quinta-feira, 26 de março de 2020

A identidade de Sofonias Thabor: o relato de uma aventura e o fim de um mistério



(Foto: cortesia Fahena Porto Horbatiuk)


Hino ao Paraná

“Bendizei a nossa Terra
Onde Deus conosco está!
Verde é o mar, azul a serra
Auri-róseo é o chão de lá

Sacra Terra do pinheiro
Lindo e rico Paraná!
Não há igual, no mundo inteiro
Terra assim, não há, não há!

Quanta vez descendo a serra,
Mais encantos descobri.
Quanto amor tenho eu à Terra,
Onde a luz primeira vi!

Beija o Rio, do teu vestido
Toda a fímbria festonada.
O viver só tem sentido,
Em função da Terra amada.

Se, depois da morte, há vida
De minha alma e coração,
Lá estarei, Terra querida,
Bem pertinho do sertão!
(Sofonias Thabor)


Há alguns anos, a professora e amiga Fahena Porto Horbatiuk, publicou um artigo no jornal Caiçara (edição de 29/06/2012), apresentando o livro de poesia "Lira dos Pinheirais", cujo autor assinava com o pseudônimo Sofonias Thabor. A edição viera à lume pela extinta Gráfica Iguaçu, de Porto União. A obra não trazia qualquer outra indicação de autoria e fora publicada sem data. Depois de elogiar os poemas, encontrando neles um ethos bem-humorado, a dicção modernista, e por vezes a forma sertaneja numa louvação ao Paraná, a articulista encerra a sua crônica com as seguintes frases: “Quem souber qual é o nome do autor, possuir alguma dica, peço que nos indique, para que seja mais bem estudado. É um grande escritor”.
Movido pela curiosidade inerente a todo pesquisador, iniciei na época uma investigação para tentar descobrir o ortônimo do ilustre autor desconhecido. Naquele período, coordenava na Unespar um projeto de literatura regional que trabalhava no resgate de autores locais. Qualquer descoberta seria bem-vinda.
O dileto amigo Odilon Muncinelli, em sua coluna “Milho no Monjolo”, no jornal O Comércio, em 2012, comentou o artigo da professora Fahena, aumentando o rol de interessados na identidade de Sofonias Thabor. Passei com Odilon algumas tardes agradáveis conversando sobre o livro e criando hipóteses sobre a autoria. A partir daí iniciou-se a jornada de uma busca intensa. Relatarei aqui brevemente a aventura.
Comecei perguntando para os amigos interessados em literatura na região do Vale do Iguaçu se alguém possuía alguma informação sobre o livro. Nada consegui. Pesquisei na internet para ver se achava alguma ocorrência com o nome Sofonias Thabor. Nada. Folheei antologias de literatura paranaense e catarinense. De igual maneira, nenhum progresso. Procurei sem êxito familiares dos proprietários da Gráfica Iguaçu. E já estava desistindo da busca quando, por acaso, em uma visita à Biblioteca Pública do Paraná, em Curitiba, ainda em 2012, encontrei lá uma edição do livro. Decidi perguntar por ele. Descobri no arquivo da biblioteca que a publicação fora ali depositada com um registro em nome de José Antônio Telles, nascido em 1911 e falecido em 1976. Supus que o livro fora doado ao acervo por alguém que tinha conhecimento do nome do poeta, ou quem sabe até pelo próprio autor. Fantasiei que talvez o escritor resolvera deixar uma pista para um possível pesquisador do futuro, alguém interessado em seguir seus rastros. Sendo ou não o autor do livro, o nome de José Antônio Telles já era uma pista.
Chegando à União da Vitória, comecei a procurar pela família Telles. Para minha surpresa, existiam várias. Fui, então, entrando em contato com cada uma delas, perguntando por José Antônio. Nada. Ninguém o conhecia. Até que um dia fiquei sabendo que o pai de um comerciante local se chamava José Antônio Telles. Dirigi-me inquieto ao estabelecimento julgando ter encontrado a identidade de Sofonias Thabor. Para o meu desencanto, o filho de José Antônio me informou que o livro não fora escrito por seu pai. O patriarca da família nem escrevia poemas. Uma pena. Cheguei naqueles dias a enfrentar uma fila no atendimento da Previdência Social para ver se encontrava mais alguma pista. Nenhuma. Quantos Josés Antônios Telles nesse país?
Alguém me assoprou, então, para ir ao cemitério. Lá, talvez encontrasse alguma pista. Com o coveiro do Cemitério Municipal de União da Vitória, procurei nos livros de registro de corpos enterrados até encontrar uma ocorrência com o nome em questão, mas era justamente o pai do dono do estabelecimento comercial, opção já descartada. No Cemitério de Porto União, o coveiro com ótima memória não precisou do livro de registros e me levou até o túmulo de um outro José Antônio Telles. Encontrei um mausoléu simples, mas bem cuidado. A foto mostrava a aparência de um senhor humilde, com jeito de agricultor, ao lado de uma senhora magra, de nome Olga, que tinha o olhar triste e talvez fosse a musa do poeta. Quase certo de que encontrara o escritor, minha euforia só durou o tempo de comparar as datas de nascimento e morte dos dois Josés. Não coincidiam. Eu nem imaginava que o José enterrado ali - que na verdade nunca fora poeta -, seria o bisavô de minhas filhas, alguns anos depois. Elas, aliás, têm também o sobrenome Telles na certidão de nascimento. Só uma curiosidade: certa vez, minha esposa, que não sabia onde o avô estava enterrado - e muito menos de minha pesquisa -, foi levada por mim ao túmulo do vô José. Ficou surpresa que eu e não ela soubesse o lugar exato do sepultamento.
Naqueles dias de pesquisa, procurei muito em jornais locais antigos alguma pista sem sucesso algum. Cheguei a enviar mensagens em rede social a pessoas de União da Vitória e Porto União que possuíam o sobrenome. Ninguém conhecia nenhum José Antônio. Foi nessa época que conheci minha esposa, neta de um deles. O vô dela não escrevia poemas, mas plantava verduras, o que não deixa de ser poético.  
Admiti o fracasso e desisti de outras buscas. Pensei que era uma artimanha do destino esse mistério. A literatura para mim, aliás, tem muito dessas coisas que não se explicam, pistas que levam a lugar nenhum. Aceitei a aporia e deixei o poeta pra lá. Talvez Sofonias Thabor desejasse permanecer no anonimato, ou o momento da revelação ainda não havia chegado. Isso tudo foi há quase dez anos. O José Antônio passou a ser apenas o avô da Géssica, o bisavô da Catarina e da Aurora.
Há alguns dias, lendo o prólogo do livro “Atlas”, de Jorge Luis Borges, encontrei a seguinte frase: "Não há um único homem que não seja um descobridor". Um faísca se acendeu em mim. Não sei o motivo, mas relembrei da "Lira dos Pinheirais", de Sofonias Thabor, e da minha busca perdida por uma identidade velada.
Em tempos de clausura, de quarentena, devido à pandemia de coronavírus, e obrigado a permanecer em casa, resolvi lançar um pedido ao astral, como aqueles escritos em papeis que depois de queimados têm suas cinzas e fumaça levados ao céu. Se Sofonias permitisse o fim do mistério, que me ajudasse a solucioná-lo. Procurando na internet por algumas ocorrências com os vocábulos José Antônio Telles, descobri que na cidade de Castro há uma escola com esse nome, acrescido de mais um vocábulo: Flygare. “José Antônio Flygare Telles”. Descobri também que a data de nascimento e morte do patrono do Colégio eram as mesmas do José registrado no arquivo da Biblioteca Pública do Paraná, a saber 1911-1976. A busca incansável recomeçou. Um trabalho de pesquisa por vezes tem uma boa dose de obsessão. Borges esqueceu de dizer na frase que o descobridor é quase sempre um obcecado. Uma pista leva a outra e vamos tentando decifrar o mundo, como quem navega num hipertexto.
Tentei entrar em contato com a Escola apadrinhada por José Antônio. Sem sucesso. Recesso escolar e ausência de resposta por parte do diretor. Mapeei uma busca virtual pela família Telles, de Castro. E fui entrando em contato com nomes que encontrava. A maioria nada sabia da existência de José Antônio. O senhor Álvaro Telles, por exemplo, sugeriu que eu procurasse uma historiadora da cidade, a Amelia Podolan. Muito solícita e simpática, ela me informou que não conhecia o livro. Tentando me ajudar, descobriu que o José Antônio teria sido casado com uma mulher de sobrenome Gomes, uma família muito antiga que viveu numa região também antiga de Castro. A Amelia me lembrou também que Sofonias é o nome de um profeta bíblico cuja tradução significa “Javé esconde”. Comecei a desconfiar que o José Antônio Flygare Telles poderia ser Sofonias Thabor. E além de tudo, ele estaria pregando uma peça em nós: “Javé esconde”. Eu já estava me sentido o personagem de uma narrativa de Sherlock Holmes ou Dan Brown.  
Paralelamente à conversa com a historiadora Amelia Podolan, conheci, por meio do Facebook, o senhor Antenor Quintiliano Telles, que era sobrinho-neto de José Antônio. Ele se comprometeu a me ajudar e depois de consultar seu pai, me informou que o tio-avô fora de fato poeta. Ele tentaria descobrir se o livro “Lira dos Pinheirais” teria sido escrito por José. Estávamos, talvez, chegando lá. Hoje, acordei com uma mensagem de Antenor contando que recebera de um primo a confirmação da autoria do livro. O ciclo se fechara. José Antônio Flygare Telles era o Sofonias Thabor. Antenor me passou o telefone de dona Yedda, filha do autor. Numa longa e agradável conversa, no início da tarde de hoje, dona Yedda Elvina Telles Bueno me contou que o pai usara o pseudônimo por ser um homem simples, num ato de pura timidez (Mais tarde, Antenor Telles me enviou uma informação importante: Tabor é uma comunidade de Castro, no Distrito de Socavão, onde se encontrava a Fazenda Esperança, que pertencia ao pai do poeta. Até hoje a comunidade leva esse nome). O escritor era natural de Castro, sendo um dos filhos mais jovens de Francisco Telles e Josephina Flygare. O nome José Antônio fora dado a ele em homenagem ao avô, que era um índio guarani. Pelo telefone, fiquei sabendo que o poeta, com aproximadamente onze anos, foi morar na Alemanha, onde estudou música, vindo a se transformar num exímio compositor paranaense. A dona Yedda chegou a publicar uma obra com composições musicais para piano e violino compostas pelo pai. José Antônio além de compositor e poeta foi professor de Língua Portuguesa, de Química e de Música. Era um apaixonado por Literatura. A filha me informou ainda que sua tia Maria Emilia Telles Bauer morou um tempo em União da Vitória, e que teria sido ela a responsável pela publicação do livro. Imaginei que por ser de origem alemã, e tendo morado na Alemanha, Maria Emilia teria ficado amiga do proprietário da extinta gráfica Iguaçu, de Porto União, que era alemão. Questões de interesse étnico-cultural bem poderiam ter aproximado ambos.


Foto: Acervo Família Telles (cortesia Sr. Pedro Telles, sobrinho do poeta)
José Antônio está assinalado


José Antonio Telles com 62 anos
(Foto: Cortesia Yedda Elvina Telles Bueno)


Depois de desligar o telefone pensei na forma curiosa como o universo, por meio de muitas causas, vai atuando sobre nossa vida. O artigo da professora Fahena e as conversas com o seu Odilon me levaram até Sofonias Thabor. Sofonias, por sua vez, me levou até José Antônio. José Antônio me levou a muitos Josés, um deles o avô de minha esposa. Sem essa busca talvez meu destino de família fosse outro. Um outro José Antônio é o poeta e músico Flygare Telles. Esse que hoje se reconhece publicamente aqui. O Sofonias Thabor. Thabor, aliás, é o nome de uma alta colina da Galileia, onde teria ocorrido a transfiguração de Jesus Cristo, sendo por isso considerado um lugar santo e místico, “Har Tavor”, o Monte da Transfiguração. Transfigurar-se, figurar-se em outro, apresentar-se por meio de um pseudônimo, para um dia elevar-se - quem sabe no fim de um suposto mistério -, no dia da revelação. No livro de Sofonias, na Bíblia, aparecem com força as imagens de uma canção da alegria, ou seja de uma música. Sofonias, aliás, parece-me agora obviamente um nome muito musical. O maestro escolheu bem seu pseudônimo. Estava na cara e eu não percebi. Do livro pulam alguns versos de “Saudades do Paraná” (Toada Sertaneja) e Sofonias/José volta a cantar: “Então, adeus, ó minha gente! / Vou pro mato me mudá: / Meu coração só está contente, / No sertão do Paraná”.

Caio Ricardo Bona Moreira,
Professor de Literatura Brasileira na Unespar, campus de União da Vitória



domingo, 15 de março de 2020

A carta-dança-música-poesia de Mariana Mello: apontamentos sobre Anamnese Erótica






Uma carta deseja sempre encontrar seu destinatário. Quem escreve a missiva geralmente está à procura de um outro para conversar. As palavras precisam cumprir um destino, por isso desejam chegar a algum lugar, mesmo que seja dentro daqueles que as escreveram. Ao mesmo tempo, toda carta é monólogo, conversa com o vazio, embora a resposta talvez um dia chegue. Aliás, como escreveu Roland Barthes, em um de seus “Fragmentos de um Discurso Amoroso”, “como desejo, a carta de amor espera uma resposta”. Nesse sentido, sugeriu o francês, a carta é “ao mesmo tempo vazia (codificada) e expressiva (carregada de vontade de significar o desejo)”. Só quem ama escreve, mesmo que seja para não falar de amor. Só quem deseja pode escrever uma carta de amor.
Mesmo não se caracterizando como uma série de correspondências – o livro quase nada tem a ver com o gênero epistolar -, é como carta, ou melhor, como um conjunto delas, que leio a escrita dançante de Mariana Mello. São textos que viajam até o leitor, entregando-se ao olhar curioso de quem abre o envelope para espiar intimidades. A artista curitibana, que se apresenta como um híbrido de bailarina, diretora cênica, performer, dramaturga e escritora, recentemente lançou o livro “Anamnese Erótica” (2019), pela editora Medusa (a capa da Eliana Borges é linda). Não à toa, seus fragmentos se apresentam como um prelúdio, ou seja, como algo que vem antes de algo, como uma introdução a uma obra que se desenvolverá depois. Toda a performance do livro se dá nesse prólogo. Aliás, o prelúdio é um gênero musical bastante comum em balés, o que parece justificar a rica e plural arte de Mariana Mello, a escrita de seu bailado, a dança de suas palavras em um constante e bem ensaiado movimento poético. Faz sentido que Barthes, em “O Prazer do Texto”, tenha escrito que um livro erótico representa menos a cena do que sua expectativa, sua preparação. Um prelúdio é perfeito sob esse aspecto.


A escritura de Mariana – evocando em mim, por vezes, a literatura da portuguesa Matilde Campilho e da brasileira Ana Cristina Cesar - faz lembrar que, na arte da palavra, antes de qualquer coisa é a própria língua que deseja. Essa parte de nós cuja sensibilidade se inscreve com mais intensidade no ser. Não esquecer que a língua da boca, rica em terminações nervosas, é lugar de prazer, de onde saem as palavras e beijos, ambos objetos de excitação. Tal qual o lóbulo da orelha, mamilos, nuca, coxas, dedos e sexo, a língua é coisa para ser sentida. Na literatura, é ela o mais sincero e primevo objeto do desejo amoroso. Não seria fortuito observar que na narrativa de Mariana Mello a língua e suas palavras aparecem sempre relacionadas ao erotismo, dobrando-se numa perpétua coreografia que afirma o desejo em cada um de seus gestos: “Inventava uma língua ainda mais estranha, afirmava sutilmente, insinuava palavras secretas, provocava sins e concordâncias. Estruturava frases infinitas para que ele não pudesse deixar de olhá-los, como se meus lábios fossem a única coisa existente nessa galáxia, como se todo o universo dependesse daquilo que meus lábios diziam e de como meus lábios se moviam para fazer o mundo dizer”. A língua, assim, é a nossa própria existência. Por ela, alimentamo-nos também. Na prosa poética de Mariana, ao insistir no uso de “titânicas e precárias palavras”, aquela que escreve descobre uma forma de existir, resistir e inventar o amor.




Uma anamnese, na acepção médica, alude à consulta inicial que um profissional da saúde faz com o paciente para diagnosticar uma doença, sendo dessa maneira uma conversa em busca da cura. No mundo de vertigem da narradora de Mariana Mello, o corpo parece por vezes padecer de uma doença alimentada pelo desejo, seu phármakon. Não olvidar que essa expressão grega alude, ao mesmo tempo, a remédio e veneno, como todo medicamento em algum sentido o é. O desejo que oprime e angustia é o mesmo que dá vida, alimenta e faz um corpo se mover em seu existir. Numa espécie de doença a narradora anota que as células mortas de seu corpo são frutos de “milhares de amores abortados”.
No âmbito filosófico, o termo anamnese alude ao processo de rememoração por meio do qual o ser redescobre dentro de si as verdades de um mundo das ideias guardadas no ente para além da experiência sensível. É por isso que a anamnese erótica de Mariana é um “tatear a memória”, um rememorar o que passou, um reelaborar o vivido por meio da escrita, um reencenar a peça de seu teatro amoroso, tentando promover a partir da experiência da perda, da falta, da ausência um encontro com ela mesma. Registre-se que a escritora, em 2018, publicou a peça teatral “Noche de navidad o la familia”, pela Punto Aparte, da Universidad Nacional de Colombia, em Bogotá, onde Mariana vive ensaiando possibilidades de hibridismo entre artes e linguagens. 


Naturalmente, falar sobre o desejo se dá inevitavelmente de forma insatisfatória, nada mais lhe restando além de ser o lugar de uma afirmação, como sugeriu Roland Barthes sobre o discurso amoroso. Eu desejo. Eu desejo o que não possuo. Por isso escrevo. Uma carta à procura de seu destinatário. Eu me movo nessa busca. Eu desejo nesse vazio. Eu me perco. Eu me encontro. Eu me perco de novo. Eu danço. A escrita de Marina assim observa: “Perpetuávamos um jogo que não agia apenas para concretizar o desejo senão porque encontrava na impossibilidade e no postergar do desejo uma chama vibrante e inesgotável. Uma chama capaz de sobreviver mesmo sem oxigênio por muitos dias seguidos, alimentada apenas pela promessa de concretização do desejo, ainda que num futuro improvável”.   
A narradora de Mariana Mello tem sempre a cidade como palco de seu teatro, de sua “sede sem fim”, de suas caminhadas ébrias. A cidade é também o lugar do outro: “Queria contar-te que sigo pensando nas ruas de teu bairro”. O desejo é também o de tocar a cidade, “a sensação do sol às 14h17 da tarde ao sair do cinema em frente ao cais”. O desejo pela cidade é também o desejo pelo outro, aquele que lhe falta. Um corpo à procura de outro. Entre eles, uma peça de roupa, um janela de vidro, um texto. São elementos que separam os corpos, no entanto se abrem para um contato em seu limiar, o cheiro do corpo do outro na roupa como um vestígio, o ser do outro no texto como um rastro, o botão da roupa como uma janela ou um envelope da carta que se abre em desejo para o corpo do outro. Lembremos que, para Barthes, em “O Prazer do Texto”, é a intermitência que é erótica: a pele que cintila, por exemplo, entre duas peças de roupa, ou ainda, a “encenação de um aparecimento-desaparecimento”. Ler sempre as páginas do livro para lembrar – em anamnese - que numa carta amorosa ou erótica o leitor é sempre o outro desejado. Chama que se acende pela palavra, esse corpo que deseja. E o outro, mesmo em falta, estando sempre ali. O outro mora sempre um pouco no nosso desejo. Inelutável vestígio. O livro foi escrito para cada um de nós.

Publicado originalmente no dia 14 de março de 2020, no Jornal Caiçara, de União da Vitória (PR).

link: http://www.jornalcaicara.com.br/colunas/a-carta-danca-musica-poesia-de-mariana-mello-apontamentos-sobre-anamnese-erotica/

quinta-feira, 12 de março de 2020

poema em dolly zoom sobre o filme de petra costa






vertigo
um corpo que cai
como num filme
da Paramount
dirigido por Hitchcock
em que estrelou
James Stewart
vertigem
em que pese
o medo de altura
a nos seguir
por toda parte
dando a falsa
(ou não)
sensação
de um movimento
de queda
ou rotação
desordem
(Josef K, eu sou o próprio)
em tempos de homens partidos
porvir
o saber,
quem é o povo
quem a democracia?
dos dois
quem o detetive
(que sofre um terrível
medo de altura)
quem a mulher louca
com tendências suicidas
quem é quem?
quem é?

c.moreira

Poema para Augusto de Campos (90 anos)




c.moreira

Descoberta




O meu Brasil
é o de Cabral
Não o de Pedro,
O luso Álvares,
Nem o de Vasco,
Em épico verso,
O nauta das Índias.
O meu Brasil
É o de Cabral,
Aquele de João,
Vulgo Severino,
Não o do velho do Restelo,
Mas o do torero sevillano
Com o mal de Homero
em seu destino.
Um Brasil de João
Tecido em tantas manhãs
Com seus fios e rios em discurso
Coisas de engenho ou engenheiro
Com alma de pedra,
Cérebro de poeta,
E coração nordestino

c.moreira