domingo, 27 de dezembro de 2020

Viagem ao redor do jardim: folhescendo



Cavo aqui a língua, labuto lento a linha, avio feito um vate aqui a via, abrindo assim um sulco, esse ventre agrário da página, essa vinha que é fonte da vida. Vegeto na semeadura e, depois de regá-la, assisto ao broto que cresce em ramo na refloresta da roça. Essa morada é a seu modo uma mônada de minhocas, uma galáxia de formigas e lesmas. Cruzo o templo em meio a um bosque de segredos e seus aromas frescos num poema de Baudelaire, assim como quem dignamente cultiva o hábito de lavar as mãos antes de mexer na terra ou como quem sente que só a Natureza com seus vivos pilares é que sabe mesmo o tempo do verbo madurar. Descobri essas coisas em um livro do século XVIII. Leio nele que Goethe amava a poesia e as plantas. Leio também que Salomon Maimon, pensando obviamente no autor de Fausto, se perguntava o que a arte da poesia tem a ver com o estudo dos vegetais. Decerto a vocação para as semelhanças, o poder de escolher entre uma e outra, como quando falamos assim pra dizer assado e no fim elas se correspondem. E vamos percebendo que ambas diferem mas se tocam nos seus quereres. Folhescer é, de fato, a arte de se desdobrar de si mesmo, ou melhor, de metamorfosear pecíolos em folhas. Urge em seu eito também soltá-las à terra, abandoná-las ao vento, (in)ventando-as, deixando que ele as vire, do seu jeito, vertendo-as, assim, ao seu avesso. É pelar o galho uma vez ao ano para que as folhas, sinfonicamente, brotem de novo em seu eterno retorno tocando um pianíssimo ou ainda seu menos vivaz mezzo piano. Isso diz muito sobre a vida secreta das árvores, de como elas se comunicam entre si ou sobre a unidade no múltiplo, de como a folha guarda nela mesma uma carta na manga, a planta originária. Sobre como um alemão encontrou em outro um modelo para o seu modelo de história. Sobre como o poema está na palavra ou como ela ou um conjunto delas estão contidas nele. Assim como a folha está na semente e assim como esta desfolhada ou aberta está naquela ou em qualquer outra. Assim como um poeta tropical escreveu que “variados são os modos como uma coisa está em outra coisa”, ou que “o homem não está na cidade como uma árvore está em outra” ou que “uma árvore está em qualquer de suas folhas”. Assim como o cientista e o observador estão na coisa observada e num átimo se fundem a ela.  Assim como o anarquismo das trepadeiras nos convida à revolução ou como o veneno num copo-de-leite ou numa coroa-de-cristo nos ajuda a entender a vocação política das plantas. Assim como os matos são sempre rebeldes dentro ou fora do levante. Assim como carpir ou roçar é uma forma de organizar o caos mas também furtar a liberdade do jardim. Assim como a obra está na arte da natureza mais do que a arte na natureza da obra. Assim como numa brincadeira da infância as folhas riscadas sobre o papel se espelham no verso dando origem a uma outra folha sobre a mesma folha. Assim como a planta semeia no jardineiro seu floreio para florescer depois em metáfora. Assim como abri uma edição antiga de Gonzaga Duque e encontrei ao acaso um trevo seco de quatro folhas, percebendo ali uma mensagem cifrada que alguém lançou para alguém há mais de cem anos. Assim como no catimbó ou no terecô ou no candomblé de caboclo as folhas e as rezas sabem de curar, espantar maus espíritos, tirar o carrego e alimentar o axé, nos ensinando que tanto os poemas como as plantas salvam algo em nós. Assim como as folhas são páginas da árvore ou apenas uma relva de Whitman. Assim como uma ideia plantada e cultivada é mais forte que um prédio ou um pedaço de pau. Assim como os naturalistas ao longo do século XIX sempre precisaram dos pintores na ausência da fotografia ou de dotes pictóricos. Assim como quando masco cinco folhas de ora-pro-nóbis só para sentir o seu sumo. É um costume meu assim como de quem se devota a enverdecer no jardim vendo em seus matizes a riqueza de muitos tons, o verde-bandeira, o musgo, o oliva, o floresta, o jade, o turquesa, o esmeralda etc. Quantos verdes dentro do verde? Às três da tarde, como um bocó ou um catador de caracóis ou um velho Manoel sento sob o sol dessa floresta e me arvoro.   


Caio Ricardo Bona Moreira

 (Poema escrito para a "Virada Vegetal", com a curadoria de Cristiano Moreira, para o projeto Quinta Maldita, de Demétrio Panarotto).

https://www.youtube.com/watch?v=YLrLuztZfjo


 

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Apontamentos sobre Clarice Lispector em seus 100 anos



Texto dedicado ao amigo Roberto Cossan, cavalo de Clarice

 

De tudo o que foi de mais lindo escrito sobre a Clarice no dia de seu centenário (10 de dezembro de 2020), escrito com Clarice ou escrito para Clarice, cito o querido Roberto Corrêa dos Santos, aliás, já homenageado por Alberto Pucheu em uma linda postagem. Escreveu o Roberto: "Tenho um compromisso com Clarice de mais ainda no dia de seu aniversário aquietar-me. Em nome da sobriedade, ela me disse." Faço das palavras de Roberto a minha aleluia, para Clarice a minha oração.

1 - Penso que o encantamento produzido pela escritura de Clarice Lispector advém muito mais de sua força do que de sua forma (apesar de que ambas estão intimamente ligadas), o que coloca em questão a possibilidade de se mensurar com clareza a relação entre as características de sua obra – plural e enigmática -, e a magia que ela suscita nos leitores. O seu texto, que ora e outra nos convida à cumplicidade e até mesmo à coautoria no ato de leitura, é assim fruto do misterioso encontro entre leitor e escritor. Portanto, imagino que o encanto está mais na ligação, no calor, na energia trocada entre essas duas figuras por meio do pensamento, dos sentidos, do que em cada uma delas separadamente, o autor ou o leitor. O texto é esse elo e sua beleza é inexplicável. Certa vez, em uma de suas crônicas – reunidas posteriormente em “A Descoberta do Mundo" -, a Clarice escreveu que “O personagem leitor é um personagem curioso, estranho. Ao mesmo tempo que inteiramente individual e com reações próprias, é tão terrivelmente ligado ao escritor que na verdade ele, o leitor, é o escritor”. Então, podemos até tentar apontar características que tornaram seus textos memoráveis: a sensibilidade, a poesia, o mergulho no mundo interior, a sondagem psicológica, mas nenhuma característica daria conta de explicar porque amamos tanto a Clarice. É um mistério. Está além da forma. E é por isso, penso eu, que o universo do neutro, do “it”, que aparece em “Água Viva”, do informe, da escrita capturando o pensamento à medida que ele nasce, do objeto pulsante, são elementos que apontam muito mais para o universo da força do que da forma. Clarice é um corpo estranho no modernismo. O que põe em crise qualquer tentativa de comentário. Impossível explicar Clarice. É mais possível ler com ela, escrever com ela, conversar com ela. O memorável parece morar nesse encontro e não em uma característica específica do texto.    

2 – A narrativa de Clarice parece sempre tentar alcançar aquilo que está atrás do pensamento. É claro que ela só vislumbra a isso pensando. O que não chega a ser uma contradição (isso aparece mais em “Água Viva”, mas se dissemina por toda a obra). Atrás do pensamento está Macabéa, a barata da “Paixão segundo GH”, o instante-já de “Água Viva”, os desejos de “Felicidade Clandestina”, tudo o que não se explica, como o enigma do Ovo, em “O Ovo e a Galinha”, só para citar alguns exemplos. Tentar alcançar o que está atrás do pensamento, capturar a vida se fazendo, o mundo no terceiro dia da criação, um ovo ainda não eclodido, é mais arte de bruxaria do que de técnica, apesar de que todo feitiço tem o seu jeito de fazer e Clarice sabia escrever, e sabia o que estava escrevendo. Sabia por em narrativa o Caos/Éden que deveria ser o seu pensamento, seu amor pela vida e pela linguagem.

2.1 - Roberto Cossan, em um lindo depoimento que integra o documentário “Retratos brasileiros: Clarice Lispector”, de Nicole Algranti, falou que “Macabéa é uma personagem que se situa dentro de um quadro muito clássico dentro da obra de Clarice que é a especulação sobre o neutro. O neutro para Clarice é aquilo que pulsa, é uma espécie de caroço da vida, ultrapassa o gênero do humano e reflete sobre o inumano, o transumano. Macabéa é uma espécie de suplemento, de desdobramento da barata que estará lá na Paixão Segundo GH, do grande it, desse grande neutro que está em “Água Viva”. E são diversos os seres que se constituem como puras pulsações. Assim concebe-se a figura de Macabéa.”

2.2 - Ainda com Roberto. No programa "Poesia & Prosa" dedicado a Clarice e apresentado por Maria Bethânia, no canal Arte1, Cossan falou sobre a escritora o que para mim é uma epifania, incorporando na sua crítica o olhar poético: "Sempre temos a impressão de que Clarice estaria o tempo todo mirando ou descrevendo ou observando aquilo que é extraordinário. Há muita observação do extraordinário. Mas o que interessa à Clarice é descobrir no mais mundano, no mais reles, o que há naquilo de extraordinário. O comum, o que se pretende é chegar ao lugar comum. O lugar comum é o lugar de todos, o mar, uma bebida, um frango assado, a observação de um ovo. Está tudo isso na obra de Clarice. A vida cotidiana com todas as suas pequenas ações são extraordinárias se vistas por uma perspectiva iluminada. Clarice trata o tempo todo do miúdo, do pequeno, do imperceptível. Sobre a Macabéa, do romance "A hora da estrela", a Clarice diz assim : 'Macabéa é capim'. Filosoficamente capim é o que se opõe à ideia do ocidente que é uma árvore presa com raiz, galho que é firme mas não sai do lugar. Capim, não, é forte e ninguém consegue exterminar. É o Brasil, o Nordeste, é ela mesma vinda da Ucrânia, é o pequeno, o amor ao pequeno". 

3 – Do ponto de vista patrimonial é lamentável aquela sujeira que amanheceu em torno de sua estátua no Leme há algumas semanas, como a mídia mostrou. É um desrespeito também à memória da escritora. Monumentos devotados a outros escritores já sofreram esse tipo de degradação, como é o caso da estátua de Carlos Drummond de Andrade, também no Rio de Janeiro. No entanto, a foto da imagem de Clarice na praia do Leme, que circulou na internet, revela uma cena que me pareceu bastante familiar. A escritora bela, altiva, séria em meio à sujeira do mundo. Não fecha os olhos para a realidade, pelo contrário, mergulha no mais íntimo e profundo da vida, mas transcende o cotidiano abjeto mirando fixamente o vazio. É assim que a estatua olha. Não conheci Clarice pessoalmente mas imagino que se isso tivesse acontecido eu teria me sentido como que olhando de baixo para o alto, em reverência. José Castello contou que certa vez encontrou Clarice olhando demoradamente para uma vitrine. Ele se aproximou e viu que ela mirava manequins nus. A cena o impressionou. A escritora amava o vazio. Ele é o além/aqui/aquém da palavra. Do ponto de vista estético, a foto me pareceu bela. O lixo em volta só faz de aumentar o tamanho de Clarice. Há uma certa majestade poética no que foi capturado pela foto. Mas não defendo. Continua sendo ecologicamente incorreto.



4 – Não sei se é importante ler Clarice. Só sei que quem não ler estará perdendo uma coisa muito preciosa. É como passar pela vida sem sentir o gosto da maçã. Naturalmente, quem não experimentar não saberá o que perdeu. Talvez ler Clarice não seja importante. Mas se viver o é, e se a vida tem uma realidade amplificada pela sua literatura, se o mundo se amplia com suas palavras, ler Clarice passa a ser fundamental. Mas como a literatura é misteriosa, ela capta uns e não outros – e a própria Clarice falou sobre isso em sua última entrevista, para a TV Cultura – tudo passa a ser uma possibilidade. Ou nos apaixonamos por ela ou não ligamos. Clarice não é meio termo. Eu diria que Clarice é um perigo de beleza.

5 – Do ponto de vista literário, Clarice contribuiu imensamente para a cultura brasileira. Aprofundou uma vertente psicológica de nossa literatura, expandindo suas possibilidades, explorou uma dimensão pouco valorizada até então, fugindo do lugar comum da escrita regionalista, realista, predominante nos anos 30 e 40. Sem a Clarice nossa literatura seria mais pobre. Clarice é incrivelmente lida no exterior, projetando o Brasil em um cenário internacional. Mas tenho certeza de que ela não ligaria para isso. O que está em jogo em sua obra me parece ser muito mais profundo do que uma obra, um período, um país. É a dimensão humana na sua mais profunda busca por uma experiência através da linguagem. É universal.

6 – O centenário da autora convida à leitura e releitura.

7 – Descobri Clarice muito tarde. Só fui lê-la na Faculdade. Comecei por “Hora da Estrela”. Impressionou-me deveras. Nunca havia lido nada semelhante. Impactou-me como Kafka, em “Metamorfose”, que conhecera antes, no Ensino Médio. Mas como sou daqueles que acreditam no tempo certo das coisas, fico feliz. Foi ela quem me encontrou. Clarice disse uma vez que não era ela quem escrevia os livros, eram os livros que a escreviam. Digo algo parecido. Não somos nós que procuramos os livros. São eles que nos procuram e nos leem. Se eu tivesse lido antes a Clarice, não a teria encontrado.

8 – Estudar literatura não pode estar desvinculado do encanto que ela produz. Portanto, a importância de estar permanentemente encantado com a literatura nos ajuda a viver melhor, como sugeriu Tzetan Todorov em “Literatura em Perigo”. É uma herança frágil a dessas palavras que nos ajudam a viver melhor. Temos que zelar por elas. Em um tempo no qual impera a violência, a alienação política, a valorização de bens materiais, a falta de empatia, a tristeza, o sentimento de decadência, acredito que a literatura nos convida a parar e olhar. Paramos e olhamos menos do que deveríamos. O Roland Barthes escreveu que o poder não quer que o homem olhe, deseja que o olhar do homem seja rápido e não pare nas coisas. E a literatura nos convida a parar. A literatura é essa máquina de produzir o vazio. É o nosso “it”, a nossa “Água Viva”. É um motivo que já basta para a cultivarmos com esmero. Ela quebra uma engrenagem, instaurando um contratempo no nosso tempo. Passamos a olhar as coisas fora do tempo, e por isso passamos a ver melhor. Saímos da moda e portanto percebemos a moda. Está tudo lá no ensaio “O que é o Contemporâneo” de Giorgio Agamben, ou nos textos de Clarice. Acho que a boa literatura nos convida a sermos contemporâneos de nós mesmos. Mergulhar em uma subjetividade alheia, conhecer o universo dos outros é uma forma incrível de conhecermos melhor a nós mesmos. Encontrar Clarice é uma forma encontrar em mim aquilo que no fundo sou.

9 - Guardo a letra de Clarice entre meu objetos mais íntimos. Ela está e não ali na letra. O ano do Golpe Militar. A caneta vermelha. Para Antônio Callado e Jean M. Watson, esposa do escritor na época. O exemplar: a segunda edição de Cidade Sitiada (José Álvaro Editor), que ela escreveu em Berna, quando seu marido trabalhou no Consulado. É a letra em cena, seu movimento, sua cor, seu gesto. Eu guardo esse traço aqui.  




Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR), em Dezembro de 2020.


quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

A arte de curar o planeta: reflexões sobre a literatura em tempos de adversidade



"Eles tiveram que forjar para si uma arte de viver em tempos de catástrofe para nascer uma segunda vez e em seguida lutar, com o rosto descoberto, contra o instinto de morte que está ativo em nossa história." Camus

 

Em dezembro de 2019, escrevi neste espaço um balanço das leituras que eu havia feito naquele ano. Comecei o texto dizendo: “2019 foi um ano fantástico. Daqueles dignos de um romance em que tudo pode acontecer”. Tratava-se de uma ironia. O fantástico, ali, era referência ao gênero literário que privilegia o caráter mágico das histórias, cujos enredos estão concentrados naquilo que, do ponto de vista da realidade, é inverossímil. Concluí o artigo desejando um ano com notícias melhores, para que tudo fosse mais feliz e menos fantástico. E veio o 2020. O que dizer dele? Quem imaginaria um ano mais surreal?  

Nem passava pela minha cabeça e pela de bilhões de seres humanos que o ano seguinte seria praticamente um filme de terror misturado a uma peça de teatro do absurdo. Com a diferença de que no mundo real e sua trama atroz milhares de personagens morreriam de verdade. E o trágico, então, encarnou-se com força no cotidiano do planeta. Como não lembrar do poema “Impressões do teatro”, de Wislawa Szymborska, publicado em livro em 1972, que trata de apresentar o mundo real como o palco do verdadeiro drama. O mais importante da tragédia é o que acontece depois do final da peça. Ou seja, a tragédia está na vida real e não no teatro.

Impossível não sentirmos tristeza com tantas perdas e outros sofrimentos relacionados à pandemia do Corona Vírus pelos quatro cantos do mundo. Difícil encontrar alguém que não tenha um familiar ou um amigo contaminado pela doença. As recorrentes aglomerações em nossas cidades ou em qualquer outro lugar de nosso país provam que uma grande parcela da população está completamente desinformada ou vive movida por uma falta de escrúpulos imensa. A palavra “gripezinha” tem um peso enorme que transcende nesse processo questões partidárias, transformando-se num vocábulo que revela para todos nós o tamanho do descaso do poder público diante dos fatos. Das supostas oitocentas vítimas já estamos chegando às duzentas mil.

A leitura tem me ajudado a atravessar estes dias tão tenebrosos. Ela não resolve os problemas do mundo, e inclusive me faz pensar no quanto sou favorecido em poder gastar meu tempo também com ela. Faz parte do meu trabalho como professor, além da distração. Mas certamente ela nos proporciona, além do prazer da evasão – o que não significa necessariamente uma alienação ou uma apatia -, o exercício da comoção e da identificação com a dor alheia. Se prestarmos a atenção nas palavras do pensador indígena Ailton Krenak, perceberemos que estamos todos doentes, independente de termos sido ou não contaminados com o vírus. O planeta precisa mudar para não morrer.

A literatura, penso, tem um papel importante nesse processo, pois ela pode ser considerada como uma espécie de máquina intersubjetiva que nos permite mergulhar no universo do outro, identificando-nos com suas dores e alegrias, suas tristezas e seus prazeres. Impossível não sairmos transformados dessa experiência, encontrando nas relações pessoais a possibilidade de um contato mais fraterno e humano com o próximo e com a nossa própria consciência. A pesquisadora francesa Michèle Petit mostrou em seu livro “A arte de ler ou como resistir à adversidade” (Ed. 34, 2009) a potencialidade da literatura em contribuir para a nossa sobrevivência em momentos de grande tensão individual e/ou coletiva, fortalecendo o homem em tempos de grande crise, e funcionando como uma força propulsora de regeneração. Uma sociedade que passa por um grande trauma pode encontrar na literatura condições para a reconstrução de si mesma. Tomemos como exemplo os relatos escritos clandestinamente em campos de concentração, os diários de confinamento em tempos de peste, os livros lidos por alguém durante um momento de crise pessoal, depressiva, os poemas escritos como uma válvula de escape emocional, os livros que transformam nossas vidas, as histórias que os homens contam ao longo da história para não morrer, a arte que nos cura etc. São mistérios e belezas da vida que poderíamos investigar em muitas páginas. 

Os textos literários podem nos trazer alegrias imensas, ou mesmo produzir feridas profundas em nós. Em ambos os casos, concretiza uma experiência positiva, revelando para nós a vida na sua mais profunda essência. Cito aqui alguns dos livros que estão me ajudando a atravessar a pandemia com mais força e menos angústia: o segundo volume da trilogia de Milton Hatoum “O lugar mais sombrio”, chamado “Pontos de Fuga”, que dá continuidade à trajetória de Martin, um jovem que cresce em Brasília durante os anos mais duros da ditadura militar. O lindo livro de memórias, de Fernanda Montenegro, “Prólogo, ato, epílogo”. O poético “Devoção”, de Patti Smith, no qual ela reflete sobre seu processo criativo.  O romance “A glória e seu cortejo de horrores”, de Fernanda Torres, cujo tema perpassa a vida de um artista de teatro e televisão dos anos 60 até a atualidade. Poderia citar tantos outros livros de autores como: Giorgio Agamben, Georges Didi-Huberman, Rafael Ginane Bezerra, Mariana Mello, José Eurico Tejera Lisboa, Cristiano Moreira, Gonçalo Tavares, Wislawa Szymborska, Rubens Francisco Lucchetti, Kaká Werá Jecupé, Eliane Potiguara, Ailton Krenak, Timóteo Tupã Popygua, Cristian Siqueira, Luisandro Mendes de Souza, Laurent Binet, Luiz Rufino, Dennis Radünz, Sylvio Back, Christian Prigent, José Castello, Gustave Flaubert, César Aira, Alberto Pucheu, Alan Pauls, Vinícius de Moraes, Carlito Azevedo, Bertolt Brecht, Enrique Vila-Matas, Ana Porrúa, Bioy Casares etc. A todas e todos que pude ler em 2020 agradeço por terem escrito seus livros e me acompanhado nessa jornada. São obras que me ajudaram a atravessar 2020 com mais fé na vida e com a esperança de que as mortes e todo sofrimento diminuam até desaparecer, o mais rápido possível. É o pedido que faço para Jesus neste Natal e Ano Novo. Boas Festas a todas e todos! Se puderem fiquem em casa! Cuidem-se! 

Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR), no dia 12 de dezembro de 2020.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Lançamento de "Esquinas" (Micronotas, 2020), de Caio Ricardo Bona Moreira



Nesta semana, acontece o lançamento oficial do meu livro "Esquinas" (100 páginas; ensaios/poemas em prosa; Editora Micronotas, 2020).


Apresentação do livro:

"Muitas coisas podem acontecer em uma esquina: um acidente, um encontro ou desencontro, uma epifania, uma desgraça, uma lembrança, ou quem sabe até uma ideia. Lá, o passante que estiver disposto a observar enxergará a síntese misteriosa do banal com o inusitado. 

A encruzilhada é o mundo do (im)possível. Basta parar para ver. Aqui, mais do que um tema ou um assunto, ela é o princípio motor ou gatilho para um conjunto de pequenos ensaios ou prosas poéticas sobre o cotidiano da rua, bem como sobre outras coisas da vida. 

George Simmel aproximou o ensaio do passeio: passear pela rua é uma ótima forma de pensar. Perambulo, logo sou. A cultura filosófica deste importante pensador da modernidade é fruto, portanto, de uma aventura. Perder-se numa cidade será sempre uma ótima forma de conhecê-la. Acho que foi Enrique Vila-Matas quem certa vez anotou: “Escrever é perder cidades”.

A deriva é uma espécie de método. A intermitência, uma riqueza. Trata-se de lançar um olhar filosófico e poético sobre o ponto de cruzamento: ou não é nele que sempre uma via termina e outra começa?

Portanto, esses lugares são um convite à viagem, ou seja, ao devaneio. O poeta se quer um catador. Os textos de “Esquinas”, inventariando seus achados, convidam o leitor a uma caminhada pelas ruas de Porto União (sc) e União da Vitória (pr), cidades que já foram uma só e hoje são cortadas por uma linha de trem. O que une as duas também as separa. 

Mas o leitor não se engane com sua geografia poética. O mapa é de se perder. Essas esquinas literárias são do mundo. Poderiam ser um canto ou uma quina qualquer de Nápoles, Barcelona, Montevidéu, Berlim, Cuiabá, Apucarana, Timbó, Teresina ou Tóquio. Uma curva na rua nos leva a uma outra e o texto vai e vem, assim, sendo tecido, enquanto o trânsito é costurado. 

A capacidade de entrelaçar, aliás, é fundamental para o exercício associativo, peça-chave da poesia. Escrever é inventar cidades. Pensar numa esquina, ou melhor, estar numa esquina pensando, será sempre uma forma enriquecedora de experimentar a vida posta em movimento. Lá, acaso e destino, realidade e ficção, arte e vida, tornam-se indiscerníveis. 

Inspirados ou não em João do Rio, poderíamos dizer: “Eu amo as esquinas”. É lá onde a rua faz a curva/cesura: é lá onde o poema (d)obra. É lá também onde um velhinho encontra o outro e tudo vira prosa."



Fragmentos:

"No encontro da Ipiranga com a Cruz Machado – não com a Avenida São João –, um velho prédio art déco assiste há quase cem anos à cidade envelhecer. Daquela esquina, a antiga construção tudo viu e tudo sabe. Talvez o leitor não acredite, mas na vidraça de uma de suas janelas é possível vislumbrar, nas tardes de abril, aquele ponto do espaço – mágico e borgeano – que contém todos os outros pontos. Ali, certa vez, concentrei meu olhar e contemplei emocionado um Aleph."

"A linha do trem: um pé aqui, outro lá. Onde estou? Nascido aqui, registrado lá, quem sou? A linha do trem que corta uma cidade em duas corta também um coração. Desterritorializado estou. Não sou catarina, não sou paraná. Tal qual franco-argelino, me divido e logo sou. Esaú e Jacó, todos os gêmeos serão sempre irmãos?"

"A esquina é o ponto de repouso que ao mesmo tempo é um ponto de tensão. Se tudo flui, nada permanece. E o que fica é esse (des)contínuo movimento, o exercício de dobrar sem cessar. A esquina une ou corta duas vias? Buda diria que unir-se significa inevitavelmente separar-se. É a natureza da vida. Penso o pensamento nascendo numa esquina. A questão, portanto, é filosófica e não deixa de ser mística. O que encontrarei e quem serei depois de dobrar a próxima quina?"


Sobre o livro, Susana Scramim escreveu:

"De modo muito inteligente e ao mesmo tempo sensível, Caio registra a vida da cidade confrontando o espaço urbano com a geografia sentimental. O resultado desse confronto se lê em Esquinas, trabalho esse que relaciono ao livro de memórias da infância de Walter Benjamin mediada pela experiência com a cidade".

"Nas esquinas de Caio, se pode observar dois fluxos de escrita: em um deles, se dedica a registrar a passagem do tempo e de suas ações no espaço urbano, no outro, se põe a reimaginar de um modo “alephiano” a materialidade das coisas, confrontada àquilo que não está mais ali e que apenas pode ser recriado"



O livro está disponível nas livrarias Arte & Letra (Curitiba) e Livros & Livros (Florianópolis).
Em Porto União e União da Vitória, o livro pode ser encontrado na Papelaria Risca de Giz, na Porto Presentes e no Sebo Macaco Studado.
Também disponível para encomendas diretamente comigo. Na cidade, entrego em casa! Para outras, envio por correio.


Coordenação Editorial: Katherine Funke
Projeto Gráfico: Pierre Themotheo
Ilustrações: Raro de Oliveira
Prefácio: Susana Scramim
Os preços variam entre R$25,00 e R$28,00.

capa aberta


Uma das ilustrações de Raro de Oliveira que integram o
livro "Esquinas"
Alguém adivinha qual?



quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Virada Vegetal



Transmissão aqui

 Poesia folhescendo! Participo da "Virada Vegetal", com a curadoria de Cristiano Moreira, para o projeto Quinta Maldita, de Demétrio Panarotto. Transmissão sonora acontece hoje, quinta, às 19h. Como diz o curador (mestre das folhas) e poeta Cristiano: "uma enxertia de vozes para reforçar o chão tão movediço em que temos pisado nestes tempos

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Canto e sangue negro de um branco




À memória dos ancestrais
Dos pais dos pais
De nossos pais
Ou melhor da mãe
Do pai de meu avô
Que é pai de meu pai
Negra e neta
De uma escrava
Ou melhor filha
Da filha de uma
Mulher escravizada
(Cujo nome meu avô
Diz ter infelizmente
Esquecido)
Trago comigo
Não na pele mas na alma
Um quinhão, o gosto ou a marca
Uma pequena parcela no sangue
Mas no ser extenso traço
Longa saga bem gravada
na complexa genética memória.
A dívida do meu lado branco
É assim um saldo que salga
A minha própria história
O canto da avó do meu avô
vem de longe e me cala
De alguma fazenda longínqua,
de algum lugar de Santa Catarina,
Corupá ou São Francisco,
de algum canto de alguma senzala,
Das entranhas de seu corpo
Brotam longe seu banzo e suspiro
Um misto da beleza
e da tragédia africana
Que hoje ainda perdura
E nos conclama, com desespero, ao grito!

c.moreira

Foto de Mateus Aleluia
Créditos da imagem: Vinícius Xavier

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sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Coisa/di/vina: O texto que era para ser sobre Vinícius de Moraes

 


Minha relação com a poesia é religiosa, assim como minha ligação com a religião é poética. Não consigo conceber uma coisa sem outra. A religião sem magia, desprovida de encanto, música, ou da beleza da palavra, é no mínimo um abandono. Deus é uma arte! Não consigo também pensar na poesia como uma atividade desprovida do sagrado que existe neste mundo ou outros. Seria um disparate.  E não falo de uma transcendência desprovida da terra na qual somos plantados e onde plantamos nossas sementes em busca de uma fértil colheita. A poesia, por exemplo, pode muito bem e curiosamente conciliar o transcendentalismo cristão com o imanentismo pagão. Mas isso não vem ao caso. A religião e a arte são a poesia da vida, assim como o amor sua essência e seu onipotente tempero. Mistério há de não haver e sempre o de pintar por aí. Para Octavio Paz, que bem poderia ser um taumaturgo, a poesia é "pura e impura, sagrada e profana, popular e minoritária, coletiva e pessoal", sendo também entre tantas outras coisas, uma prece ao vazio, "oração ladainha, epifania, presença".

Os santos, não raro, foram poetas. São Francisco que o diga. Cristo foi uma poetaço. Suas parábolas, uma obra-prima. Seu discurso um primor carregado de sentido até o mais alto nível. Os “Versos de Ouro”, de Pitágoras, são belíssimos. Os versos de Buda também, assim como o “Mahabharata”. Na África, Xangô, a divindade do trovão e da justiça, era dono do axé da palavra. Os orikis que lhes eram dedicados são textualidades poéticas poderosas, capazes de evocar o próprio orixá, que é uma força primordial da natureza. Os Hinos de Rig-Veda, que são textos literários e ao mesmo tempo hinos de louvor, são dos mais antigos da humanidade, como o “Livro dos Mortos”, no Egito. São encantadores os cânticos astecas, em nahuatl, falando da vida, das flores, do Deus Quetzalcóatl, Xochipilli, Yacatecuhtli,  ou os cantos sagrados dos mbyá-guarani, em exaltação ao Deus Ñamandu. Quantas poéticas orais são oriundas do xamanismo e pajelança de tantos outros povos originários das florestas brasileiras ou de qualquer lugar do mundo. Certo dia, rabisquei ou cantei os seguintes versos: “Deus é música / alguém me contou / que conheceu e voltou para contar / cantou”. Os cantares sagrados são sempre liturgicamente poéticos.

Cabe considerar que a poesia não é apenas um conjunto de versos brancos ou rimados com a finalidade de produzir beleza. Um poema é uma materialidade textual com finalidades estéticas, mas a poesia, um espírito, uma energia, o transcende já que pode ser encontrada em outras moradas que não apenas a da palavra. Um sorriso, um abraço, uma onda, um beijo, um pôr do sol, uma centopeia, um prego, uma lua, uma grama, um ar, uma parede, uma estrela, um verme, um gol, um filme, uma dança, um desenho, tudo isso e tudo o mais que houver na vida podem ter também o seu quinhão de poesia. Percebê-la é uma das coisas mais fascinantes que podemos fazer nessa existência. Um sorriso de criança, por exemplo, pode ser só um sorriso de criança ou a própria ideia de felicidade encarnada em nós por meio do que nos captura um instante. E já não sabemos dizer se somos nós que tocamos essa beleza ou se é ela que nos olha, convocando-nos ao contato, tocando-nos, assim, com o olhar.

Não sei o que me trouxe até aqui. Acho que ando muito religioso. Era para ser um outro texto, um texto sobre Vinícius de Moraes que fez aniversário há pouco e que nos deixou há exatos quarenta anos. Eu escreveria sobre esse grande poeta e sua poesia que para mim é uma espécie divina de manifestação artística. Eu escreveria também sobre a essência religiosa de seu trabalho, seus primeiros poemas, profundamente metafísicos, esotéricos, até o seu mergulho nas religiosidades de matriz afro, na parceria com Baden no disco “Afrossambas”, passando por sua inserção nos candomblés da Bahia, quando casou com Gessy Gesse, e se mudou para a praia de Itapuã, em Salvador. Escreveria sobre a beleza de Vinícius viver a vida de forma nada pragmática, sendo entre nós o único que de fato viveu como poeta, como sugeriu Carlos Drummond de Andrade. Escreveria sobre a música que ele compôs com Jaime Lerner quando fez um show com Toquinho em Curitiba, no Teatro Paiol, nos anos 70. Escreveria principalmente sobre seu livro inacabado, o “Roteiro lírico e sentimental da cidade de São Sebastião, do Rio de Janeiro, onde nasceu, vive em trânsito e morre de amor o poeta Vinícius de Moraes” (Companhia das Letras, 2018). Trata-se de um livro que só foi publicado muitos anos depois de sua morte a partir de anotações deixadas pelo poeta. Eu acabara de ler a bela edição desse Roteiro organizada por Daniel Gil. Escreveria sobre a biografia desse poeta da paixão escrita por José Castello que eu acabara também de ler. Escreveria sobre um exemplar autografado de sua “Antologia Poética” que guardo como relíquia - ou uma espécie de fetiche por atribuir a ele poderes sobrenaturais ou mágicos. O poeta boemiamente assinou: “Ao Arnaldo, com o coração e o fígado de seu velho Vinícius”. Quem teria sido esse amigo de copo e de bar?  Escreveria sobre isso e outras coisas também. Mas enquanto escrevia, o texto começou a me escrever e foi me escrevendo ou se escreveu meio sozinho. Depois de falar sobre os santos que foram também poetas, eu escreveria sobre os grandes poetas que, por sua vez, são como deuses, ou santos, ou possuidores de grande axé, ou mesmo de uma existência divina: Di-vina (Vinícius, por sinal, era chamado pelos íntimos de Vina). Era aí que eu pensava em apresentar o Vinícius como uma espécie de Griô, ou um Mago, um Bruxo (como Clarice, Machado e Guimarães Rosa), um alquimista, um Sábio Ancestral de minha tribo imaginária, um senhor que viveu intensamente a vida, com suas dores e delícias, e que voltara para contar sua história em torno de uma fogueira. Reza a lenda – e é verdade -  que quando Vinícius visitava o Terreiro do Gantois, Mãe Menininha, a matriarca mais importante do candomblé brasileiro, não deixava que ele se sentasse no chão como os demais visitantes. Vinícius, filho de Oxalufã, o Oxalá velho, esse senhor da Criação, era por isso e por outros mistérios, recebido naquele espaço sagrado como uma figura de grande respeito, não por ser famoso – que a Ialorixá nem ligava pra isso -, mas por ser misteriosamente quem era. Lembro que Vinícius escreveu poemas sobre Xangô, sobre Jesus, São Francisco, e outros santos.  

O divino revela em Vinícius de Moraes a sua mais perfeita caracterização. Ali, o sagrado não está apenas na busca de Deus, mas na procura da mulher amada, na procura do amor como a essência própria do viver, na busca da amizade como um encontro religioso entre seres, no ato de fé na vida, na comunhão com a palavra e com a cidade e suas musas, que para ele eram como deusas, seja a Garota de Ipanema, ou alguma das várias com quem casou ou não. Aos poucos, Vinícius vai encontrando Deus no mundo. Sai de si e se reconcilia com o outro, começa a usar mais o pronome na terceira pessoa. E ao se encontrar com o mundo, faz desse idílio um bonito e profundo matrimônio. Vale lembrar que a poesia nasce com o sagrado e quando perde seu poder de constrangimento vira literatura. Em Vinícius, vejo também um momento contrário. Ela se reaproxima do sagrado em muitos sentidos. É, para mim, religiosa no seu perpétuo “religare”. Reconecta-nos com o divino do céu e da terra. Nos liga com a vida. Coisas de Vina, coisas divinas.













Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória - 11/2020 

domingo, 1 de novembro de 2020

Vejo Ana C. numa foto colorida por Rubens A.



Na vida
Bela ou mais
Ou menos
Que na foto
Como saber?
Se o que me resta
É o artifício
Sempre fabricado
Nessa ou em qualquer outra peça
Do conjunto de retratos
Quase todos
Em preto & branco
Em que na maioria
Ela aparece séria e concentrada
Em alguma outra coisa
que a lente da câmera
(Essa prótese do olhar)
Faz questão de não captar
E neste caso
como saber com precisão
O tom da pele ou a cor dos olhos
Se ela gostava mais de Bandeira ou de Baudelaire,
Se as camisas azuis lhe agradavam mais que as brancas ou pretas,
Se traduzir lhe era mais árduo que fazer os próprios poemas,
Se escrever era para ela uma forma de cifrar ou apenas voar.
Mas quem a viu
De perto
Há de confirmar
Como fez Roberto C.
Que a vislumbrou
Nos corredores da PUC
Que ela de fato
Como na foto
Era todo esplendor
E essa Lua em Touro
No Outubro de Escorpião
Me traz a lembrança
Daquela noite de 2005 ou 2006
Em que perdido no Rio
Depois de um congresso na UERJ,
Metrô e Coletivo em direção à Copacabana
(Havia descido duas estações antes),
Ia tentando me localizar por placas
Até me achar ao acaso ou ao destino
Plantado na Rua Tonelero,
Aquela que mudou o Brasil
Nos tempos de Getúlio
E onde de um dos prédios
Alguém um dia, nos fins de Outubro,
Tentou ancorar um navio no espaço.
A poesia pode ser doce ou alegre
Mas o chão é sempre duro.
Ali, na rua, foi o lugar
em que mais perto estive de ti,
além da poesia.
Onde andará agora o pensamento de Ana?

c.moreira

terça-feira, 20 de outubro de 2020

Vinícius de Moraes





Libriano como eu
Ou eu de libra feito ele
Temos com a poesia
Essa musa nunca substituída
Uma história em comum
e longa de amor e interesse
Libriano como eu
Ou eu de libra feito ele
Vinicius meu velho,
Saravá,
Este filho de Oxalá
Vem e mata
Como a água de beber,
Camarada, a nossa sede
Goza os prazeres deste mundo
E chora do mundo também a dor
Canta a Rosa desfolhada
Ou aquela de Hiroshima,
E faz da natureza -
Seja ela morta ou viva -
Um caso permanente de amor

c.moreira

terça-feira, 6 de outubro de 2020

Praça Alvir Riesemberg


 



Na Praça Alvir Riesemberg, o busto de Getúlio recebe flores, ano após ano, religiosamente, no fatídico 24 de agosto. No local, tudo envelhece menos o presidente, fundido em metal perene, e a célebre dúvida: foi assassinato ou suicídio? No começo de setembro, ainda é possível vislumbrar a homenagem posta ali por algum fiel correligionário do PDT. Mas dia após dia o buquê vai decompondo como a história do Brasil, contrastando com o monumento a simbolizar outra decadência, a de um país petrificado pela mão do homem e pelo olhar da Medusa. A estátua solitária faz lembrar o sujeito parado na esquina do Boulevard du Temple na foto de Daguerre. Em repouso, a personagem lustra os sapatos e tem por isso sua imagem gravada pelo daguerreótipo. Os que passam pela rua não são registrados na foto porque estão em movimento. O filósofo Giorgio Agamben enxergou nessa foto, e na fotografia em geral, a imagem adequada do Juízo Universal: “A multidão dos humanos – aliás, a humanidade inteira – está presente, mas não se vê, pois o juízo refere-se a uma só pessoa, a uma só vida: exatamente àquela, e não a outra”. Assim como o homem que lustra os sapatos e o busto do presidente, uma foto e um poema existem para serem vistos ou lidos, mas também para nos lerem ou verem lá de onde estiverem. No fim, não seremos nós as imagens deles? Dependendo da posição em que estou é a estátua que me olha. No Dia do Juízo, todos serão julgados: o homem que lustra os sapatos, o presidente, a mulher do presidente, o juiz, o ministro, as fotos, os poemas, nós mesmos, e os assassinos que num dos prédios defronte à praça esquartejaram o corpo de um homem que saiu da vida para entrar para a história. Como os crimes não são perfeitos, os rastros sempre aparecem com o tempo ou com luminol. Nas fotos, estátuas, textos e autos policiais, os finados estão sempre lá a nos perscrutarem da iníqua profundeza da morte, dispostos a contar o que de fato aconteceu. Mas a verdade nem sempre vem à tona porque os mortos não falam e o silêncio dá margem para muitas interpretações.

c.moreira

Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória - PR (03/10-2020)