quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Vinícius de Moraes e a Rosa Desfolhada

Reza a lenda que, certa vez, estando Vinícius de Moraes, Gessy Gesse (sua esposa de então), e Toquinho, em Roma, na casa de Sérgio Bardotti, nasceu a canção "Rosa Desfolhada". Em certo momento, Gessy entrou na sala onde estavam Vinícius e seus amigos a conversarem e começou a imitar uma dança espanhola, com direito a castanholas. Toquinho empunhou o violão e improvisou uns acordes. E Vinícius já foi inventando o primeiro verso: "tento compor / o nosso amor (...)".

Catarina
Olhos de candura
Flor de formosura
Nuvem de neném
Pele de pelúcia
Linda que me lua
E sol e céu e mar também
c.moreira

Brasil

Meu Brasil é o Brasil de Leci Brandão, de José Datrino, vulgo Gentileza, de A.B. do Rosário, de Pixinguinha e Noel, Milton Santos, tia Ciata. Meu Brasil é o Brasil dos pobres e miseráveis, de Santa Cruz do Piauí, onde conheci o forró e a cajuína, do pinhão do Paraná, de Riobaldo e Diadorim. Meu Brasil é o Brasil de Pedro Archanjo, do fandango, do pandeiro, da embolada, do catimbó, saravá! Dos novos baianos e dos velhos marinheiros. Meu Brasil é das mandingas e encruzas, Saci e padre Ciço, Sururu ou Vatapá, dos encantados, de Jamelão ou Carcará. Na minha reza de amém-jesus-maria-e-josé, contra quebrantos e inveja, sou mangueira e portela, menino da porteira, a Deus dará... não me venham, generais, com a história de indolência negra ou indígena, que, como Vinícius, sou o branco mais preto dessas cercanias... quem é homem de bem não trai o amor que lhe quer!

sábado, 22 de setembro de 2018

Contradições de uma democracia nova, ou Bloco de notas para uma política que vem






(Em 1967, o cineasta Joaquim Pedro de Andrade realizou o filme “Contradições de uma Cidade Nova”, para atender a uma encomenda da Olivetti. O documentário começa com uma apresentação da bela cidade de Brasília, com suas superquadras e edificações suntuosas e modernistas, para logo depois retratar as contradições desse progresso projetado, enfocando operários e imigrantes vivendo na periferia da Capital Nacional em condições de grande penúria. O filme foi rejeitado pela empresa para não constranger o governo militar. Salvou-se uma cópia da obra e, assim, ela sobreviveu. Dessa película, inspiro-me para o título do texto: “Contradições de uma democracia nova”).
Em tempos sombrios do presente, cabe-nos perguntar se a democracia é um bem que ainda estamos lutando para conquistar ou se é uma conquista que corremos o risco de perder antes mesmo de sua solidificação. Em lembranças remotas da minha infância, vejo-me deitado no chão da sala assistindo às exéquias do senhor Tancredo Neves. Pela TV, a multidão, com lágrimas fúnebres, parecia dividida entre o entusiasmo da redemocratização e o luto pela perda de um de seus baluartes. A democracia renascia a partir do luto e da luta, do sentimento de perda e da esperança de novos tempos, tempos de Henfil, Ulysses Guimarães, Fafá de Belém, pomba branca e tantos mais. Tempos das Diretas Já. Hoje, depois de apenas 30 anos de redemocratização, surpreende-me a quantidade de cidadãos defendendo um Estado de Exceção, aquela realidade obscura que só no século XX gerou no Brasil duas grandes ditaduras, a de Getúlio Vargas e a Militar de 64. Estamos vivendo em um estado de excepcionalidades que, além de enfraquecer a democracia, estimula uma desorientação coletiva que, por sua vez, desencadeia uma despolitização assustadora. Condena-se nas mídias antes de se condenar no tribunal, usa-se da liberdade democrática do direito de livre expressão para condenar o direito de expressão do outro. Agride-se dentro e fora da Rede Social. Legitima-se a violência com mais violência. Fecham-se os olhos para os índios, como se fossem eles os invasores da terra. Diminui-se toda e qualquer minoria. Elogia-se a falta de cultura como instrumento para uma boa governabilidade. Olvida-se dos Direitos Humanos. Diminui-se a figura da mulher e exalta-se a guerra, como fez Marinetti no “Manifesto Futurista” (fascista por excelência), em 1909: “Nós queremos glorificar a guerra – única higiene do mundo – o militarismo, o patriotismo, o gesto destrutor das anarquias, as belas ideias que matam, e o menosprezo à mulher”. Que atual!





Em um texto destinado a pensar a política, o filósofo italiano Giorgio Agamben observa que o termo “democracia” é falseado por uma ambiguidade que condena ao mal-entendido os que o empregam. O autor pergunta sobre o que falamos quando falamos de democracia? De uma forma de constituição do corpo político ou de uma técnica de governo? O termo, segundo ele, remete tanto à conceitualidade do direito público quanto à prática administrativa. Para Agamben, no discurso político contemporâneo, o termo se refere quase sempre a uma técnica de governo. As raízes dessa dualidade jurídico-política e econômico-administrativa se encontram na própria história de nossa cultura ocidental. O filósofo pergunta ainda se não seria essa ambiguidade uma ficção, “destinada a dissimular o fato de que o centro de uma máquina é vazio, de que não há, entre os dois elementos e as duas racionalidades, nenhuma articulação possível, e de que é dessa desarticulação, justamente, que se trata de fazer emergir esse ingovernável, que é ao mesmo tempo a fonte e o ponto de fuga de toda política”. Agamben encerra o texto dizendo que enquanto o pensamento não resolver esse nó, “qualquer discussão a respeito de democracia – como forma de constituição e como técnica de governo – corre o risco de cair no palavrório”. Uma não pode existir sem a outra, assim como qualquer ideia de liberdade e conquistas (para não falar em progresso, essa palavra tão famigerada) só pode existir de fato dentro de um Estado de Direito, de uma Democracia, e não em um Estado de Exceção, este que vem sendo elogiado, sem qualquer constrangimento, por alguns candidatos.

Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR), em 22 de setembro de 2018.

segunda-feira, 10 de setembro de 2018

A arquitetura literária de Gonçalo M. Tavares: por uma poética do movimento




Poderíamos pensar a obra de Gonçalo M. Tavares como uma espécie de estrutura desmontável que convida o leitor, em cada lance de leitura, a armar novas disposições do olhar, imaginando múltiplas possibilidades de sentido para seus textos, como um puzzle imaginário que outra vez montado oferece àquele que o mira um novo desenho. Diante desse quebra-cabeça, o leitor poderá facilmente concluir que sua literatura se constrói a partir de uma arquitetura do movimento. Essa obra pensada como projeto para uma poética do movimento aparece com força na publicação “Breves Notas”, lançada em 2010 pela Editora da UFSC e pela Editora da Casa. Trata-se de uma bela caixa composta por três livros: “Breves Notas Sobre Ciência”, “Breves Notas Sobre o Medo”, e “Breves Notas Sobre as Ligações”.


A ideia do escritor angolano-português Gonçalo M. Tavares nessas “Breves Notas”, segundo Júlia Studart, é tomar a literatura como um “corpo que dança livre”, ou seja, como um “corpo-bailarino, aquilo que sai do comum para provocar desequilíbrio”. Trata-se, como o título sugere, de breves notas que vão se acumulando pelos livros e cujo conjunto vai desenhando, na sua vocação para a poesia e para o ensaio, uma espécie de enciclopédia poética e filosófica. Aliás, a ideia de enciclopédia parece percorrer a obra do autor, cujo procedimento, quase sempre, é o de agrupar suas publicações em séries oriundas dos diálogos entre seus livros. É o caso não só da coleção “Breves Notas”, mas também de outras séries como a de “O Bairro”, esta composta por aproximadamente dez obras, cada uma interessada em dialogar com um autor específico, como Eliot, Brecht, Calvino, entre outros. 


A coleção das “Breves Notas” faz lembrar do “Livro do desassossego”, de Fernando Pessoa, publicado com o seu semi-heterônimo Bernardo Soares. Ambas as obras parecem ter brotado do devaneio e de um filosofar inquieto capaz de traduzir a experiência da vida moderna em um trabalho intelectual que se apropria do ensaio como forma literária e da montagem como procedimento. 
Gonçalo M. Tavares abre suas “Breves Notas sobre a Ciência” com o seguinte fragmento: “Claro que o Perigo é a origem dos métodos científicos mais eficazes. Se o Homem fosse imortal ainda não teria inventado a roda (poderias dizer)”. Em outro momento ele escreve: “Debruçai-vos sobre o futuro: no limite só os pés permanecem sobre o solo, a cabeça foge para a frente. Investigar sem desequilíbrio é avançar em cima de lama: alguém se afunda”. O elogio do perigo e do desequilíbrio revela uma assimilação da liberdade que pode ser encontrada, por exemplo, na filosofia de Nietzsche, traduzida pelo desejo de um espírito livre que dança na corda bamba à beira do abismo.


Para Gonçalo M. Tavares, escrever parece ser uma atividade que exige uma coragem do pensamento em burlar paradigmas, pensando, tal qual Walter Benjamin, no método como desvio: “Método como aquilo que se faz depois de se ter tropeçado; ou: o movimento não planeado, espontâneo; para não cair depois de um desequilíbrio. (...) O escritor está a fazer o que ainda não foi feito. O leitor pode pousar o livro, a frase não foge; o escritor odeia o acto de pousar, porque pousar é não fazer, e não fazer o que ainda não foi feito é um erro. Não fazer é o maior pecado”. É talvez por isso que em outra nota ele observa que nada é tão perigoso como “teres cumprido todos os teus afazeres do dia e ainda ser manhã, teres cumprido todos os teus deveres na vida e ainda não estares morto”. Nesse sentido, o olhar do autor, voltado para uma poética do movimento, não para no ponto de chegada, pelo contrário, se delicia com o passeio, com o caminho, como todo bom ensaísta faz. No fragmento em que anota sobre seu aniversário de trinta e cinco anos, o autor conclui que depois da infância, ao invés de esgotar seus desejos caçando todos os gêneros de felicidade – o que inevitavelmente deixará uma grande sensação de vazio -, prefere permanecer perdido na floresta. É uma forma de não esgotar seu desejo, afinal de contas, é sempre o desejo que nos move para a vida. A permanente existência dele prova que continuamos vivos.


Em sua teoria poética sobre a ciência, Gonçalo Tavares parece apontar para o fato de que onde a ciência falha a poesia encanta, ou mesmo para a ideia de que a ciência é o nome de uma daquelas ficções que inventamos para tornar a nossa vida mais feliz. Nesse jogo, o olhar distraído, ou seja poético, é o olhar que capta o mais importante: “Só quem não se encontra apaixonado por A pode ver que, ao lado de A, se encontra B. E B pode ser mais belo, mais verdadeiro; pode fazer-te mais feliz”. Nesse sentido, a poesia é entendida como uma forma de ciência, ou melhor, de uma ciência individual. E pensar pode ser uma forma de felicidade: “Só quem é alegre arrisca. A tristeza é anticientífica”. Poderíamos arriscar dizer que, em suas Notas, Tavares traça uma ciência poética ou mesmo uma poesia científica, embaralhando os sentidos tradicionais dessa mistura.


Se pensamos no conjunto das Notas como uma espécie de enciclopédia é também porque sua leitura ideal se dará apenas na releitura, ou melhor, na consulta permanente de seus verbetes. No folhear de suas páginas poderemos nos deparar com uma pérola como esta: “As coisas estão repletas de nossos sentimentos. Olhar para uma coisa é tirar desta as sensações que nos pertencem e que ela havia guardado (raptado?) durante anos ou minutos. Olhar para as coisas é recuperar nelas o que era nosso”.

Publicado originalmente em 01 de setembro de 2018, no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR).

domingo, 9 de setembro de 2018

Poema em chamas para o Museu Nacional



Uma reforma no museu não recuperará o afresco de Pompéia, 
O trono de Adandozan, rei do Daomé, ou seu par de sandálias talhado em madeira, 
Nunca mais os cachimbos, conchas, corais, besouros, borboletas, bengalas, múmias 
ancestrais, artefatos etruscos, objetos em desuso que nem sonhava Cabral, 
todos os cacos de um mundo que ainda existia e que agora, contudo, são memórias de um
Brasil do futuro que vai ficando cada vez mais para trás, 
A cabeça de Luzia, outra vez extinta (agora e para sempre), 
o megatério ou preguiça, gigante a encantar as crianças nessa casa imperial, o esquife de
Sha-amun-en-su, e outros sarcófagos há milhares luzindo ouro e seus egitos faraônicos, 
ou o meteorito, todos os tipos de esqueletos, libélulas fossilizadas, cujo voo se misturou às
labaredas da Quinta da Boa Vista, 
variados fragmentos de um mundo de outrora, coisas de dona Teresa Cristina ou de dona
Leopoldina, plumária dos povos indígenas, pedaços de outros impérios, ecos incas ou
tikunas, seus milagres de pervivência, sua teimosia em restar, 
são milênios misturados em cinzas, sábio signo agora incinerado e destinado tragicamente
a se apagar. 
Por quanto tempo a natureza guardou o Maxakalisaurus topai?
O presidente dinossáurico em jornal declarou: "Foram perdidos duzentos anos de trabalho,
pesquisa e conhecimento". Digo: perdidos foram milênios. Eras foram queimadas. Uma
reforma no museu nada disso salvará. Uma reforma no país o Brasil salvará? 
Onde a verba para pesquisa? Onde o pataco do patrimônio, onde a cota da CAPES, onde a
água pra tanto fogo apagar? 
Trágico esse sinistro final! quantos milênios serão necessários para reconstruir o Museu
Nacional?
c.moreira