As datas
cabalísticas me convidam a pensar na vida
E agora fico sabendo dos 70 anos do Caiçara. No
breve instante do apagar de suas velas, o tempo para e me vejo nos tempos de
piá mirando aquelas páginas num ritual que coincidia com a expectativa do
início do fim de semana.
Vem-me à lembrança essa cena: Na casa de meu avô, às sextas-feiras, eu via descansando sobre uma poltrona ou o criado-mudo, onde jazia um velho telefone vermelho - daqueles que precisávamos de fato discar -, a edição semanal do então hebdomadário. Religiosamente, aquele pequeno indígena da primeira página vivia sorrindo pra mim (quem, aliás, o desenhara?). É quando a memória da infância se confunde com a imagem que fazemos dela e dos objetos que costumávamos vislumbrar.
Folhear hoje o jornal, essa
espécie de Rosebud, é uma forma de tocar proustianamente aquele tempo de meninice.
Mordo essa madeleine! Por isso a
versão impressa me parece mais romântica e bela que a digital. Achava um barato
nas edições especiais de Natal aquela proliferação de propagandas de lojas ou
políticos desejando boas festas aos leitores. Os cartões natalinos preenchendo
praticamente todas as páginas do jornal.
Um dia, já professor, fui até
a redação, que ficava no Executive Center.
Lá, encontrei a dona Lulu concentrada a ler alguma coisa diante de uma mesa
repleta de papeis. A fundadora do Caiçara me pareceu séria e solícita. Apresentei
um texto e ela gentilmente o publicou. Era um artigo que eu escrevera depois de
visitar uma exposição de quadros do Carlos Kussik, cujo trabalho muito me
impressionara. Pouco depois, o jornal trouxe a lume mais um ou dois textos
meus. Quase dez anos depois, atendendo a um convite do Delbrai, que depois de
Lulu ficara de chefe da tribo, comecei a colaborar mais assiduamente. De 2017
até o presente momento, caiçara de carteirinha há sete anos, embora nem sempre
tão assíduo, publiquei aqui quase uma centena de textos. Guardo todos em uma
pasta do computador intitulada “Textos Caiçara”. Quase todos sobre literatura.
A maior parte sobre livros e autores que me encantam (costumo dizer que só
escrevo sobre o que amo, nem que seja para falar mal).
No espaço da Coluna, que me
foi gentilmente cedido, pude viajar de César Aira a Raduan Nassar, de Bernardo
Carvalho a Enrique Vila-Matas, de Roberto Bolaño a Silviano Santiago, de
Clarice Lispector a Ailton Krenak, de Gonçalo Tavares a Mariana Ianelli e
tantos outros. Metido, arrisquei palpitar sobre alguns filmes, e arranhei uns
pitacos musicais do samba ao jazz (como todo bom brasileiro se sente preparado
para dirigir a Seleção mesmo não sabendo jogar quase nada). O amável jornal
inclusive teve a petulância de publicar uns dois ou três poemas e contos que
rabisquei. Ali, recuperei uns episódios curiosos ocorridos em Porto União da
Vitória, e li textos bons de muita gente boa, do Craque Kiko, do Cadinho, do
Carlos Senkiv, do Renê, da Marga, do Delbrai, dos professores Luisandro,
Fahena, Marli, Lorena, Vitor e tutti quanti.
No tempo que estive aqui, vi
o cerco político se fechar no Brasil dos últimos anos e junto de outros colegas
tivemos a liberdade de escrever o que pensávamos. Essa propensão ao espírito
crítico, que é uma força do jornal, parece estar no cerne da sua criação,
motivada por uma crueldade local que Lulu Augusto e seu irmão Dante de Jesus
julgaram fundamental denunciar e combater. O seu espírito libertário parece
combinar com a jovialidade e alegria de seus atuais diretores e colunistas
também. Desejo que o mascote do Jornal, aquele índio alegre estampado na capa,
continue periodicamente descendo de uma estrela colorida e brilhante, impávido
que nem Muhammad Ali. Talvez seja ele um pouco o "eu" menino, o índio
que sempre quis ser, a me olhar nos olhos como quem imagina o futuro do passado
naquelas tardes de sexta ou sábado de minha infância, sem nem imaginar que um
dia o meu avô poderia ter lido os textos do neto ali. Acredito que escrever é
sempre uma forma de organizar o pensar, ou seja, de “desbagunçar” o caos. Uma
alegria também. É mesmo uma possibilidade de encontrar o mundo e as pessoas, e
- por quê não dizer? - de fazer amigos. Quem me lê agora, por exemplo?
Estaremos juntos de mãos dadas nessa hora? Congracemo-nos antes de você virar a
página. Dou-lhe um piparote tal qual Machado de Assis. Que possamos continuar
nos reencontrando aqui. Evoé!
Caio Ricardo Bona Moreira
(Edição 2594, 12/08/2023 - Jornal Caiçara, União da Vitória PR)