quarta-feira, 26 de setembro de 2012

PANORAMA



Panorada do Rio de Janeiro: Ponta do Calabouço séc. XIX Henry Chamberlain
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Ao folhear as páginas do livro Entrevistando a Arte, organizado pela professora Ivanira Tereza Dias Olbertz, vem-me à lembrança aqueles panoramas do Rio de Janeiro, confeccionados no tempo do Império por pintores como Henry Chamberlain, Dom Miguel Ângelo Blasco, Emeric Essex Vidal, Johan Jakob Steinmann, Félix-Émile Taunay, Eugenio Rodriguez, entre outros. Os panoramas, que estiveram muito em voga no século XIX, eram pinturas que almejavam retratar uma vista abrangente, quase sempre de uma cidade, normalmente vista de um ponto elevado e distante. Até onde se sabe, o termo “panorama”, do grego “pan” (total) e “órama” (vista), foi cunhado pelo pintor irlandês Robert Barker. María Negroni, em seu livro Pequeño Mundo Ilustrado, observa que o mecanismo desse tipo de pintura responde ao desejo de uma “visão” total, desde as alturas, como aquela que Deus poderia ter. Nessas imagens, os espectadores buscavam a máxima ilusão, algo assim como uma paisagem ideal onde a memória (uma memória criada) pudesse melhorar a experiência, embelezando-a. É nesse sentido que leio o livro de Ivanira, como um baú cuja memória é capaz não só de produzir um conhecimento sobre a história da nossa arte, mas também - por meio dessa experiência -, aproximar o leitor da beleza criada pelos nossos artistas e do prazer que ela pode suscitar.
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foto panorâmica do Rio de Janeiro (2012) acervo pessoal Caio Moreira
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No caso do livro Entrevistando a arte, não estamos diante de um panorama da cidade, mas de um painel bastante ilustrativo das artes plásticas nela produzidas. Ao mirar suas páginas, o leitor possivelmente terá uma experiência semelhante àquela do espectador que se coloca diante de um panorama, tendo, nesse caso, a possibilidade de vislumbrar um conjunto formado pelos mais variados estilos, técnicas e temáticas. Dos pinheiros de Amadeu Bona aos quadros azuis de Renato Ruschel, passando pelo ultra-realismo de Pedro Girardelo Neto e pelo traço inconfundível de Ulysses Teixeira, só para citar alguns, nossa pintura é fruto de um ambiente cultural altamente desenvolvido.

A obra de Ivanira é o resultado de uma pesquisa de fôlego que, ao longo de anos de gestação, foi ganhando a forma que vemos agora, a de um baú repleto de pedras preciosas lapidadas por artistas que, ou nasceram em Porto União da Vitória, ou fizeram de nossa terra a sua legítima morada.

O livro já se firmou como um dos estudos mais significativos da história da cultura de nossas cidades. A obra, em geral, é assim composta: A autora apresenta a biografia de um determinado pintor e, na sequência, insere algumas imagens por ele pintadas.

De artistas mais consignados pela crítica, como Erich Will, Eugênio Schuwaloff e o já citado Amadeu Bona, até pintores contemporâneos ainda desconhecidos do grande público, a antologia Entrevistando a arte convida o leitor a entrar em um espaço que poderíamos chamar aqui de “museu imaginário”, um museu que consegue reunir mais de 3000 fotografias de produções artísticas, ou seja, formar um banco de imagens cuja iconografia, reunida de forma inédita, será de grande interesse e valia para as futuras gerações, que terão a oportunidade de conhecer o trabalho de nossos artistas até agora pouco documentado. Preenche, assim, uma lacuna nos estudos de arquivo em nossas cidades, arquivo esse fragilmente preservado. A obra, nesse sentido, salva um passado artístico até então fadado a ser obliterado da história, ou destinado apenas a ornamentar de forma anônima as paredes de nossas casas.

O livro satisfaz a fantasia de possuirmos e carregarmos debaixo do braço todas as pinturas nele registradas, já que guarda em miniatura boa parte da produção local. Seria, assim, uma espécie de caixa mágica que faz da coleção um instrumento de conhecimento e prazer. Logo, a satisfação de vê-lo publicado equivale ao êxtase do pintor que conclui seu trabalho, entregando-o ao público com o sentimento de dever cumprido. Vem-me a sentença: Esta obra de obras só poderia ter nascido das mãos e da imaginação de uma pesquisadora competente e apaixonada pela arte como a Ivanira Tereza Dias Olbertz.

Penso na importância desta obra não só para o presente, que já tratou de consigná-la pelo desejo homérico de salvar o passado, mas para o futuro, que terá em mãos um trabalho de inestimável valor, o registro fundamental de nossa produção artística. Se já é agora, imagine que bela pérola este volume será daqui há cem ou duzentos anos, quando o agora será mera miragem ou vaga lembrança.

Caio Ricardo Bona Moreira


segunda-feira, 10 de setembro de 2012

breves apontamentos sobre "História e Narração em Walter Benjamin", de Jeanne Marie Gagnebin



Na introdução de História e Narração em Walter Benjamin, Jeanne Marie Gagnebin relembra a aventura de Ulisses na viagem-escritura de Odisséia. Observa que a narração do herói estaria atravessada por dois grandes gestos praticamente paradoxais: de um lado, a necessidade de Ulisses retornar a sua casa; de outro, a necessidade de diferir esse retorno para poder viver a Odisséia e realizar o relato. A narração ocidental se constituiria a partir da rememoração, da “retomada salvadora pela palavra de um passado que, sem isso, desapareceria no silêncio ou no esquecimento”. Narrar seria, assim, uma forma eficaz de lutar contra o esquecimento, contra a morte. É esse elo que parece aproximar a literatura da história. Ambas são movidas pelo ímpeto de narrar com o objetivo de não esquecer. Gagnebin lembra que ainda hoje literatura e história enraízam-se no cuidado de lembrar. No entanto, nem por isso a narração deixa de ser atravessada pelo esquecimento, pela morte: “esquecimento que seria não só uma falha, um branco de memória, mas também uma atividade que apaga, renuncia, recorta, opõe ao infinito da memória a finitude necessária da morte e a inscreve no âmago da narração”. Curiosa questão: Na morada de Calipso, Ulisses esquece. Em outra passagem, Ulisses dorme, enquanto os tripulantes abrem a bolsa de Éolo, provocando a tempestade. Assim, não podemos deixar de considerar que desde a origem da narrativa ocidental, memória e esquecimento formam os dois lados de uma só moeda, ou o mesmo lado de duas moedas diferentes. Jacyntho Lins Brandão observa que as Musas, filhas de Mnemosyne, são também filhas do esquecimento: “Se as Musas fossem só memória, sem o esquecimento e a pausa, não deixariam de ser o mesmo que representam as Sereias e acabariam por tornar-se fatais. Ora, ao unir-se a Memória a Zeus, mesclando-se com ele, na própria lógica da metáfora sexual, introduz-se nela algo diferente, algo que, tratando-se de uma divindade cujo nome revela um atributo unívoco bem estabelecido, só pode ser não-memória. As Musas, portanto, não são exclusivamente memória, mas memória e não-memória (expressa esta última como esquecimento, pausa)”.

O fato é mote para Gagnebin começar a pensar em uma série de questões abordadas pelo filósofo Walter Benjamin. Noções como a de origem, original, tradução, alegoria, morte e modernidade fazem parte do labirinto construído pelo autor de Origem do Drama Barroco alemão, livro aliás fartamente discutido no estudo de Gagnebin.

A idéia benjaminiana de “salvação” percorre o texto de Gagnebin, que a todo momento não se esquece de lembrar de esquecer. Se por um lado a idéia de “salvação” pode ser lida como uma fidelidade ao passado, isso não significa que represente uma infidelidade ao presente. Esquecer pode representar uma “resposta ativa ao apelo do presente e à promessa do futuro”. Por isso, não devemos ver em Benjamin a figura do arqueólogo que escava apenas para colecionar fósseis, trapeiro da memória, para lembrarmos de um dos poemas de As Flores do Mal, de Charles Baudelaire. Como ele mesmo (Benjamin) disse em um dos fragmentos de Rua de Mão Única, no ato de uma exploração cuidadosa, se ilude quem só faz o inventário dos achados, não sabendo assinalar no terreno de hoje o lugar no qual é conservado o velho. A contribuição do filósofo parece ser a de demonstrar que as verdadeiras lembranças devem proceder informativamente menos do que indicar o “lugar exato” onde o investigador se apoderou delas. Talvez por isso a opção de Benjamin pela alegoria. Em uma das passagens de seu ensaio sobre Goethe, “As afinidades eletivas”, ele contrapõe a figura do Comentador, que seria uma espécie de químico, interessado apenas na composição dos objetos, ao Crítico, uma espécie de alquimista, interessado na vida que há nesses mesmos objetos. E se o símbolo pressupõe um fundo, um referente apaziguador, a alegoria prefere os sustos, a transformação, a reinvenção da própria história, da própria narração.

breves apontamentos sobre O Ritual da Serpente, de Aby Warburg

O que interessava a Aby Warburg, como historiador cultural, na sua pesquisa sobre os índios americanos era que, em um país que fez da cultura técnica uma admirável arma de precisão ao serviço do intelecto, sobrevivia uma cultura primitiva e pagã, que poderia, equivocadamente, ser interpretada como um sintoma de atrasado. Warburg estava se referindo à adoração por meio da dança com máscaras de fenômenos naturais, animais e plantas, a que os índios atribuíam vida anímica.
A questão levantada por Warburg é a seguinte: “Em que medida pode nos servir o estudo da concepção pagã de mundo, tal como persiste até o dia de hoje entre os índios pueblo, como parâmetro de evolução humana que transcorre do paganismo primitivo à modernidade, passando pelo paganismo da Antiguidade Clássica?”

As práticas mágicas, que fundariam a religião indígena, não só dos índios pueblo, mas de grande parte das sociedades pré-tecnológicas, surgiram a partir da falta de água e da conseqüente necessidade do homem dominar os problemas impostos pela natureza. Mas não é apenas na dança com máscaras que o simbolismo religioso da tribo aparece. As cerâmicas produzidas pela comunidade pré-tecnológica traduzem as suas concepções cosmogônicas. Warburg relata ter recebido de um dos índios um desenho que representa um elemento básico da cosmologia dos Oraibi, o universo concebido como uma grande casa. O demônio que nela surge é representado com uma serpente. No entanto, e é importante ressaltar, a cultura dos índios pueblo não figura a Warburg apenas como preenchida de magia e destituída de técnica. Ambos convivem na curiosa comunidade:

“Tal coexistência da civilização lógica com a causalidade mágico-fantástica, revela o singular estado de hibridização e transição em que se encontram os pueblo. Eles não são homens de todo primitivos, que dependem somente de seus sentidos, e para os quais não existe uma atividade referida ao futuro; porém tampouco são como o europeu, que confia seu porvir à tecnologia e às leis mecânicas ou orgânicas. Os pueblo vivem entre o mundo da lógica e da magia, e seu instrumento de orientação é o símbolo. Entre o homem selvagem e o homem racional, se situa o homem das interconexões simbólicas”.

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Feira do Livro 2012

Participo no próximo dia 12 de setembro, na Fundação de Cultura de União da Vitória (Estação Ferroviária) de um bate-papo com o professor e tradutor Caetano Galindo, em mais uma edição da Feira do Livro de União da Vitória, em parceria com o SESC Literário. O Galindo vai falar sobre a poesia além do papel, em tempos de internet. Eu farei a mediação. Uma noite antes, no dia 11, a palestra será proferida pelo Fabrício Corsaletti, que gosto bastante. Seu romance-novela "Golpe de Ar" é muito bonito. Fica o convite. Compareçam!

UM PINHÃO NA SANTA CEIA: CONSIDERAÇÕES ACERCA DA EXPOSIÇÃO DE QUADROS DE ROBERTO BONA

Tive o prazer de visitar nesta quarta-feira, 04 de setembro, a exposição de quadros do pintor e músico Roberto Bona que está acontecendo no Recanto do Artesanato Amadeu Bona, em União da Vitória. Roberto, que é filho do artista plástico que dá nome ao espaço, não nega as origens. Inspirado pelo legado artístico do pai, seus quadros evocam paisagens telúricas do Vale do Iguaçu compostas por pinheiros, riachos, estradas rurais e montanhas preenchidas de um verde oliva singular. No entanto, seu trabalho não é uma mera tentativa de recapturar a experiência pictórica de seu progenitor. Roberto sabe da importância e da necessidade de criar seu próprio caminho. Quem conhece a sua trajetória percebe o trabalho em progresso que está em jogo no seu pintar. Seu estilo não é acabado e esta parece ser uma de suas qualidades. Não estamos diante de um pintor que encontrou um tema e um traço e neles transita confortavelmente, escravizando-se no lugar comum. A zona de conforto, para ele, está fora de cogitação.


Mesmo quando seu interesse se repete no motivo dos pinheiros, ele consegue fazer-se diferente. Como nos diria o poeta Manoel de Barros, “repetir é um dom do estilo”: “repetir, repetir, até ficar diferente”. Repetição e diferença fazem parte de seu cardápio imagético. Basta observarmos como o tratamento espatulado das cores pastéis em alguns de seus quadros aproxima parte de sua pintura do impressionismo francês. É o que vemos, por exemplo, no quadro intitulado “O Casebre”, que integra a exposição. Se por um lado repete o tema, como seu pai já fazia com presteza e inigualável talento, por outro varia no procedimento, as tonalidades e luzes são diferentes, fazendo de sua pintura um objeto singular que é digno de atenção.

Não seria fortuito observar que no trabalho de Roberto Bona as variações formais sobre um mesmo motivo, com o passar do tempo, foram dando espaço também para a variação temática. Prova disso são as experimentações constantes que o artista vem desenvolvendo nos últimos meses e que podem ser percebidas não só nas marinhas e nos bambus, como também nos criativos exercícios de releitura da obra de outros pintores.


Na exposição, depois de contemplar a maioria dos trabalhos apresentados, meu olhar foi capturado por uma “transcriação” da “Santa Ceia dos Operários”, de Jaime Trindade. Em um primeiro momento, nada de novo. Lá estão os doze operários-apóstolos mais o “presidente do sindicato”, fartando-se de comida e bebida. No entanto, um olhar mais atento nos mostra algo no mínimo curioso. Roberto Bona inseriu, entre os alimentos, o pinhão. Em um segundo plano, dispostos atrás dos personagens e vislumbrados através da janela estão os pinheiros. O que poderia ser apenas um detalhe faz toda a diferença. O nosso artista reinventa com criatividade a obra de Jaime Trindade. Estamos diante de um procedimento de intervenção que, se por um lado fornece a uma obra já produzida um “ar” regional, por outro, dá ao pinhão e ao pinheiro ares universais. A “Santa Ceia” de Roberto Bona é sertaneja - no melhor sentido da palavra - e não menos sagrada. Seu gesto faz lembrar da Monalisa de bigodes, de Marcel Duchamp, que, ao inserir um pequeno detalhe no quadro já conhecido, tem o poder de transformar o original, fazendo da cópia algo mais produtivo do que a mera reprodução. O que demonstra que Roberto Bona é hoje um de nossos pintores mais inventivos.

(Santa Ceia dos Operários, ainda sem o pinhão e os pinheiros)

Em um momento conturbado como esse, no qual, muitas vezes, as pessoas quase perdem a sua vida por questões político-partidárias, talvez seja a hora de olharmos mais para a arte, para com ela percebermos o que realmente importa e o que realmente faz para nós sentido. Que a “Santa Ceia” seja a nossa oração.


Caio Ricardo Bona Moreira