflexão sobre o limite entre o palco e a vida. E os exageros aqui podem ser criticados – eu mesmo considerei algumas cenas bastante esdrúxulas (como aquela das pernas se quebrando ou a do hospital em que a ex-bailarina interpretada por Winona Ryder tem um acesso de fúria, ou terá sido mais uma dos delírios de Nina?). Mas não podemos esquecer que estamos diante de uma razão em frangalhos. Nina é engolida pelo próprio personagem. Julgar a loucura do diretor e da bailarina, considerando o filme simplesmente como algo cafona (o que é pouco para uma crítica séria) é colocar-se em um lugar seguro – um lugar pleno de razão e sentido – o que, diga-se de passagem, não deve ser o lugar da arte e nem da crítica. Critico logo sou, masturbo-me logo existo. Por que grande parte da crítica insiste tanto em dizer sempre as mesmas coisas, em buscar os mesmos resultados, em chegar em um acordo comum? Desconfio de unanimidades. Quero ler outras coisas sobre o mesmo filme. O registro do esperado - tudo o que não espero do cinema - tudo o que não quero ver em uma crítica. Entre a masturbação de Nina e a dos críticos, fico com Natalie Portman. Fico com a música de um largo Lago dos Cisnes e com a pesada impressão de que sobrou cafonice nos comentários.

c.moreira

quinta-feira, 3 de março de 2011

Poesia, ah, a poesia

Há algum tempo, a Kiara Domit, amiga e escritora, me convidou para uma entrevista para o JMAIS. Tratava-se de uma série especial sobre poetas da região do Vale do Iguaçu. Aceitei com prazer, mesmo não me considerando um poeta com P maiúsculo. Sou apenas um arteiro. Um matuto arteiro. Vaidade? Talvez. Creio que não. Se fosse para ficar famoso, com certeza, eu escolheria um outro caminho. Um caminho mais fácil e que rendesse trocados. Como diria Leminski (acho que ele dizia mais ou menos isso), para ganhar dinheiro seria mais fácil abrir uma banca e vender banana do que fazer poesia. Se é por vaidade, é a vaidade da palavra... (uma daquelas mulheres dengosas que insistem pelo cheiro em dizer: eu estou aqui) uma palavra apressada, que se faz aos trancos e barrancos, mas que sabe que dizer ainda é uma opção... esperar é bom, mas quem gosta de ficar na porta tantas horas esperando o filme começar? Talvez valesse a pena esperar mais um pouco. Talvez a pena nem valesse. No fim das contas uma palavra a mais não vale "nem um" vintém.
"Poeta é quem se considera". A maioria nem escreve... apenas lê. Talvez o poeta escreva apenas para dizer que está aqui. Não acredito em poetas que escrevem para si próprios. Pensar demais pode ser um ponto fraco. Não pensar também. Eu quero comunicar, nem que seja por meio de uma palavra oblíqua, dissimulada - expressiva - eu quero comunicar nem que seja por meio de uma anti-comunicação... POESIA. Lembro-me das palavras de Mario Perniola: "Se for verdade que a poesia é linguagem liberada, é, porém, da mesma forma verdade que essa liberação permanece impotente e separada, não porque produz o poema, mas porque se manifesta em um falar e em uma palavra distintos do falar e da palavra comuns: a poesia monopoliza o significado em uma sociedade na qual a economia monopoliza a realidade". É preciso dizer... mesmo errando. Como dizia o grande Sérgio Sampaio: "Um livro de poesia na gaveta não adianta nada / Lugar de poesia é na calçada / Lugar de quadro é na exposição / Lugar de música é no rádio".
Confiram também as outras entrevistas... a dos poetas Issak, Amós e Emili



quarta-feira, 2 de março de 2011

Até o dia em que o cão morreu...


Hoje, depois de ver um pequeno cão ser atropelado e morrer na minha frente, na rua Matos Costa, senti vontade de reler Até o dia em que o cão morreu, do Daniel Galera, livro que me impressionou muito mais do que o filme Marley e eu. Antes, porém, pensei em ligar para alguém... bombeiros, Coala, veterinário, alguém que assoprasse um pó mágico e fizesse aquele cachorro levantar, abanar o rabo, latir e continuar... Aproximei-me da criatura - sim, cachorros são criaturas - e não tive coragem de ampará-lo, tocá-lo, tirá-lo do meio da rua. O corpo morto, seja o de um homem, o de um pássaro ou o de um cachorro sempre me pareceu sagrado e abjeto. No fundo mesmo, é a minha morte que tenho medo de tocar no corpo de um outro. O problema sou eu e não o morto. Primeiro, foi a batida. Imaginei o choque de dois automóveis. Procurei a colisão e nada encontrei. Depois o forte latido de dor. Entendi. Tratava-se da morte. O bicho ainda encontrou forças instintivas - ou foram reflexos? - para levantar as patas traseiras. E, então, ele me olhou. Ou apenas imaginei que ele me via enquanto eu o olhava? Ele me olhou por pouco tempo. Seu corpo era magro mas bonito. Seu pêlo, branco acinzentado. Aos poucos a respiração foi cessando. E um senhor corajoso se aproximou. Olhou para mim: "Está morto". Puxou o corpo inerte pelas patas trazeiras até o canto da calçada. Instisti: "Será que não está vivo? Parece que respira. Talvez possamos ligar para alguém". O homem não esboçou reação alguma, o que não representou desumanidade alguma. Pelo contrário (foi ele quem tocou no animal e não eu). O homem afirmou o destino, a morte é apenas a morte, uma tautologia que não nos fornece solução. Talvez ele agisse da mesma forma se o acidente fosse com uma pessoa, o que não caracterizaria uma desumanidade, mas apenas conferiria mais humanidade à reação frente ao bicho.  Tudo resolvido. Morri junto com aquele cachorro. Quem escreve aqui é um morto. Um cadáver adiado que procria. Um leitor de Fernando Pessoa e um homem que não tem a mínima coragem de encarar e tocar um morto, e por metonímia, a morte. Para isso veio o cão, para a inutilidade de nascer, como o tucano morto que Drummond registrou em seu último poema. O motorista que o atropelou não parou o carro. É sempre isso que nos apavora. As rodas continuarem girando depois de nossa viagem. O mundo continuará depois, frio e cego como o morto que insiste em ignorar. Os carros continuarão trafegando, homens e mulheres funcionando regularmente, as flores do bem e do mal se abrindo, qual pernas de mulher lasciva. Isso é pior que morrer. Quem disse isso? Pois bem... no livro de Daniel Galera, o protagonista, em uma determinada passagem, descobre que seu cão está morrendo: "Fiquei olhando nos olhos do cachorro, tão de perto que conseguia ver minha própria imagem refletida na superfície do olho, depois de dois ou três minutos, a imagem foi sumindo, enquanto os globos oculares ressecavam". A relação entre o personagem e o cão, no livro de Galera, é linda, pois vai da companhia gratuita até a estimação recíproca. Para finalizar, quero dizer que é a nossa imagem que vemos nos olhos de um morto: a faccies hipocratica da morte - como viu o jovem personagem. Esse foi o dia em que o cão morreu: 02/03/2011. Perdoem o texto cafona e pouco elaborado. Não estou querendo fazer literatura aqui. Quem leu as entrelinhas, entendeu que falo também de mim e de você.

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Elegia a um tucano morto
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Carlos Drummond de Andrade
Ao Pedro
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O sacrifício da asa corta o voo
no verdor da floresta. Citadino
serás e mutilado,
caricatura de tucano
para a curiosidade de crianças
e a indiferença de adultos.
Sofrerás a agressão de aves vulgares
e morto quedarás
no chão de formigas e de trapos.
Eu te celebro em vão
como à festa colorida mas truncada
projeto da natureza interrompido
ao azar de peripécias e viagens
do Amazonas ao asfalto
da feira de animais.
Eu te registro, simplesmente,
no caderno de frustrações deste mundo
pois para isto vieste:
para a inutilidade de nascer.

terça-feira, 1 de março de 2011

ATLAS: como carregar o mundo nas costas?


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O panfleto político-cultural SOPRO, publicado pela editora Cultura e Barbárie, editada por Alexandre Nodari e Flávia Cera, apresentou em dezembro de 2010 a tradução (feita pelo próprio Nodari) de um interessante texto de Georges Didi-Huberman. Trata-se de uma apresentação da exposição "ATLAS: Como levar o mundo nas costas", em cartaz até março deste ano no Museu Reina Sofia, em Madri, Espanha. No texto, Didi-Huberman retoma a figura de Atlas que, segundo a mitologia grega, foi punido por tentar, junto com seu irmão Prometeu, enfrentar os Deuses do Olimpo com a finalidade de tomar deles o poder e dá-lo aos homens. Reza a lenda que Atlas foi obrigado a sustentar com seus ombros o peso da abóboda celeste inteira. O que lhe deu um conhecimento ao mesmo tempo fantástico e pavoroso. O fato fez surgir um paradoxo, a possibilidade do conhecimento e a impossibilidade de sua representação. Saber em excesso pode ser uma forma de sofrimento. É a Musa da Impossibilidade que nos fala Alberto Manguel, ao se referir ao ato da escrita. Heautontimonumeros, de Baudelaire... somos, ao mesmo tempo, carrascos e vítimas de nós mesmos. Outra imagem retomada por Didi-Huberman é o projeto magnífico Atlas Mnemosyne, de Aby Wargurg, uma grande mesa de montagem das imagens de nossa história. Aliás, Didi-Huberman é um dos grandes leitores de Warburg. Segundo o historiador da arte, a exposição rediscute de maneira criativa o procedimento de montagem do Atlas Mnemosyne, convidando-nos, por meio da desmontagem, a imaginar modelos alternativos de se conceber a história . Vale a pena conferir: