quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

A FARMÁCIA DE ENRIQUE VILA-MATAS

A utopia da literatura em Mal de Montano é um elogio à sobrevivência do literário

Em Mal de Montano, de Enrique Vila-Matas, o narrador, ao constatar que vive rodeado de citações de livros e autores, confessa ser um doente de literatura: “Asfixia-me cada vez mais a literatura. Nos meus cinqüenta anos, angustia-me pensar que meu último destino seja me tornar um dicionário de citações ambulante." Sofrer de literatura poderia ser inicialmente visto como um mal, um mal que paralisaria o próprio processo de criação. Aqui, o caso parece ser o oposto de Bartleby e Companhia. Não é o escritor que recusa a literatura, mas é o escritor impossibilitado de abandoná-la, por isso abandonado, doente de citações.

Mas engana-se quem pensa que o que impera em Vila-Matas é o lamento pela suposta morte da literatura, pelo esgotamento das narrativas. Pelo contrário. Como um bom leitor de Benjamin, que por sinal é citado no livro, o escritor sabe que a colagem de citações, fragmentos, ecos de outras obras, não é apenas um capricho de montagem, mas o princípio constitutivo da própria sobrevivência do literário. Se, como dizia Nietzsche, a vida já não reside na totalidade, num todo orgânico e completo, poderíamos concordar com o autor de Mal de Montano no fato de que uma vida pode ser muitas vidas, uma “pavorosa conjunção dos mais diversos destinos”. Inventar essas outras vidas, ou mesmo inventariar a partir dos passos de outros escritores, como Fernando Pessoa, é um procedimento que o escritor consegue com destreza e que o permite potencializar outras realidades: "Talvez a literatura seja isso: inventar outra vida que bem poderia ser a nossa, inventar um duplo. Ricardo Piglia diz que recordar com uma memória estranha é uma variante do duplo, mas é também uma metáfora perfeita da experiência literária. Termino de citar Piglia e constato que vivo rodeado de citações de livros e autores”.

Ao longo da narrativa, Vila-Matas vai desenhando um jogo que inverte o processo. O que antes era visto como um mal, uma doença, passa a ser visto como um bem, uma força, mesmo que a doença continue existindo: “Desejo livrar-me do mal de Montano, mas queiram os deuses e Kafka que não consiga”.

Em uma recente entrevista concedida a José Castello, para o jornal Rascunho, Vila-Matas, seguindo os passos do narrador de Mal de Montano, observou que “saber-se doente é mais inteligente que se considerar saudável”. Contra a concepção de que vivemos em um mundo de gente saudável (mundo ocidental), o escritor louva, talvez ironicamente, o surgimento da classe dos doentes, por que não dizer dos apaixonados por literatura (a paixão pode ser entendida como um tipo de doença, por que não?): “(...) é de se aplaudir que quando todo mundo, menos Kafka, tenha se tornado kafkiano, apareça no horizonte uma categoria de seres, os doentes, que buscam se distanciar da loucura oficial e ter uma doença própria, defender sua singularidade diante do estridente e vulgar kafkianismo geral”.
Poderíamos pensar que o Mal de Montano seduz o narrador justamente no momento em que ele percebe que manejar com destreza a memória literária (administrar a dose do phármakon), “jogar” com ela, potencializá-la a partir da montagem, é uma maneira muito interessante de sobreviver na literatura. Por isso os fatos, nesse livro, parecem ficar em segundo plano, já que o que é colocado em ênfase é a "busca" da obra e não a obra. Para consignar a posição, poderíamos lembrar de Maurice Blanchot, figura recorrente na obra de Vila-Mattas, desde Bartleby e Companhia, que diria no texto “O desaparecimento da literatura”: “O que atrai o escritor, o que impulsiona o artista não é diretamente a obra, é a sua busca, o movimento que conduz a ela, a aproximação que torna a obra possível: a arte, a literatura e o que essas duas palavras dissimulam”.

Talvez possamos agora entender um pouco melhor o “jogo” proposto por Vila-Mattas. Os vários livros que compõe o livro, os fragmentos que vão se sobrepondo ao longo da narrativa, e que são muitas vezes propositalmente “desconstruídos” nos outros livros que compõe o livro, são o sintoma de uma literatura que está interessada em refletir sobre a própria literatura, sem fazer mera metalinguagem. Sobre esse escritor, ainda com Blanchot, poderíamos dizer: “ (...) não deseja acabar quase nada, deixando em estado de fragmentos cem narrativas que tiveram a função de conduzi-lo a determinado ponto, e que ele deve abandonar para tentar ir além desse ponto”.

Carlito Azevedo, na apresentação do livro, publicado pela Cosacnaify, observa que Mal de Montano é “uma máquina de ironia que evita o demagógico e comemora e celebra o tempo inteiro a riqueza e a força da literatura, celebra e comemora sua liberdade frente à mesquinharia e tacanhez da vida tal como nos é oferecida em tempos de obediência e submissão”. Carlito ainda chama a atenção para a utopia afirmada por Vila-Matas, a utopia da literatura que nos oferece uma alternativa à tirania das linguagens da política, do trabalho e da família.

A utopia da literatura encarnada em Mal de Montano é um elogio à sobrevivência do literário. Quem não percebê-la, não passou das primeiras páginas, em que o phármakon é apresentado ainda como um veneno.

c.moreira

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

SOY CUBA: REVOLUÇÃO NO CINEMA OU CINEMA NA REVOLUÇÃO?

Na década de 60, alguns anos depois da Revolução Cubana, que derrubou Fulgêncio Batista e colocou Fidel Castro no poder, estabeleceu-se uma parceria cinematográfica entre Cuba e União Soviética. Seu objetivo não era apenas tecer laços culturais entre os países, mas principalmente desenvolver na pequena ilha um cinema político que estivesse à altura dos interesses da revolução. O resultado pode ser conferido em Soy Cuba (1964), de Mikhain Kalatozov. Considerado como um fracasso, o filme foi redescoberto e restaurado por Martin Scorsese e Francis Ford Coppola, nos anos 90 – uma ironia do destino. Digo isso porque é curioso o fato de o filme ter interessado tanto aos americanos, tendo em vista que a potência do norte é claramente retratada como o grande inimigo da nação de Guevara. Mas o fato pode nos dizer algo mais. Significa que arte e política são coisas que, se de um lado estão indissoluvelmente ligadas, de outro, não necessariamente precisam se confundir. Scorsese e Coppola não são ignorantes: O cinema não precisa engolir bloqueios. Até porque antes de ser política, toda arte precisa ser ARTE.

O objetivo do filme é claro: servir como propaganda comunista, defender e louvar a revolução, mostrar os problemas que o imperialismo norte-americano, acolitado por Fulgêncio, estava causando principalmente às classes pobres, situadas na periferia de Havana, ou mesmo em localidades rurais. Num contexto em que os EUA e a URSS travavam um embate que ficaria conhecido como Guerra Fria, Soy Cuba poderia inicialmente servir como uma bandeira não apenas aos revolucionários de Sierra Maestra, mas também à própria União Sovitética. No entanto, o filme foi um fracasso. A produção russa foi questionada pelos próprios cubanos, que viram na película uma representação romântica que era tão ideal quanto irreal – caso semelhante aconteceu no Brasil, como o filme Orfeu da Conceição, dirigido por Marcel Camus, em que o retrato das mulatas e dos sambistas beira o caricatural. Outro exemplo pode ser encontrado naquele filme do Zé Carioca, produzido por Walt Disney, em 1945. Por isso, para não cairmos num juízo falacioso, penso que devemos assistir a um filme como Soy Cuba sabendo que se trata de uma estetização da política e de uma visão idealizada produzida por um olhar estrangeiro. A despeito disso, o filme é muito bem produzido, contando com uma fotografia requintada e com seqüências muito bem elaboradas. Duas, especialmente, chamaram a minha atenção. A primeira é aquela que retrata uma típica cena da vida burguesa cubana pré-revolução. Um grupo de pessoas se diverte na piscina do Hotel Capri. A câmera passeia pelo pátio e mergulha na piscina. A segunda retrata a saída de um magnata estrangeiro da favela. O homem passara a noite com Maria, uma jovem prostituta. Novamente, a câmera passeia pelos becos da favela, focalizando personagens típicos da periferia de Havana que poderiam ser de qualquer favela do mundo. Outras seqüências poderiam ser citadas, mas o melhor seria assistir ao filme.

O tom poético de Soy Cuba parece se construir não apenas nos versos de protesto que são declamados pelo narrador, mas também por cortes, movimentos e aproximações que caracterizaram o cinema experimental russo. As quatro histórias contadas acabam por desenhar um panorama da situação do país. O homem explorado que é expulso da terra que arrendara. A prostituta que vende o corpo aos turistas americanos, o pai de família que decide entrar para o grupo de Fidel e Guevara, depois de ter sua casa bombardeada em Sierra Maestra, um estudante da Universidade de Havana, que luta até a morte em prol da transformação social. A visão política unilateral do filme, mesmo tocando numa questão que sabemos ser verídica, a da exploração das grandes potências capitalistas, faz com que vejamos o roteiro com desconfiança. Mas o real, no cinema, é sempre uma areia movediça. Poderíamos encontrar no cinema contemporâneo uma “contra-visão” de Soy Cuba em Cidade Perdida (2005), de Andy Garcia, produção norte-americana que encena também a queda de Fulgêncio e a ascensão de Fidel, mas com o olhar do Tio Sam. Guevara, por exemplo, é retratado como um sanguinário, capaz de sacrificar qualquer bom senso em prol do poder. Restaram as belas paisagens, a boa música e a beleza das mulheres da ilha, mas bons filmes não se fazem apenas com belas mulheres.
Depois de assistir ao filme, devemos concordar que Soy Cuba pode ter perdido a força revolucionária, mas não estética, o que nem sempre acontece com as obras, sejam literárias, cinematográficas etc, quando a preocupação principal é fazer política e não arte. Se Soy Cuba ainda me toca é porque está além de Fulgêncio ou Fidel.

c.moreira

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

IVONNICH FURLANI, O CANTO DO POETA ESTRANGEIRO

Octavio Paz, poeta e crítico mexicano, numa das passagens do livro O arco e a lira, observa que a poesia é um alimento que a burguesia - como classe – tem sido incapaz de digerir. Poderíamos acrescentar mais um detalhe à sua observação: a burguesia, além de ser incapaz de digerir a poesia, tem sido no mundo capitalista a principal responsável por seu aniquilamento. Podemos perguntar para os habitantes de nossas cidades quem são os políticos proeminentes, os principais empresários, os padres, as famílias tradicionais. É provável que todos ou quase todos saibam responder. Se perguntarmos quem são nossos poetas, talvez a resposta seja mais difícil de ser encontrada. Não que não haja poetas. Mas quem ainda quer ouvi-los?

No entanto, prefiro que este espaço não seja de lamento. Quem disse que os poetas estão ligando para isso? É justamente por possuir uma fala desvinculada de todas as utilidades imediatas, de todo preço, vontade de poder, ou necessidade de bens de consumo que o poeta parece ser uma das vozes mais interessantes que circulam numa cidade. Lembro de uma entrevista em que o poeta Ferreira Gullar falava que se dependesse dos poetas, nem o prego teria sido inventado, oxalá um canhão e a bomba atômica. Paulo Leminski costumava dizer que o poeta não é uma excrescência ornamental, um ser de luxo, mas uma necessidade orgânica da sociedade; ela precisa da ruptura que ele representa para poder respirar. O fato de ser margem não o faz um excluído, mas apenas um estrangeiro, já que ele próprio, por meio de sua linguagem, inventa nossas formas de comunidade, outras maneiras de (con)viver e de agir no mundo, construindo novas realidades, mágicos sistemas de pensamento, tendo o verso como instrumento.

Também temos nossos poetas; um deles é Yvonnich Furlani. Apesar de não ter nascido em nossas cidades - fato que o fez se considerar um estrangeiro, como cantou em verso - Furlani soube desde cedo que os laços afetivos com uma comunidade são mais fortes que qualquer outro detalhe: “Afundei raízes / bebi água do Iguaçu / não sei o que possa hoje / separar-me de ti, Porto União / (...) Este é o canto do estrangeiro / que tu acolheste um dia”. Fincar raízes como um pé de chorão à beira do Iguaçu é um bom motivo para o poeta dizer “Eu fico aqui”, aliás, título de um dos poemas mais bonitos já escritos sobre as cidades de Porto União da Vitória. O sentimento que transforma o eu-lírico na própria natureza descrita é forte o suficiente para não deixá-lo se abalar por intempéries da vida, como se a poesia fosse assim uma espécie de remédio para a alma: “E se a tempestade / de algum dia negro / me chicotear a copa / e eu sentir doridos / meus galhos / meus músculos / meu dorso / minha seiva / não faz mal / eu fico aqui”.
Yvonnich Furlani, à maneira de Vinícius de Moraes, encontrou no amor um dos temas mais pungentes de seus poemas. Mas não se trata de um amor piegas, presente em tantos candidatos a poetas e na própria idéia que os leitores geralmente fazem da poesia. Em Furlani, o amor é uma celebração da vida por meio da palavra: “Hoje, amo tudo o que me rodeia! / Amo, sobretudo, as flores, / porque dentro de mim é primavera”. E tal amor existe para ser cantado. Yvonnich, segundo depoimento de amigos, era um exímio declamador, fato que por si só já justificaria nosso respeito por ele, pois a poesia é acima de tudo uma voz que existe para voar do livro e atingir, audaz, um coração aberto. Como não lembrar de um outro poeta catarinense, Lindolf Bell, fomentador do movimento de catequese poética, que acreditava no potencial transformador da poesia por meio das declamações. Imagino como seria festivo o encontro desses dois poetas apaixonados pela palavra, pela música, pela vida. Ambos, curiosamente, nasceram na mesma região, Lindolf, em Timbó; Ivonnich, em Rodeio. É provável que as bonitas paisagens do Vale do Itajaí tenham contribuído para despertá-los para a literatura. Vale lembrar que Yvonnich iniciou seus estudos em Timbó, Santa Catarina.

O pintor Amadeu Bona, no prefácio do livro Eu sou o verso, publicação que reuniu textos do escritor, observou que Ivonnich foi um poeta romântico que, com a alma impregnada de otimismo, nos deixou a experiência, o prazer de quem dá, a gratidão de quem recebe, a sinceridade da amizade autêntica, o amor sentido em seus versos. Não seria fortuito lembrar que um dos méritos da poesia é justamente nos reconciliar com a experiência. E se falei que o amor, para Furlani, é uma celebração da vida é porque tal impressão é suscitada por quase todos os seus versos. No final da leitura de cada texto bem poderíamos erguer a taça e fazer um brinde. Tal comemoração traria o mesmo gosto de um “poeminha” de Antonio Carlos de Brito, o Cacaso: “Poesia / eu não te escrevo / eu te vivo / e viva nós!”. Ivonnich também viveu a poesia, seja nos encontros sociais, em que fez da palavra uma arte, seja nas serestas, em que fez da poesia uma música.

Poderão dizer que o poeta estava mais preocupado com a expressão do sentimento do que com a elaboração estética dos poemas, mas não podemos desconsiderar que as duas coisas não estão completamente dissociadas. A despeito disso devemos lembrar que o poeta, ao invés de transformar o texto em um mero ornamento, como fez a poesia parnasiana, estava mais interessado em comunicar, ou transformar em poesia, um determinado estado de espírito: “Mando-te um verso / saído, agora, há pouco / desta oficina sentimental... / não aquele verso parnasiano, / bem cuidado, / feito com esmero, sem igual!... / Não! Minha oficina é modesta / e faltam-lhe recursos; / apenas, é pretensiosa por demais: / quando fala de amor, este coração / anda perdido de emoção”.

Para finalizar poderíamos observar que ao pessimismo de Octavio Paz, Furlani, talvez sem sabê-lo, responde com uma flor. Provavelmente não acreditava na desintegração da poesia na sociedade contemporânea e, otimista, afirmou: “Parece que o insano dinamismo / a velocidade, este transformismo, / até o próprio verso silenciou!... / - Mentira! Tudo passa nessa vida! / Só não passa esta frase comovida / que o teu coração pronunciou!”. Contra a falta de lirismo que impera na sociedade contemporânea e o excesso de um pragmatismo que vem moldando cada vez mais as relações sociais, a fala de um poeta como Ivonnich consegue resgatar um estado de magia capaz de nos fazer lembrar que o amor e a delicadeza sempre serão necessários para a vida e para a poesia.

c.moreira
(texto publicado originalmente no jornal O Comércio, de União da Vitória, PR, 2008)

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

SIGNO CINEMATOGRÁFICO DO CAOS:
"É preciso tirar o cinema do quarto de brinquedos".
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Rogério Sganzerla é o Oswald de Andrade do cinema brasileiro. Digo isso por vários motivos. Sganzerla era inteligente e provocador, como o príncipe da Semana de Arte Moderna. Assim como Oswald, Sganzerla levou o princípio de montagem às raias da loucura, sem com isso deixar que a obra se espatifasse logo depois de cair no abismo da representação. Podemos assistir a um filme seu como se estivéssemos lendo um livro paranóico, como Memórias Sentimentais de João Miramar, ou mesmo Panamérica, de José Agrippino de Paula, que oscila entre o cinema e a literatura. Poderão dizer que a comparação é grotesca, mas não esqueçamos que a lógica criada por Oswald, em Miramar, é também cinematográfica, como bem observou Haroldo de Campos. Diria mais ainda: Sganzerla é um antropófago. Vamos por partes.

Acabo de assistir ao Signo do Caos. Se você ainda não viu, lembre-se que deve assistir à película partindo da idéia de que se trata mesmo de um Signo do Caos. É preciso estar atento e forte, sem medo de temer a morte. Qualquer preconceito poderá interferir no processo, levando o telespectador para adiante do caos – alguém sabe onde fica?

É provável que o filme fique bem mais interessante depois de assistir ao Tudo é Brasil (que comentei no post anterior), ou aos outros filmes de Sganzerla que mergulham no acontecimento da vinda de Welles ao Brasil, na década de 40. Por outro lado, poderíamos concordar com os semiólogos que pregam ser o texto uma rocha formada por diversos níveis de sentido. É possível assistir ao Signo do Caos sem saber o que significa aquela caixa encontrada no mar, em que está gravada a frase: “It´s all true!”. Sganzerla brinca com a idéia de que a caixa perdida, que guardava as películas do documentário de Welles, teria sido atirada ao mar pelo cineasta americano. Agentes do DIP teriam encontrado essa “jóia rara”.

A partir daí inicia-se um longo processo de discussão entre os agentes. Para a maioria deles, a caixa deveria ser destruída, ou devolvida ao mar, já que o que nela estava guardado era um retrato do atraso nacional: a pobreza e outros problemas sociais. Poderíamos arriscar dizer que trata-se de uma continuidade de Tudo é Brasil. Em ambos, a profusão exagerada das imagens, dos cortes, dos sons brutos, enfim, uma bomba atômica cinematográfica, como o Catatau, de Paulo Leminski, na literatura.

A primeira parte do filme, em preto e branco, é um signo da época. Alude, a meu ver, não apenas ao fato de que se trata do tempo em que os filmes eram em preto e branco, mas principalmente a um momento social que realmente era preto e branco. Segundo uma das personagens do filme, antes da década de 40, tudo era preto e branco. O mundo só ficou colorido depois. Mas há um detalhe que merece ser esmiuçado. Sganzerla parece criar um jogo entre a primeira parte do filme e a segunda, colorida. A história (se é que podemos chamar de história: o cineasta caracterizou a película como um anti-filme) poderia ser pensada de outra maneira. Poderíamos imaginar que se trata de um contexto diferente. Sganzerla não está falando apenas da década de 40, e do DIP, que organizou o processo de censura no país. Está falando principalmente do presente, da estranha relação entre arte e estado que se processa no nosso país - lei Rouanet, Petrobrás, incentivo à cultura etc e tal.

Por um lado, o cineasta rende homenagem a Welles, como no momento em que Camila Pitanga (aliás, está linda no filme) brinca com uma pequena bola de cristal, fazendo-a rolar em seus pés – qualquer semelhança com Rosebud não é mera coincidência. Por outro, tem como pano de fundo uma bandeira do Brasil. Sim, Sganzerla é um antropófago. Em outros momentos os agentes do DIP assemelham-se a Sr. Kane, em planos seqüenciais que não foram montados por acaso.

Em vários momentos, os agentes da censura, revoltados com o resultado de It´s all true, tecem longos discursos, que mais parecem o ANAUÊ!, dos integralistas, chamando atenção para o fato de é chegada a hora da morte desse cinema da “pobreza”, que “suja a imagem do Brasil lá fora”: É preciso tirar o cinema do quarto de brinquedos”, diz uma das personagens do filme. Mas se engana quem pensa que o tom de Sganzerla é melancólico. Pelo contrário. Apesar do fundo do poço em que o cinema pode chegar, ou mesmo da estranha relação entre estado e arte, o cineasta parece “tirar uma onda”, despedindo-se do cinema em grande estilo. É crítico sim, mas não melancólico, como vários críticos supuseram no lançamento do filme. Signo do Caos parece-me extremamente profanador, achando uma saída para o cinema nacional pelo próprio cinema. Profanar não significa destruir. Afinal, o caos é apenas outra coisa. Muitas vezes o antropófago não come justamente para incorporar o outro, numa espécie de rito de homenagem? Faz isso com Welles, com os clichês do cinema, desmontando essa engrenagem por meio de outra lógica, de um outro regime de significação, diríamos, cuja montagem exerce o papel principal.

c.moreira

It´s all true: BRASIL
Sganzerla po(u)sando de (em) Orson Welles
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Carmem Miranda (Carmencita segundo o locutor) cantando O que é que a baiana tem? Um navio singrando o mar. Orson Welles acenando para a câmera. Uma visão panorâmica de uma avenida do Rio de Janeiro, da década de 40. Orson Welles apresentando um programa de rádio. No fundo, o Pão de Açucar. It´s all true. João Gilberto cantando. Uma mulata gingando. Grande Otello cantando Praça 11. As imagens poderiam servir como ingredientes de um bom vatapá. Trata-se de Tudo é Brasil, de Rogério Sganzerla.

Certo filósofo, e não era só ele, costumava dizer que a história é o que menos vale. Importa mais como se conta do que o que se conta. Nesse sentido, em cinema, poderíamos pensar:

· Como se constroem os planos; como em um plano sobrevive o plano anterior, bem como nele se prefigura o plano seguinte;
· Que força a imagens produz. Com que outras forças ela se relaciona;
· O que a cena está dizendo no rodapé da página;
· Que sentido há naquela imagem que não se produziu, ou que se produziu, mas foi propositalmente poupada do plano, etc, etc, etc.

O filme de Sganzerla não é somente um filme sobre Orson Welles. É sobre o próprio Rogério, já que esse tema tornou-se uma obsessão para ele (tome como outro exemplo Signo do Caos). Mas isso agora não vem ao caso.

Falava eu no outro texto sobre a polêmica ficção/documentário. Agora, depois de assistir Tudo é Brasil, outras questões suscitaram a continuidade daquela breve reflexão. Afinal de contas o documentário inacabado de Welles, que estava sendo filmado no Brasil, chamou-se It´s all true. Poderíamos dizer que todo grande documentário tem como principal mérito encarnar uma verdade numa outra verdade. Mas continuo falando daquela verdade que se olha no espelho e pisca num ato íntimo de sedução, como que querendo seduzir ela mesma – não falo de narcisismo, falo de Orson Welles.

Pois bem, o vídeo-mosaico de Sganzerla tem como pano de fundo a vinda de Orson Welles ao Brasil, em 1942. O objetivo do autor do impecável Cidadão Kane era realizar um documentário sobre o país. Lembremos que o país vivia o momento da política da boa vizinhança de Roosevelt, durante a Grande Guerra. O projeto foi abortado. Welles começara a retratar cenas de carnaval, favelados e outros mafuás. Os produtores americanos não viram com bons olhos as “misérias” retratadas pelo diretor. Talvez pensassem que fosse mais uma das armadilhas do locutor da invasão dos marcianos. A pobreza brasileira provavelmente assustou os “gringos”, tanto quanto os extraterrestres que invadiram os EUA por meio do programa radiofônico de Welles. A morte do jangadeiro Jacaré, durante as filmagens, foi talvez o estopim da bomba que faria com que Welles fizesse as malas de volta para sua casa, na Califórnia.

GRIFO MEU: Welles inovou uma série de procedimentos cinematográficos, com Cidadão Kane. Sganzerla, pelo menos no Brasil, foi um dos primeiros a potencializar a questão da montagem como fator constitutivo de uma obra cinematográfica.

A COBRA MORDE O PRÓPRIO RABO: Welles morreu em 1985 sem terminar as filmagens e a montagem. Talvez Sganzerla fosse a pessoa certa para operar a colagem, montar o quebra-cabeça de Welles. Mas Sganzerla também já se foi. Talvez Tudo é é Brasil possa servir como um aperitivo, tanto da obra de Rogério, quanto de It´s all true, do prodígio Welles. Mesmo sem saber, o americano deixou rastros. Nesse sentido, ambos os filmes, a despeito das peculiaridades de cada um, se aproximam, suavememnte se tocam, formando aquela sétima arte que chamamos cinema.

c.moreira

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

NEM FICÇÃO, NEM DOCUMENTÁRIO
OU UM POUCO DISSO, UM POUCO DAQUILO, ou ainda mais um pouco:
Contra a guerra das nomenclaturas

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Um debate muito interessante sobre o cinema-documentário está “rolando” há algum tempo. Essa discussão não está acontecendo apenas no ambiente acadêmico, no trabalho dedicado de intelectuais das mais diversas patentes, brasões e estirpes (filosofia, cinema, antropologia, lingüística, literatura, história, e outros blás: Folha de São Paulo, Estadão, USP, UNICAMP), mas principalmente na própria prática de um cinema que já não pode ser caracterizado como documentário, pelo menos não como tradicionalmente o entendíamos. É claro que o rótulo é sempre menos importante que a sardinha que se encontra dentro da lata (apesar de que uma embalagem às vezes é melhor que o produto nela guardado). Mas não me parece significativo gastar um longo tempo procurando um termo específico que possa qualificar um determinado gênero como documentário e ficção. Isso porque, para mim e para milhares de outras pessoas também, o documentário não está tão distante da ficção como pode parecer. Inventar nomes, tal tarefa nos levaria a uma guerra babélica de nomenclaturas. Os mortos e feridos seriam incontáveis (o cinema dever ser sempre contra a guerra). Já não podemos desconsiderar que o documentário não deve ser entendido como o registro “verité” de uma determinada realidade, uma “cópia do real” – a velha história de Platão nos assustando novamente. O documentário como verdade não me interessa. Leminski dizia mais ou menos assim: “Fiquem com essa realidade baixo astral em que tudo entra pelo cano. Eu fico com o sonho, eu fico com o cinema americano”.

Sabemos que Lula, em Entreatos, de João Moreira Salles, encena o próprio personagem durante grande parte do filme. Porém, nem tudo é também ficção. Em várias passagens não é o personagem que vemos no filme. O fato serviria para nos mostrar que o documentário é sempre menos do que pensamos e mais do que imaginamos. Encerra uma verdade que não é mais que a sua própria realidade, a cena de um documentário se olhando no espelho, penteando os cabelos e passando maquiagem. O que estou querendo dizer é que grande parte dos bons documentários brasileiros atuais (Entreatos, Santiago, de João Moreira Salles; Jogo de Cena, O fim e o princípio, Os peões, de Eduardo Coutinho; Estamira, de Marcos Prado) vêm se situando no limiar entre a ficção e o documentário, e parecem fazer isso muito bem. Por isso, e não acho que seja ruim, essa “coisa” intermediária, que poderíamos chamar de cine-documentário, vem chamando a minha atenção muito mais do que qualquer outro tipo de cinema produzido atualmente. Imagino que daqui alguns anos as pessoas olhem para nossa década como um momento especial do documentário no cinema brasileiro.

Já escrevi há algum tempo sobre Santiago, mas não escrevi nada sobre Estamira, cujo impacto me foi estrondoso. Ainda não me senti preparado para escrever nada de Estamira. Talvez só consiga fazê-lo depois de muito meditar sobre personagens como Bispo do Rosário e Gentileza. Tanto Estamira quanto Santiago fazer parte daquilo que é maior que o próprio cinema. Desconfio, mas talvez esteja errado, que qualquer cineasta conseguiria me chamar a atenção se documentasse essas duas personagens. O mordomo Santiago, por exemplo, poderia figurar como um mago portenho em algum conto perdido de Jorge Luis Borges – mas, no cinema, com candura e profissionalismo somente João conseguiria filmá-lo . É que para ele Santiago era mais que um personagem, mais que um filme, era o próprio emblema de um fracasso. Mas estou dizendo tudo isso apenas para chegar a um ponto: Santiago e Estamira, para mim, são mais literatura que cinema. Não sei explicar. Talvez os argumentos iniciais possam esclarecer algo. São filmes que estão em um limiar. Já não podem ser entendidos a partir das considerações clássicas de um documentário, ou das colocações há muito consignadas sobre a narrativa cinematográfica. Esse é um traço interessante que vem caracterizando a produção contemporânea desse tipo de cinema, a falta de um lugar, a desterriotorialização, diria-nos Deleuze.

Por mais à vontade que o cineasta deixe o seu entrevistado, é sempre um artifício que pula da tela e nos faz cócegas na ponta da orelha. Lembro de uma passagem de O fim e o princípio, do Eduardo Coutinho. Ele vai até a casa de um dos moradores daquele pequena localidade do Nordeste – como ele chegou até a cidade e o que o levou até lá só o acaso o sabe – e encontra uma espécie de Dom Casmurro do sertão. O homem que ao mesmo tempo atrai o olhar de Coutinho pela sua extrema sisudez é aquele que esbanja um grande senso de humor e um mistério que nos faz pensar: “Talvez esteja só brincando com o cineasta! Talvez seja assim mesmo, um louco!” Em ambos os casos, um ator. Um ator e personagem ao mesmo tempo. Um ator e personagem que, provavelmente, nunca foi ao cinema. Quem no cinema de ficção consegue ser ator e personagem ao mesmo tempo? Já paraste pra pensar nisso?

c. moreira

domingo, 4 de janeiro de 2009

REENCONTRANDO O TEMPO DESPERDIÇADO

Todos nós temos as nossas Madeleines. O cidadão Kane, por exemplo, viveu toda a sua vida agarrado à lembrança daquele trenó, Rosebud. O narrador de Em busca do tempo perdido degustou com paixão aquele biscoitinho misterioso. Só nós sabemos o que esses objetos particulares podem significar. Possuem uma aura cujo valor não se pode medir. A memória é acima de tudo um produto de nossa imaginação. Não quero fantasiar os fatos, só quero admitir que sou o próprio artista de minhas lembranças. Como dizia Waly Salomão, “a memória é uma ilha de edição”. Talvez Waly estivesse apenas acendendo uma vela para Henri Bergson, no entanto a frase é perfeitamente exata na sua mais complexa inexatidão.

Eu mesmo guardo com carinho uma Madeleine, mas a minha não é comestível. É uma arma. Quando criança, ganhei um canivete de meu avô. Durante muito tempo pensei tê-lo perdido. Não o meu avô, mas o canivete. E quando perdi meu avô, foi graças a esse pequeno instrumento cortante (a memória opera por corte e repetição – uma ilha de edição, já disse!) que pude reencontrá-lo. Como você pode perceber, também perdi meu avô, mas isso foi depois do canivete, o que é uma pena porque se tivesse perdido apenas o canivete teria ainda a presença de meu avô como consolo. Reencontrei a infância por meio desse instrumento querido assim como Proust reencontrou o tempo degustando a madeleine. Somos algozes e vítimas do próprio passado.

O caso de Quase memória, de Carlos Heitor Cony, não é muito diferente. Segundo as palavras de Ruy Castro, com Quase Memória Cony escreveu o seu Amarcord particular. Amarcord quer dizer, em um dos dialetos do interior da Itália, EU ME RECORDO. O romance do Cony bem poderia ter sido filmado por Fellini, claro. Numa das cenas mais típicas do filme, uma família italiana briga homericamente durante um almoço. Os gritos do pai poderiam fazer acordar a lembrança de qualquer membro de uma legítima família italiana. Quem faz parte de uma entende o que estou falando. Mas não é apenas pelo lembrar que Quase Memória, do Cony, e Amarcord, do Fellini, se aproximam. Em ambos, há certa doçura nesse gesto de ricordare – como se dissessem: “Que venha o passado, fonte da mais misteriosa matéria-memória, mas que seja, sobretudo, agora”. Talvez fosse melhor dizer que nas duas obras o que ocorre não é um reencontro com o tempo perdido, mas sim um encontro. As duas coisas têm um sabor bastante diferente, mesmo que o reencontro não seja mera repetição.

O narrador de Quase memória observa que o seu tempo não era um tempo perdido, mas sim desperdiçado. Mas não podemos desconsiderar que tanto a obra de Proust quanto o relato de Cony são tecidos por um objeto muito sutil da memória: a Madeleine em um, o embrulho do pai em outro. Tudo começa quando o narrador recebe um embrulho sem remetente. Ele desconfia imediatamente que se trata de uma correspondência enviada pelo pai: “Era a letra de meu pai. A letra e o modo. Tudo no embrulho o revelava, inteiro, total. Só ele faria aquelas dobras no papel (...)”. A partir da dobra, Cony vai desdobrando o passado, tocado por um olhar do presente, tecendo outros agoras, outras dobras, outros nós: “E havia sobretudo o nó. Depois de tanto contemplá-lo à distância, com receio de tocá-lo, dele me aproximei não mais para lhe sentir o cheiro – ou os cheiros – mas para admirar o nó perfeito, justo, obra de arte de que só o pai era capaz”. A vida como obra.

É como se o narrador, à maneira de Proust, mordesse o embrulho-madeleine e pudesse então reescrever a sua própria história. Um naco do passado lhe chega sem compostura a tocar-lhe a memória, escavada agora por um exímio jornalista-escritor. Um detalhe curioso: “Estávamos em novembro de 1995. E o pai morrera, aos noventa e um anos, no dia 14 de janeiro de 1985”. Cony parece concordar apenas em parte com Waly, já que se dá por pago ao circunscrever a memória a seus limites. Diferente do pai, uma figura que fazia do imaginário uma carruagem de aventuras, e dos pequenos acontecimentos do cotidiano grandes feitos heróicos, o narrador confessa ter perdido essa capacidade de alterar o sentido, o eixo da memória: “O máximo que consigo é segregá-la”. Assim, obedece ao território traçado, chegando a conviver pacificamente com ela, a memória. Poderíamos arriscar dizer que o embrulho nada mais é que a própria MEMÓRIA. Para saber não é preciso chegar ao final do livro. Não quero entregar troféus ao leitor que ainda não se deparou com a narrativa de Cony, muitas vezes ainda obliterado dos estudos acadêmicos, por isso não revelo o final. Há alguns dias, estava pensando nos personagens que são maiores que a própria literatura, como Quixote e Macunaíma. Todos nós temos um em nossa família. No cinema, figura semelhante ao pai do narrador de Quase Memória pode ser conhecida na diviníssima interpretação de Dani De Vito, em Peixe Grande, um grande contador de estórias, bem como Tom Hanks, em Forrest Gump.

c.moreira