sexta-feira, 26 de março de 2021

Sobre “14”, de Jean Echenoz: a ópera sórdida e fétida da guerra

 


Deve acontecer com outros leitores também, comprar vez e outra um livro pela capa. Alguém deve ter descoberto em algum momento um grande autor, quase ao acaso, depois de adquirir uma obra e lê-la apenas porque a capa era bonita. Já me aconteceu algumas vezes. Foi assim com o romance “14” (2014, Ed. 34), de Jean Echenoz. Isso que não há nada de muito especial na capa. Apenas o fragmento de uma fotografia que se estende para a contracapa e para as orelhas. Nela, vemos um soldado sentado sobre uma calçada tendo a seu lado uma bicicleta, mas para vislumbrá-la é preciso abrir a orelha de trás. Pequenos detalhes quase passam despercebidos, um cantil e uma pequena panela de campanha. O homem, de vasto bigode, veste um capacete de ferro, daqueles da Primeira Grande Guerra, usa um uniforme azul, botas de cano alto, tem um curativo na mão direita e usa um anel no dedo mindinho. O livro informa que a imagem é um autocromo de Paul Castelnau, de abril de 1917. O título da foto: “Déjeuner de poilu: soldat en bleu horizon avec au fond une librairie endommagée place Royale”.  Sim, vendo agora a legenda é que percebo no fundo da imagem a placa de uma livraria, provavelmente destruída em algum ataque de guerra. Na capa, temos apenas um close na personagem e o nome do autor e do livro em tamanho significativo. Capa trágica e bonita. Comprei o livro e li.



Jean Echenoz não é um escritor muito conhecido no Brasil. “14” é uma das poucas edições de sua obra publicadas por aqui. Certa vez, Enrique Vila-Matas escreveu que as novelas de Echenoz são “grandes máquinas ativas”, “máquinas de prazer”. Diz ainda que sua narração é uma espécie de “ave migratória”. Isso porque há um movimento narrativo que produz constantemente uma troca de perspectivas, como se um movimento de câmeras em seu ritmo cinematográfico regesse literariamente a sua montagem. Por exemplo, em uma das cenas do livro: “O mosquito surge às treze horas no céu perfeitamente azul de um fim de verão no Marne. Projetemo-nos rumo a esse inseto: à medida que nos aproximamos, ele vai crescendo até se transformar num pequeno avião biplano de dois lugares (...)”. Ele vai sofrer um ataque e vai se espatifar no chão. Estamos com os pilotos dentro da cabine. Eles vão morrer. Estamos dentro do filme. É uma cena e tanto. 

Mas falemos brevemente do “14”. Cinco homens vão à guerra, uma jovem grávida espera a volta de um deles (ou dois). Não sabemos se eles voltarão vivos. Alguns morrem, outros voltam feridos, gravemente aleijados ou cegos. Segundo Vila-Matas, “14” contém uma breve, porém densa meditação “sobre o destino das gerações”. O livro faz esse trágico inventário em apenas quinze capítulos, concisos, mas profundos. O relato de um campo de operações na Primeira Guerra faz lembrar alguns dos melhores filmes norte-americanos sobre o assunto. E o combate, no livro, vai se apoderando de nós, como sugeriu Vila-Matas, a ponto de o leitor desejar fugir do terror e “viajar a terras felizes”. Mas o que mais impressiona no enredo é um conflito interior que percorre a vida das personagens e que é mais intuído no momento de leitura do que explicitamente constatado. Os soldados são títeres de um aparelho monstruoso de guerra e seus dramas acabam sendo silenciados por bombas e morteiros. Há uma sutileza na construção das personagens – pouco sabemos sobre elas - que faz do livro um misterioso relato sobre uma guerra mais sutil que percorre a vida dos homens. Todos estamos sempre lutando com a vida. Há um triângulo amoroso implícito que acompanha a trama, o amor de dois irmãos pela mesma mulher. De quem será o filho dela? O triângulo nem sequer é objetivamente apontado. São sutilezas de uma história cuja guerra transforma seus destinos.

Jean Echenoz


O leitor pode não gostar do livro de Echenoz, mas não sairá o mesmo depois da leitura. A construção de seu relato no teatro de operações impressiona pela crueza. Depois de um ataque inimigo a lembrar certas cenas de “Apocalypse Now”, de Coppola, ou de “Destacamento Blood”, de Spike Lee: “Os sobreviventes reergueram-se, mais ou menos constelados de fragmentos de carne militar, de farrapos sujos de terra que os ratos já tratavam de arrancar e disputar em meio aos destroços de corpos espalhados aqui e acolá – uma cabeça sem mandíbula inferior, uma mão com aliança, um pé sem bota, um olho”. Para Echenoz, a guerra é uma ópera sórdida e fétida. E em meio às bombas, na voz das personagens, reina o silêncio. Pouco falam as personagens. Como que a lembrar de Walter Benjamin, depois da Primeira Grande Guerra, escrevendo sobre a pobreza da experiência que nascia nos campos de batalha. Os homens estavam voltando da Guerra pobres em experiências, incapazes de contar o que viram. A literatura talvez nos ajude não só a imaginar o horror, a contá-lo, mas também a tencionar a pobreza da experiência, fazendo do relato uma máquina de prazer (inerente às tragédias bem escritas), mas também uma máquina de fazer pensar.  

 

Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR), em março de 2021    

segunda-feira, 15 de março de 2021

Sobre Esquinas

 Crítica de Esquinas, por Luisandro Mendes de Souza:

Notas de leitura: Esquinas

Meu amigo Caio Bona Moreira me enviou com sua mais recente obra, Esquinas (Micronotas, 2020), um conjunto de ensaios ou poemas em prosa sobre diferentes esquinas de Porto União e União da Vitória (duas cidades unidas, como seus nomes sugerem, mas separadas por um trilho de trem que secciona seus centros comerciais). Algumas são reais e icônicas (como a Av. Manoel Ribas com a av. João Gualberto) e outras são imaginadas (como as ruas Rimbaud e Jean Genet). É um pequeno “roteiro sentimental” das Gêmeas do Iguaçu.

Há uma expressão que me pegou logo nos primeiros textos, o ver. Caio é às vezes um voyer da cidade. É alguém que olha a esquina em alguns momentos de fora dela, e em outros, como no caso da Av. Cruz Machado/Av. Ipiranga, converte a própria esquina em testemunha:

“Daquela esquina, a antiga construção tudo viu e tudo sabe.” […] Ali, certa vez, concentrei meu olhar e contemplei emocionado um Aleph.” (p. 26)

Às vezes ele se coloca nela, como personagem também, e passa a relatar tudo que se passa, como se quisesse fotografar a vida que nela se expressa e que, ao transformar em palavra aquele acontecimento, o transforma em literatura (Av. Manoel Ribas/Carlos Cavalcanti):

“[…] paro entre a Manoel Ribas e a Carlos Cavalcanti e, numa tarde de janeiro, anoto o que vi.” (p. 67)

Não é apenas um documento ou uma tentativa de retratar o mundo (impossibilidade que está na própria origem da literatura: ela não é o mundo mas não há outro caminho pra ela senão cantar o mundo tal como o poeta o sente). Como Drummond, sua matéria é o tempo, mas não apenas o presente.

Há outra forma? Como não se contaminar pelo ambiente em que vivemos? Que pulsão (compulsão?) é essa que nos move a sentir a cidade pela palavra?

E eu diria que é isso o que Caio faz ao longo dos seus “cantos”. Ele é um poeta que canta a sua vila, e também a sente. E é essa sensação que quer nos passar (suas cores, suas vozes, seus personagens):

“Daí tantos jardins sempre bem cuidados de flores e ervas regados com terços, lágrimas, chimarrão, e novenas de Natal. O único macho a sobreviver ali é o de um casal de curucacas a zelar pela segurança da rua no alto de um pinheiro quase quadragenário, uma espécie de trono real, paranista ou para-raios.” (pág. 40, ruas Felipe Schmidt/Voluntários da Pátria)

E o que temos é uma pequena epopeia em prosa, algo bucólica, pois o trem (agora parado, apenas objeto decorativo, eventualmente reativado para passeios), os carros, ônibus, caminhões, motos e bicicletas passam bem pouco por essas esquinas, pois não interessa ao poeta o metal, a mecânica e o ruído. Da engenharia, interessa no máximo o ângulo de noventa graus, esse ponto de encontro de duas retas, mas que ao mesmo tempo que é encontro, permite que algo se esconda.

E ajudados pelo seu olhar, vemos e passeamos, por uma cidade que é a cidade da nossa infância e juventude, embora não seja mais também, pois se as esquinas ficam, os personagens que nelas agora passam já são outros (o bar da esquina da Manoel Ribas com a João Gualberto fechou faz poucos anos).

Para o leitor desavisado isso pode tirar o atrativo do livro. Mas não esqueçamos dos passeios que demos pela Nova Iorque de Henry Miller ou pelo Rio de Janeiro, levados pela prosa de Machado de Assis, João do Rio ou Rubem Fonseca. E também não esqueçamos de tudo aquilo que só vemos porque a literatura nos mostra.

p.s.: a qualidade das ilustrações de Raro de Oliveira podem ser admiradas já na capa do livro.

fonte: https://luisandromendes.wordpress.com/2020/12/11/notas-de-leitura-esquinas/

Sobre Esquinas






O projeto "Página Sonora", do Sesc Santa Catarina (Polo de Florianópolis), produziu essa semana um podcast sobre o livro "Esquinas" (Editora Micronotas). O projeto, atualizado quinzenalmente, apresenta produções literárias catarinenses.
Acesse os links do podcast nas principais plataformas:


Descrição do episódio


Ouça neste episódio um trecho do livro "Esquinas", de Caio Ricardo Bona Moreira.

MOREIRA, Caio Ricardo Bona. Esquinas. Joinville: Micronotas, 2020

Ficha Técnica: Seleção e roteiro: Luciana Tiscoski (Sesc Palhoça) Leitura: Kamila Debortoli (Sesc Florianópolis) Edição: Marina Gelowate Fernandez (Sesc Mafra) Trilha Sonora: "Oceano" de Cleyton Eduardo Souza (Sesc Itajaí) e Peter Allan Ramos (Sesc Balneário Camboriú)


https://open.spotify.com/episode/6Q4kag6WxntEDiO20dtUNI



Caio Ricardo Bona Moreira

Caio Ricardo Bona Moreira surge no “Página Sonora” trazendo ecos do dia Internacional da Mulher, comemorado há pouco. Vale muito a pena conferir o fragmento do conto Mimi Amazonas Júlia Amazonas, do livro Esquinas, que ganha corpo na voz de Kamila Debortoli. O livro é um passeio por lugares, reminiscências, pessoas; são esquinas de encontros os mais inusitados, numa escrita cujo ritmo é quase um convite ao flanar por diferentes tempos. Mais uma vez, Benjamin é referência que se apresenta nas entrelinhas.

















E a clausura é o tema recorrente desses processos de escrita. “Tinha um livro do meio do caminho da rua. Era o Esquinas. Ele me ajudou a encarar esses tempos de clausura que estamos, aliás, ainda atravessando. Foi uma forma de pensar (a)través da literatura, de praticar uma manobra de flanco para contornar a saudade da rua, para matar a saudade da cidade e das gentes. Estar em uma encruzilhada é estar em um lugar de crise, mas não deixa de ser uma oportunidade de vislumbrar a perspectiva de uma outra via. Perambulo logo sou.” E a esquina desdobra-se em muitas camadas de sentidos, quando o autor desvela uma de suas maneiras de pensar seu caminhar literário, nem sempre um flanar tranquilo: “A literatura é essa curva em ângulo aberto pra driblar o perigo ou encarar de frente o viés.”


quinta-feira, 4 de março de 2021

Poéticas como políticas do gesto



Os tempos são duros e ásperos, tristíssimos, mas as notícias boas também chegam, são um alento. Está chegando o livro "Poéticas como políticas do gesto" (Paco edições), organizado pelo professor Daniel de Oliveira Gomes, da UEPG. Tive a alegria de participar com dois poemas e um ensaio sobre Foucault e Oliveira Gomes, ao lado de pessoas queridas como Ana Luiza Andrade, Djulia Justen, Carlos de Assumpção, Alberto Pucheu, Eliane Potiguara, Pedro de Souza, Marcus Siscar, entre outrxs. A edição está linda, tanto na versão impressa quando na do e-book. Viva!