sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

Os figurantes, esses protagonistas: ou os escombros da experiência diaspórica em O crime do Cais do Valongo, de Eliana Alves Cruz

 






Acaba de sair na revista "África e Africanidades" meu artigo sobre o livro "O crime do cais do Valongo", de Eliana Alves Cruz, um romance forte e necessário sobre os escombros da experiência diaspórica dos negros no Brasil. O texto nasceu a partir da conferência de abertura do evento "História e Cultura Afro-brasileira em Sala de Aula", que proferi para o curso de História da Unespar, em 2022. Disponível em:

https://africaeafricanidades.com.br/documentos/ARTLIV10_ed.47-48.pdf

sábado, 2 de dezembro de 2023

Um álbum de linguaviagens: as crônicas-poemas de Dennis Radünz



"Esses hóspedes sem peso" (Editora Nave, 2023), de Dennis Radünz, é um livro que devolve sentido e graça a uma ideia literária muito recorrente - para não dizer quase gasta - traduzida na expressão "ler é uma viagem", ou na equivalente "escrever é uma forma singular de viajar". A obra é uma espécie inusitada de álbum de viagens, ao passo que poderia ser pensada como a viagem propriamente dita. Difícil imaginá-la sem as fotografias - quase todas elas tiradas pelo próprio autor - que acompanham a coletânea de textos. Aliás, tais imagens se constituem como crônicas-poético-visuais, cumprindo o papel de serem ao mesmo tempo "uma coisa alheia, mas inteirada", recorrendo aqui a uma expressão usada por Valêncio Xavier, quando falou do seu fascínio pelas fotografias de Luigi Crocenzi no romance Conversa na Sicília, de Elio Vittorini.



Penso que a expressão esteja ligada ao fato da fotografia estar e não estar diretamente relacionada com o sentido dos textos. Essa dimensão, do que é alheio e ao mesmo tempo inteirado, é responsável pela potência enigmática das imagens dialéticas que se disseminam a partir da relação entre fotografia e texto. O alemão W.G. Sebald desenvolveu procedimentos semelhantes em seus livros. Neles, as fotografias aparecem como estrangeiras e simultaneamente muito mais do que meramente ilustrativas.

A obra de Radünz reúne, além dessas imagens, uma série de prosas que são reviagens do autor a lugares de sua infância ou àqueles por onde ele passou um pouco antes da pandemia. As fotos que o cronista-poeta-fotógrafo catarinense fez desses 'locus" dão um toque especial ao volume.

Poderíamos pensar que autor e leitores são hóspedes do livro enquanto as crônicas são suas anfitriãs hospitaleiras. Flâneur andradino, perambulo feito um turista aprendiz em uma série de lembranças evocadas pelas memórias do escritor. Da minha e sua infância com os Beatles, com os blocos de madeira de montar (aqueles que vinham com torres de relógio e telhados), e nossa vocação para a construção de cidades em miniaturas, sinônimo da própria literatura - essa máquina de guardar o mundo nos livros ou de carregá-lo, feito um Atlas, nas costas -, vamos percebendo que ler e escrever são formas não só de buscar o perdido, mas também de remontar o passado e o presente criativamente.   

(Foto de Ayrton Cruz)

A experiência do confinamento pandêmico parece ter motivado sua escrita, ou pelo menos amplificado a potência de seus sentidos, afinal de contas viajar (pelo tempo e pelo espaço) é uma forma de reencontrar o mundo e as pessoas em um momento de clausura e luto. Na reviagem, a imaginação ressignifica as descobertas do turista que tem olhos e ouvidos dispostos a captar aquele "rés-do-chão" que um dia Antonio Candido observou como um elemento importante para fazer da crônica, como gênero, “uma inesperada embora discreta candidata à perfeição”.

Na segunda parte do livro predominam o que poderíamos chamar de viagens via leitura. Estão ali os textos que abordam a morte da mãe do narrador. É quando o conjunto vai ficando mais comovedor. Mas agora o pesar, embora sendo também pela genitora, é principalmente por todos os mortos da Covid. Nesse sentido, penso que a publicação é mais sobre a vida e a morte, do que sobre a viagem, ou melhor, talvez seja sobre a viagem pela vida através de tantas outras viagens, inclusive a da morte.

Em "Esses hóspedes sem peso", a viagem é antes de tudo pela própria língua. É quando a geografia se faz mágica como em Guimarães Rosa. Constitui-se aí uma escrita a nos lembrar que o livro, assim como um rio, se “translocaliza”. Fica aquela impressão de que não há nele nada fora do lugar, ou seja, de que a direção do seu autor está onde deveria estar, seja no Acre, no Pará, Mato Grosso, Paraná ou Santa Catarina, bem como em outros lugares visitados. No horizonte do vírus, se dá um encontro com o Brasil, ou ainda com a necessidade de reencontrá-lo na iminência de tanta morte.

Insisto na ideia de que estamos diante de um livro de viagem que é a própria viagem, ou seja, uma obra tornada viagem (um jeito de Dennis ser Galáctico, como Haroldo de Campos, com as devidas e óbvias distâncias, é claro). Uma viagem em torno de si, acima de tudo, como em Xavier de Maistre. A ideia de uma viagem via linguagem, tal como se constitui na escritura de Radünz, parece encontrar ressonância em experiências como a do cubo-poema Linguaviagem, de Augusto de Campos (1967-1970). A palavra, que virou título de um livro do poeta concreto, é o resultado do desdobramento das partículas LIN / GUA / VIA / GEM, em variadas direções de um cubo. Tais elementos morfológicos, postos em movimento, dão a dimensão polissêmica dos neologismos LINGUAVIAGEM / VIALINGUAGEM. Se por um lado do cubo o livro promove a viagem para sanar a clausura via língua, por outro, nos leva até a língua e nela faz a sua viagem. 


Caio Ricardo Bona Moreira

Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR), em 02 de dezembro de 2023.


terça-feira, 31 de outubro de 2023

A literatura como taxidermia: quem costura o quê para enganar a morte?

 


Capa do livro "Quem costura quando Mirna costura",
de Fabiano Vianna 


Caio Ricardo Bona Moreira

 

A literatura é mesmo uma máquina de costurar. Um livro, consequentemente, o objeto de sua tessitura. Na colcha de seus retalhos imperam sempre os restos de outras peças, ou pedaços de variados tecidos não cerzidos até então. O cinema também guarda na sua essência essa vocação para o corte e para a costura. Foi justamente nesse quesito que o filósofo Giorgio Agamben demarcou a relação entre a poesia e a arte cinematográfica. Aprendemos com o filósofo italiano, em seu ensaio sobre Guy Debord, que o homem é um animal que vai ao cinema - e por que não dizer à literatura? - porque como nenhum outro ele se interessa pelas imagens mesmo depois de reconhecê-las como tal.

Pensando não apenas em Guy Debord, mas também em História(s) do Cinema, de Godard, Agamben observa que o princípio constitutivo do cinema é a montagem, pautada pelos procedimentos de repetição e paragem, fundamentais para a construção de sentidos de suas cenas. Como na poesia, a sua força dependerá principalmente da capacidade do artista em manejar cesuras e encadeamentos, como um alfaiate cerze o linho, a seda ou o algodão. A mesa de trabalho, tanto para cineastas quanto para escritores, nesse sentido, se caracteriza de fato como uma ilha de edição ou um ateliê de confecção. Essas são ideias que me chegaram durante a leitura da reunião de contos "Quem costura quando Mirna costura", de Fabiano Vianna. Trata-se de seu primeiro livro, lançado em 2021, pela Arte & Letra. O escritor, no entanto, há uns bons anos já vem publicando em jornais e revistas os seus contos.


Fabiano Vianna, acervo pessoal do autor

Penso que o primogênito livro de Fabiano (recentemente, ele lançou a coletânea de contos "A inesperada gravidez da casa de lambrequim", também pela Arte e Letra) deveria ser incluído em uma série imaginária que poderíamos chamar de "Obras de sobrevivência", a saber, aquelas que parecem ser tocadas direta ou indiretamente pela experiência da pandemia. As publicações que integram esse conjunto, além de serem fruto de um contexto histórico bem específico, formam uma textualidade que imagino ter ajudado seus agentes, escritores e leitores, a atravessar os dias e as noites da peste com menos tristeza e um pouco mais de prazer e alegria. Sem tais elementos, inclusive, a leitura não passaria de exercício monótono. O livro de Fabiano é um desses trabalhos emblemáticos que consegue fazer experiência em um mundo destroçado pela crise pandêmica. Escrever ou ler suas páginas é uma forma de lidar com a crise, bem como um jeito de matar a saudade da rua, da cidade e das pessoas. Sob essa perspectiva, a literatura pode ser encarada como uma máquina capaz também de transformar a solidão em felicidade, ou de manter a tristeza à distância, ou ainda de adiar a morte. Não tem sido assim desde tempos imemoriais? Sherazade tecia histórias para não morrer, assim como Penélope tricotava produzindo um adiamento perpétuo de seu próprio luto. Em boa parte dos contos de Fabiano, assistimos ao encontro inusitado entre vivos e mortos.

Poderia falar aqui da potência pictórica da sua literatura, atravessada por sua atividade como ilustrador, aspecto já apontado por Jonatan Silva, que por sinal caracterizou o autor como um "cronista do invisível", do irreal, "daquilo que está nas ruas, nos terreiros e nas lembranças de várias gerações". A dimensão espiritualista embutida aí parece aguçar os sentidos do artista, numa vocação quase rimbaudiana para a vidência, assim como a dimensão de cronista da cidade, à la João do Rio, parece estar presente tanto em seus sketches urbanos quanto em seus contos, assim como a presença da memória de uma Curitiba retrô tende a alimentar também a sua mesa de edição. Aliás, para Waly Salomão, a memória é por si só uma ilha de edição. 

Uma das páginas do livro,
acervo pessoal do autor


No livro de Fabiano, o saudosista encontra o autor inventivo, assim como numa mesa de montagem o cineasta encontra o poeta. O livro é sobre tudo isso misturado e também sobre gestos que só podem ser capturados com eficiência no ato de leitura. É quando sua escritura escapa do comentário se instalando em um espaço que transcende a própria razão, e a tudo aquilo que se liga a ela, diga-se de passagem, a interpretação, a crítica, a caracterização de seus gêneros etc. É quando também o escritor faz suas mandingas para seduzir o leitor afinal de contas, como no universo popular, costurar é uma forma mágica de curar uma rasgadura por meio de benzimento. 

Estamos diante de um livro que correlaciona as dimensões do visível e do invisível em seu sentido sobrenatural - muitas personagens que figuram nos contos são tanto emblemáticas como fantasmáticas -, bem como em seu sentido rememorativo, já que sua narrativa, em especial a do texto "Ana e o Espelho" (um dos mais bonitos do volume), produz imagens dialéticas nas quais passado e presente se interpenetram sem cessar. Nesse conto, uma jovem, enfadada pelo isolamento, volta no tempo depois de entrar em um espelho da família, indo parar em uma Curitiba de décadas atrás.

Há uma série de imagens recorrentes no livro que apontam para a literatura entendida como uma máquina não apenas de produzir imagens, tal como em Bioy Casares, mas também de salvar o mundo - entenda-se aqui o mundo dos narradores. Uma máquina capaz de costurar os retalhos de um presente dominado pelo medo da morte e da destruição. Certos signos vão apontando para essa perspectiva ao longo de sua escrita, como, por exemplo, na aparição de um crânio, que "segura a porta para não bater com o vento" ou de um assoalho carcomido, ou de algum mofo numa roupa ou numa determinada parede.

A pandemia inclusive chega a aparecer de forma praticamente explícita em alguns textos que compõe a obra. O sentimento dessa decadência tem valor sintomático (basta lembrar das revistas Lama e Lodo, editadas por Fabiano, com uma pegada pulp).

O escritor tece a si mesmo como uma espécie de colecionador (sem saber o porquê sinto aqui a presença de Arthur Bispo do Rosário e seus mantos costurados). Isso porque o livro é um lugar capaz de ficticiamente armazenar o que está aqui do lado de fora. Ali, no texto, quem escreve guarda pedaços do mundo, em várias caixas que vão aparecendo ao longo dos contos. A máquina de costura encontra correspondência em outra imagem recorrente no livro, a do taxidermista, que pode ser lida como símbolo do autor compreendido como ente capaz de embalsamar e consequentemente preservar na obra os restos do mundo. Ao lado de signos da decomposição, figura o formol. O espelho, outra imagem recorrente nas histórias, sinaliza não apenas para a presença do duplo, facilmente encontrada na literatura latino-americana, mas também de uma máquina do tempo. Entrar no espelho é aqui uma forma de proliferar não apenas imagens, mas também lembranças, tudo margeado pelo filtro do enigma. 


Uma Curitiba, de Fabiano Vianna,
acervo pessoal do autor


Na Curitiba de Vianna, desfilam as balas Zequinha, a figura do lambe-lambe, o dirigível a lembrar uma baleia ou vice-versa, os antigos estabelecimentos e suas paisagens, o Rio Juvevê, o Cine Avenida, a Casa Roskamp etc.

A escrita de certos autores familiares a Fabiano ecoa nas narrativas curitibanas do livro. Valêncio Xavier, Manoel Carlos Karam e Dalton Trevisan parecem conversar com Cortázar, García Márquez e Italo Calvino nos jardins do Passeio Público ou nos bancos da Praça Osório e suas calçadas petit-pavé. No livro, a tradição visual de um Poty pervive não apenas nas ilustrações realizadas pelo próprio Vianna, mas também nos curiosos Potypos, esses estranhos gigantes que outrora habitaram a cidade. Tais personagens, assim como certos autômatos, bonecas e fantasmas dão a dimensão criativa de seu nonsense.

A prosa de Fabiano, abolindo os limites entre a vida e a morte (invertendo as polaridades da existência, o que nos leva a concluir, por vezes, que os mortos somos nós, como no pequeno conto "Os intrusos"), ressignifica a ideia da literatura como uma forma não apenas de enganar a morte, mas também de congelar (conservar) a vida, sem privá-la necessariamente de seu inerente movimento. Nesse sentido, sua costura devolve vida a uma imagem bastante presente no imaginário da literatura curitibana, a do Frankenstein, como um dia Valêncio Xavier já foi tratado. Tal monstro costurado há de estar passeando, feito um vampiro, pelas ruas noturnas dessa cidade, até porque, todos sabemos, os mortos não morrem mais. Nos tempos recentes de uma crise sanitária, o livro parece dar vida àquilo que julgávamos há muito extinto, assim como problematizar o nosso tempo como um lugar também de morte, creditando à literatura o poder de driblar os fantasmas de nosso presente. 

Em "Quem costura quando Mirna costura", quem cura é o pajé que chega de helicóptero no hospital para ministrar suas ervas ao convalescente. Nessa cena, para além do absurdo, a literatura de Fabiano parece se revestir dos sentidos mais profundos de cura. E sobrevivemos graças também às suas histórias.

Texto publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória, no dia 30 de outubro de 2023.

link: 

https://jcaicara.com.br/2023/10/31/a-literatura-como-taxidermia-quem-costura-o-que-para-enganar-a-morte/ 

sexta-feira, 18 de agosto de 2023

Meus 7 anos e os 70 do jornal

 




As datas cabalísticas me convidam a pensar na vida

E agora fico sabendo dos 70 anos do Caiçara. No breve instante do apagar de suas velas, o tempo para e me vejo nos tempos de piá mirando aquelas páginas num ritual que coincidia com a expectativa do início do fim de semana.

Vem-me à lembrança essa cena: Na casa de meu avô, às sextas-feiras, eu via descansando sobre uma poltrona ou o criado-mudo, onde jazia um velho telefone vermelho - daqueles que precisávamos de fato discar -, a edição semanal do então hebdomadário. Religiosamente, aquele pequeno indígena da primeira página vivia sorrindo pra mim (quem, aliás, o desenhara?). É quando a memória da infância se confunde com a imagem que fazemos dela e dos objetos que costumávamos vislumbrar.

Folhear hoje o jornal, essa espécie de Rosebud, é uma forma de tocar proustianamente aquele tempo de meninice. Mordo essa madeleine! Por isso a versão impressa me parece mais romântica e bela que a digital. Achava um barato nas edições especiais de Natal aquela proliferação de propagandas de lojas ou políticos desejando boas festas aos leitores. Os cartões natalinos preenchendo praticamente todas as páginas do jornal.

Um dia, já professor, fui até a redação, que ficava no Executive Center. Lá, encontrei a dona Lulu concentrada a ler alguma coisa diante de uma mesa repleta de papeis. A fundadora do Caiçara me pareceu séria e solícita. Apresentei um texto e ela gentilmente o publicou. Era um artigo que eu escrevera depois de visitar uma exposição de quadros do Carlos Kussik, cujo trabalho muito me impressionara. Pouco depois, o jornal trouxe a lume mais um ou dois textos meus. Quase dez anos depois, atendendo a um convite do Delbrai, que depois de Lulu ficara de chefe da tribo, comecei a colaborar mais assiduamente. De 2017 até o presente momento, caiçara de carteirinha há sete anos, embora nem sempre tão assíduo, publiquei aqui quase uma centena de textos. Guardo todos em uma pasta do computador intitulada “Textos Caiçara”. Quase todos sobre literatura. A maior parte sobre livros e autores que me encantam (costumo dizer que só escrevo sobre o que amo, nem que seja para falar mal).


Lulu Augusto

No espaço da Coluna, que me foi gentilmente cedido, pude viajar de César Aira a Raduan Nassar, de Bernardo Carvalho a Enrique Vila-Matas, de Roberto Bolaño a Silviano Santiago, de Clarice Lispector a Ailton Krenak, de Gonçalo Tavares a Mariana Ianelli e tantos outros. Metido, arrisquei palpitar sobre alguns filmes, e arranhei uns pitacos musicais do samba ao jazz (como todo bom brasileiro se sente preparado para dirigir a Seleção mesmo não sabendo jogar quase nada). O amável jornal inclusive teve a petulância de publicar uns dois ou três poemas e contos que rabisquei. Ali, recuperei uns episódios curiosos ocorridos em Porto União da Vitória, e li textos bons de muita gente boa, do Craque Kiko, do Cadinho, do Carlos Senkiv, do Renê, da Marga, do Delbrai, dos professores Luisandro, Fahena, Marli, Lorena, Vitor e tutti quanti.

No tempo que estive aqui, vi o cerco político se fechar no Brasil dos últimos anos e junto de outros colegas tivemos a liberdade de escrever o que pensávamos. Essa propensão ao espírito crítico, que é uma força do jornal, parece estar no cerne da sua criação, motivada por uma crueldade local que Lulu Augusto e seu irmão Dante de Jesus julgaram fundamental denunciar e combater. O seu espírito libertário parece combinar com a jovialidade e alegria de seus atuais diretores e colunistas também. Desejo que o mascote do Jornal, aquele índio alegre estampado na capa, continue periodicamente descendo de uma estrela colorida e brilhante, impávido que nem Muhammad Ali. Talvez seja ele um pouco o "eu" menino, o índio que sempre quis ser, a me olhar nos olhos como quem imagina o futuro do passado naquelas tardes de sexta ou sábado de minha infância, sem nem imaginar que um dia o meu avô poderia ter lido os textos do neto ali. Acredito que escrever é sempre uma forma de organizar o pensar, ou seja, de “desbagunçar” o caos. Uma alegria também. É mesmo uma possibilidade de encontrar o mundo e as pessoas, e - por quê não dizer? - de fazer amigos. Quem me lê agora, por exemplo? Estaremos juntos de mãos dadas nessa hora? Congracemo-nos antes de você virar a página. Dou-lhe um piparote tal qual Machado de Assis. Que possamos continuar nos reencontrando aqui. Evoé!

Caio Ricardo Bona Moreira 

(Edição 2594, 12/08/2023 - Jornal Caiçara, União da Vitória PR)

segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

À memória dos trisavós Paulo Sedor, João Pastuchen, e seu povo





O sol que a tudo aqui ilumina
Não é o mesmo que hoje invade 
Lviv, Bucha, Mariupol ou Kharkiv. 
Lá, onde viveu o pai da mãe
Da mãe de minha mãe,
Hoje talvez uma bomba exploda. 
Em Rava-ruska, 
onde nasceu
O pai do pai 
da mãe de meu pai,
Crianças estão guardadas
Nos porões como em cofres
com seus medos nucleares,
Pesadelos de Pripyat ou Chernobyl,
pais, avós e brinquedos.
Lágrimas regam a relva
E tanques desenham
outras rotas 
Misturando no chão 
o sangue eslavo
De quem no fundo, 
E abaixo do poder, é irmão,
Porque sim, 
este poema,
como uma cidade devastada, 
fala mesmo é dos inocentes. 
É preciso voltar os olhos para a Ucrânia
Ou refazer o caminho de volta,
Mas como voltar para a casa
Se casa já não há? 
E o poema toca a dor
Como os dedos uma bandura
E ambos tiram do solo a áspera 
Flor, feito um sabre em música, 
Ou a szabla que a rubra mão empunha. 
Enquanto isso 
no topo de uma colina sagrada de Lima,
xamãs peruanos com suas folhas de coca
Preveem em seus vasos de cerâmica com fogo
Que a Rússia e os Estados Unidos solucionarão seus conflitos

c.moreira

quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

Sueño de tango



Messi é um acontecimento! Força, ímpeto, movimento, precisão, imaginação, beleza, seriedade e respeito, tudo o que um bom bailarino de tango oferece quando dança. No passe ou passo de un gancho, un boleo, la finta, aguja, lapiz y ocho. Un señor milonguero!! Quando a bola chega em seus pés (qual mãos de maestro escrevendo no ar um compasso) do céu azul de Rosário - como se a distância longínqua ou o tempo não fossem mais do que um drible ou uma música de Osvaldo Pugliese ou uma nota de Piazzola - dá de ouvir um anjo rebelde desses de arrabalde que é também um sol a sussurrar: !baila baila!

c.moreira

O encantado



Eis que versa o seu lamento

Aquele que cantou em rima
O peito ilustre Lusitano
Do Algarve até o Aveiro
De Cascais até Barreiro
do Tejo ao Bojador
História anunciada
Numa lenda que pervive
Lá na Ilha dos Lençóis
do Maranhão
É o fado e o fardo
Que vira festa
Em Rabat ou Marrakech
Em Alcácer-Quibir ou Agadir
Lá nas terras do açafrão
Com o gol de El-Nesyri
Encantou-se o encantado
Que voltou agora vertido
Em craque mouro marroquino
El Rei Dom Sebastião

c.moreira

Gal Fa-tal






 Morrer é assim

Como dizem alguns
Uma coisa muito normal
Todo mundo morre um dia
Ou de susto
Ou de doença
De acidente
Ou de causa natural
Fosse assim tão simples
Não deixava ninguém surpreso
Tão triste
Esse aperto no peito
Esse nó na garganta
Essa saudade que fica
E vai levando a todo vapor
um pouco
da gente junto
Sem deixar nenhum sinal
Hoje o dia amanheceu
tão claro,
Divino e maravilhoso
E ninguém imaginava
O vendaval
Porque no fundo
Tempo bom
não tem Tempo
pra temporal
Vi que o Gil
Falou da voz
Maviosa da Gal
Vi Bethânia
Em choque
Chorar ao lembrar
De sua voz magistral
Vi Caetano relembrar
A canção "Sorte" e
E o beijo entre eles
Na cena final
E tudo me fez pensar em
Como o dia pôde nascer
Tão claro justamente
Na manhã em que se apagam
Para sempre aqui
Os olhos acesos da Gal?
Como pode a vida
Ser ao mesmo tempo
Tão doce e tão bárbara
Tão Azul e tão Fa-tal?

c.moreira

quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

"Dario Vellozo: Em busca do templo perdido" , de Caio Ricardo Bona Moreira


"Dario Vellozo: Em busca do templo perdido", da Editora Humana, no acervo da Biblioteca Pública do Paraná 

Ainda dá tempo de ler mais um livro em 2022. 📚 Estas são algumas obras que fazem parte do acervo da BPP. #bibliotecapr #literatura #recebidosbpp

Lançamento do livro "Dario Vellozo: poesia e magia", pela editora da FECILCAM

 



Livro: Dario Vellozo: poesia e magia
Autor: Caio Ricardo Bona Moreira
Editora FECILCAM
296 páginas
ano: 2022
capa: Fabiano Vianna
Posfácio: Antonio Carlos dos Santos 
Apresentação: Manoel Anísio Moscalewski

16 de novembro de 2022, às 17h00, com transmissão aberta pelo canal da Unespar, no endereço disponível abaixo.

o lançamento pode ser assistido aqui

"Os figurantes: esses protagonistas"

 




Participei no dia 28 de novembro de 2022 da Semana de Extensão e Ensino, de História e Cultura afro-brasileira da Unespar, campus de União da Vitória, com uma conferência de abertura sobre a obra de Eliana Alves Cruz. Uma atividade voltada à Semana de Consciência Negra. 

Título da Conferência: "Os figurantes: esses protagonistas, ou os escombros da experiência diaspórica em O crime do cais do Valongo, de Eliana Alves Cruz"

Fragmento:

O romance O crime do cais do Valongo, investindo seu olhar no que poderíamos chamar de “estética da encruzilhada”, ou “arte do encruzamento”, ou ainda “poética do cruzo”, promove um encontro entre diferentes elementos narrativos. Aliás, o conceito de encruzilhada é amplamente discutido por pensadores como Luiz Rufino (2019), inserindo-o no universo da filosofia e da educação, como uma espécie de sabedoria de fresta, uma espécie de jogo contra o carrego ocidental e a violência do colonialismo. Eliana faz do limiar, ou melhor, da encruza, o lugar de contato entre dois países, Moçambique e Brasil, entre dois continentes, a África e a América, entre dois tempos, o início do século XIX e o início do XXI, entre duas dimensões, o Orum e o Aiyê (céu e terra na língua do colonizador), entre dois narradores, Muana Lomuè e Nuno Alcântara Coutinho. Tais encruzamentos dão sentido à experiência diaspórica que é pano de fundo da obra. Maria Farias Rebelo, no recente artigo “Sobre cruzos, soterramentos e redescobertas” (2022), em que analisa a literatura de Eliana Alves Cruz, centrada na figura do cais do Valongo, já apontou para o conceito de encruzilhada, tal como desenvolvido por Leda Maria Martins, com o objetivo de “deslindar o caráter rizomático da cultura africana que, na diáspora brasileira, se conforma em especificidades plurais de performances e movências (...)”. Além dos cruzos do espaço físico, da pluralidade de narradores, dos mundos variados postos em questão, Marina Rebelo chama a atenção para a relação entre letrados e não-letrados no livro, entre deslocados e realocados na diáspora, entre mortos e vivos.  Para ela, o Valongo acionado como operador teórico no livro, “(...) é centro deslocado de um mundo em que vida e morte coexistem”.

Seria o momento de perguntarmos o que fazer para que as vítimas do crime do cais do Valongo ganhem voz, nome e rosto, e não desapareçam soterrados no limbo da história? E qual é o papel do romance nessa tarefa?

Se há uma desproporção entre a experiência vivida pelos homens escravizados e seus relatos sobre essa experiência - tendo em vista o processo de silenciamento a que foram submetidos milhões de negros na diáspora (quase não há testemunhos) -, não seria o caso de recorrermos à literatura, e mais precisamente à imaginação, para além da pesquisa arqueológica e historiográfica, pois que imaginar é também uma forma de saber. Lá onde falham os arquivos, se alevanta a imaginação.


120 anos de Cecília Meireles


 Retrato de Caio Ricardo Bona Moreira , por Fernandinha Meireles, em 11 de outubro de 2022 . Rio de Janeiro, Brasil. Versos do poema " Espêlho Cego" de Cecília Meireles, na grafia da poeta. Assinado. Nanquim à pincel e bico de pena sobre cartão.

Na noite de 27 de outubro, conversei com Fernanda Meireles - neta de Cecília Meireles - em seu canal no Instagram, sobre a vida e obra dessa autora que tanto admiro. Cecília é uma voz incomum, um caso singular na literatura de nosso país. Cecília, aliás, é de todo o mundo e de outros mundos também. Ler seus poemas é uma ótima forma de descobrir quem somos, ou o que deveríamos ser. Acho o "Romanceiro da Inconfidência" um dos livros mais bonitos da literatura brasileira, uma obra atual e necessária. Fernanda tem disseminado com muita força e júbilo a obra de sua avó. Uma alegria mesmo! (Fernanda, que é também desenhista, me retratou em uma ilustração. Agradeço o presente)

A conversa pode ser assistida aqui (parte 1)


120 ANOS DA INÚMERA CECÍLIA MEIRELES
1901.2021

Filmando o levante “No Intenso Agora”, com Caio Ricardo Bona Moreira (UNESPAR)





Confira aqui a palestra


João Moreira Salles, em “No Intenso Agora”, documentário lançado em 2017, parte de vídeos caseiros e anotações realizados por sua mãe durante uma viagem à China, em 1966, confrontando este episódio com uma reflexão sobre as manifestações de Maio de 68, na França, sobre a Primavera de Praga, e sobre a Ditadura Brasileira. O que todos esses acontecimentos têm em comum, além de atravessarem ou serem atravessados pelo mesmo tempo, é uma questão que vai se delineando ao longo do filme, a saber, a forma como a história é filmada, ou seja, a maneira como os levantes são registrados. O título do filme aponta para uma das chaves de sua leitura, que é a questão do tempo, a forma como lidamos com ele, ou melhor, a forma como somos transformados por suas imagens. O documentário é nesse sentido profundamente contemporâneo, assim como o nosso tempo é profundamente político, assim como é político todo o tempo para todos aqueles que em sua época o experimentam em profundidade.

Os episódios que percorrem “No Intenso Agora” estão a sinalizar os espectadores para incêndios futuros. Se esses acontecimentos estão no filme é porque alguém os registrou. Eles estão na história. Em um momento o cineasta observa que essas imagens existem porque a liberdade de expressão não acabou de um dia para a noite. À medida que isso acontecia, aumentava a sensação de urgência, enquanto ainda era possível o registro, o testemunho. O filme, nesse sentido, acaba refletindo também sobre os usos políticos das imagens. O que fazer com elas? Ou ainda, como fazer o levante, ou melhor, como filmar a história no Intenso Agora? A nossa proposta é promover com a conversa a proliferação dessas perguntas. Sobre o ciclo O ciclo “Imagens para sobreviver ao contemporâneo” reúne palestrantes de diferentes campos dos estudos literários para debater questões contemporâneas marcadas pelo signo da urgência. A ideia é que cada palestra parta de uma imagem ou de um grupo de imagens para tecer suas formulações. Esta proposta está baseada em uma esperança – possivelmente infundada ou infundável – aberta pelo conceito de Nachleben cunhado por Aby Warburg: se as imagens sobrevivem ao tempo, são inerentemente anacrônicas, então talvez refletir sobre elas nos possibilite sobreviver e mesmo reverter o fluxo de tempos sombrios.
O escopo das imagens é o mais amplo possível: de fotografias a ícones religiosos, de pinturas pré-históricas a peças de propaganda.
Organização: Tiago Guilherme Pinheiro e Pró-Reitoria de Extensão da UEPG Equipe organizadora: Pedro Henrique Hara Matoso, Rosana Divina Furtado e Marta Ferreira Pinto

quinta-feira, 15 de setembro de 2022

41ª Semana Literária do Sesc

 




Estarei na Semana Literária do Sesc. No dia 15 de setembro, às 19h30, no auditório da Unespar, campus de União da Vitória, participarei com a professora Karim Siebeneicher Brito de um bate-papo com o tema "Territórios Imaginários: vozes em trânsito". O foco da conversa será o meu livro "Esquinas", lançado pela Micronotas, em 2020. 

sábado, 20 de agosto de 2022

Concretamente Décio


O Décio conheci pessoalmente pelos idos de 2002. Guardo uma foto em que apareço com um amigo e uma amiga ao lado dele, no Cine Teatro Luz. Eu já curtia os poemas dele, os ensaios também. Naquele tempo a internet engatinhava. As informações eram menos acessíveis. Eu não tinha o visto até então em fotos ou na TV. Quando o poeta subiu no palco, fiquei surpreso. Então era ele aquele velhinho que eu tinha visto em um curioso filme algumas semanas antes na TV Cultura, no qual ele interpretava um sujeito excêntrico que criava pombos soltos em um apartamento. O filme se chamava "Sábado", e fora dirigido pelo Ugo Giorgetti. Jô Soares e Tom Zé também participavam do longa-metragem. A palestra foi incrível. Naquela noite pensei estar diante de um dos maiores intelectuais vivos do Brasil. Uma lucidez e inteligência imensas. Levei dois livros para ele autografar no final do evento. Um deles para a biblioteca da Universidade onde eu estava concluindo a graduação. Décio, vendo o carimbo, me perguntou se eu tinha roubado o livro de algum acervo (deve estar em alguma prateleira lá na biblioteca, um exemplar de "Comunicação Poética"). Não lembro se rimos. Talvez ele fosse sisudo o bastante para isso. Pedi uma foto. Ele aceitou. Li alguns anos depois, não lembro onde, que ele acreditava em questões mediúnicas implicadas no ato de sua escrita literária. Mas não recordo se a questão era basicamente tratada em termos semióticos. Naquele mesmo ano, descobri que Leminski o venerava. Reza a lenda que o curitibano teria oferecido maconha para o Décio em um "petit comité". Pignatari recusou dizendo que não precisava de aditivos para criar. Caetano, Torquato e tantos outros sabiam com suas antenas que Décio era uma de nossas maiores cabeças. Gosto muito da foto em que o poeta concretista aparece de cueca clicado por Ivan Cardoso ao lado de Grünewald e Oiticica. Com aquela cara de italiano mal humorado Décio bem poderia ter sido meu avô. Um daqueles patriarcas de Osasco com sotaque carregadamente italiano ordenando aos netos que não entrassem em seu escritório. Esse cara incrível viveu seus últimos anos em Curitiba, lecionando. Apareceu duas vezes entrevistado pelo Abujamra no Provocações, dizendo que a monarquia era um atraso, e que os professores não arriscam e só têm gostos médios e medianos. Polêmico como sempre. Sua índole "crica" era fruto de um olhar profundamente crítico e sagaz. Seu pensamento é fundamental. Décio era do futuro. Continua sendo o cara de um Brasil pós-nacionalista, de um meta-Brasil (quando o "guaraná for coca-cola", dizia o autor de "Poesia pois é poesia"): "Neste pais só não resulta o que você não faz", sugeriu ao ser entrevistado pelo Abujamra. Daqui uns 50 anos vamos entendê-lo um pouco mais e melhor. Não era um cara do século XX embora tenha sido fundamental para ele. Hoje faria 95 anos.