terça-feira, 30 de julho de 2019

Salve o índio que nos salva!




Acaba de sair o dossiê sobre Textualidades Indígenas, da revista Chuy, de Buenos Aires, na qual publico o ensaio "Poéticas Ameríndias: Perspectivismo e Transcriação Canibal", pensando o trabalho de Josely Vianna Baptista, entre outros. O link abaixo:

domingo, 28 de julho de 2019

Sobre livros, poesia e paternidade




Poderia falar de greve, mas hoje falarei de algo menos grave. Há algum tempo, venho adiando a leitura e escrita de textos (ou pelo menos diminuindo consideravelmente o ritmo). Os motivos são variados, no entanto, não estando disposto a importunar o leitor com lengalengas, prefiro nem elencá-los. Cito apenas dois deles. O primeiro diz respeito aos compromissos do magistério, profissão que abraço todos os dias com um misto de amor e temor. Os leitores bem sabem o quanto exige a docência de um professor disposto a ensinar a seus alunos e aprender com eles também. Mas, pensando bem, essa questão não vale como desculpa. Há sempre um tempo entre uma aula e outra, entre reuniões pedagógicas, orientações, correções de trabalhos e elaboração de planos de ensino. Que essa tarefa não seja nunca motivo para adiarmos a escrita. Pelo contrário, que seja um convite a permanente construção de ideias, mola propulsora de todo exercício de pensamento e ação. Há anos, leciono literatura e para mim pensar e escrever sobre ela será sempre um prazer, apesar de que toda escrita traz em seu bojo um fantasma com o qual é difícil conviver. 
O segundo motivo de tal adiamento vale como justifica, pois é o mais belo de todos os outros que poderiam nos roubar o tempo e as condições necessárias à escrita de um texto ou a consecução de toda e qualquer atividade. Falo da paternidade. O texto que não paro e não me canso de ler e escrever há três anos se chama Catarina. Ela chegou para alegrar a nossa vida. Tem um sorriso encantador, menos de um metro, e uma energia capaz de movimentar uma usina hidroelétrica (Perdoem-me a hipérbole, coisa de pai exagerado). Para somar-se à Catarina, multiplicando-nos em afeto, acaba de chegar a Aurora, que tem, ao lado de sua irmã, nos dado alegrias imensas. Aurora, de olhar terno e doce, veio para nos amanhecer lá em casa, que agora anda de novo com cheirinho de bebê.
Minhas filhas têm sido os únicos motivos a dificultar consideravelmente as condições da prática de leitura e escrita, o que me deixa muito feliz porque se ler é bom, ser pai é muito melhor. Qualquer outro motivo - que não elas - a me impedir ou dificultar o exercício do pensamento, deixaria em mim um sentimento de falta que não conseguiria mensurar. E, no entanto, ter lido ou escrito nos últimos três anos muito menos do que costumava fazer até então tem me deixado imensamente feliz. É que Catarina e Aurora são para mim pura literatura.
Nos olhos de minhas filhas encontro a força de William Shakespeare, a doçura e o amor dos versos de Vinícius de Moraes, o mar de Homero ou Camões, o céu de Saint-Exupéry, a terra de fadas ou do nunca, o fogo que a literatura tenta traduzir em palavras, os mistérios de uma civilização perdida escondida em um livro esquecido em alguma biblioteca. Escrevo isso para dizer o quanto de poesia existe naquilo que amamos, para além de palavras e textos. O leitor me questionará e eu responderei com um piparote. Sim, um poema é feito de palavras, mas a alma que nele se guarda ou voa se chama poesia. E o prazer gratuito que nela encontramos pode se traduzir na alegria de um abraço, no calor de um beijo, no trabalho de um povo, nas cores de um quadro, no sorriso de uma criança, nas cenas de um filme, nas notas de uma música, no sal de uma emoção, no último capítulo de uma novela, na alegria da amizade, entre outras coisas boas que a vida nos dá ou que damos a ela enquanto ainda estamos aqui. Que essa poesia nos convide sempre à leitura e escrita de novos poemas. Que possamos ler e escrever a nossa própria vida. Isso dá um belo livro. Sem falar na maternidade, cujo dispêndio de forças e tempo supera em muito todo e qualquer exercício de paternidade. É sim o amor mais belo. Daria muito mais do que um livro. Daria todos. Daria tudo. Amor de mãe é uma imensa biblioteca.  


Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória, em 27 de julho de 2019

quinta-feira, 18 de julho de 2019

João Gilberto, um roteiro que nunca será filmado porque o filme já existe





Dedicado ao professor e amigo Antonio Carlos dos Santos, o Caco,
que um dia, no Campeche, tocou Estate de forma primorosa


(Em 2008, quando comecei a prestar mais atenção em João Gilberto, entre audições de música e a leitura de “Balanço da Bossa e Outras Bossas”, de Augusto de Campos, escrevi o texto abaixo, que releio agora depois de tantos anos, ao saber da partida do mestre da Bossa Nova. Caetano Veloso, na bela canção “Pra Ninguém”, citou muitos intérpretes da MPB, como Gilberto Gil, Nana Caymmi, Tim Maia, Gal Costa, Cauby Peixoto, Dalva de Oliveira, Carmem Miranda, Djavan, Paulinho da Viola, etc, para finalizar dizendo: “Melhor do que isso só mesmo o silêncio, melhor do que o silêncio só João”)

Talvez fosse possível escrever um roteiro poético sobre uma cena de cinema. Lembro-me de algumas cenas que são antológicas, como a dança ingênua de Fred Astaire e Cyd Charisse, em “A Roda da Fortuna”, ou mesmo o nascimento de Macunaíma, protagonizado pelo grande Grande Otelo, na belíssima adaptação (ou melhor transcriação) de Joaquim Pedro de Andrade. Outras são menos conhecidas, mas não menos interessantes: o momento em que um anjo ganha cor, quando resolve se tornar um humano por causa de uma paixão pela bailarina do circo, em “Asas do Desejo”, de Wim Wenders. A serenata que Vadinho faz para Dona Flor, cantando Noite Cheia de Estrelas, de Vicente Celestino: “Noite Alta, céu risonho...”.


Há uma linda e comovente interpretação de João Gilberto, cantando “Estate”, na Itália. Geralmente um roteiro deve ser escrito antes da filmagem. Neste caso, tomei a liberdade de inventar um depois de assistir ao filme “Bahia de Todos os Sambas”, de Leon Hirzman e Paulo César Saraceni, gravado em Roma, em 1983. O filme registra um dos maiores shows de MPB que já aconteceu na Europa. Eu, com apenas dois anos na época, nem sonhava com aquilo: “O que é que a Bahia tem?”. E o show não era apenas musical. A Bahia baixou em Roma – com seus atabaques e pais de santo, suas rezas, acarajés, danças e candomblés. Um encontro para gringo nenhum botar defeito. O encontro foi organizado por Gianni Amico, um italiano que juntou figuras como Caetano Veloso, Dorival Caymmi, Gal Costa, Moraes Moreira, Naná Vasconcelos e o grande João. O roteiro poético que segue não tem pretensão alguma de aproximar-se do formato oficial – até porque nunca será filmado, como o roteiro esquecido de Mário Peixoto, “Outono – jardim petrificado”. Por isso poético. Instruções: Para ser lido ao som de “Estate”.

CENA 1 (Plano de conjunto)

Noite. Um palco, pouca luz, um banquinho, um violão e João Gilberto. O suficiente. Terno azul-cinza, paletó aberto. João olha para o violão. Atrás dele, uma orquestra. Começa: “Estate sei calda come i baci che ho perduto / sei piena di un amore che è passato / che il cuore mio vorrebbe cancellare”.

CENA 2 (Corte para Plano médio)

João balança a cabeça. Toda a história da Bossa Nova se resume nesse breve movimento de João, como que hesitando entre uma voz e um olhar, ou mesmo expressando a letra por meio do gesto. João frisa a testa, talvez para alcançar a precisão. Não, seria a perfeição: “Estate il sole che ogni giorno ci scaldava / che splendidi tramonti dipingeva / adesso brucia solo con furore”.

João olha para o céu. Não, olha para cima. Não, olha para cima, mas para coisa nenhuma. Um lugar, sim. Só ele pode saber. Torna a olhar para o violão. Quase fecha os olhos. J.Joyce, em Ulysses, diria: “Fecha os olhos e vê”: “Tornerà un altro inverno / cadranno mille petali di rose / la neve coprirà tutte le cose / e forse un po' di pace tornerà”

Os pitagóricos acreditavam (e acreditam) que o segredo do universo estaria explicado na matemática. A precisão dos números revelaria a ordem de todas as coisas. A música, por incrível que pareça, está mais próxima da matemática do que se pode supor. Se a música pode ser registrada numa partitura é porque sua matemática de tempos e de tons a permite. João volta a olhar para o céu. É, agora é para o céu. Talvez sua partitura esteja registrada na ordem das estrelas: “Estate che hai dato il tuo profumo ad ogni fiore / l'estate che ha creato il nostro amore / per farmi poi morire di dolore”

CENA 3 (Zoom-in no rosto de João. Plano de detalhe)


A cena é comovente. Agora, o que se vê é uma sequência de alguns minutos no rosto de João. Sua testa sua. Seu olhar é suave e contínuo, feito fio de água antes de explodir em rio. O pai da Bossa Nova olha para o violão como quem a ninar o primeiro filho. Como quem olha apaixonado a amada ainda sem saber se tem também o seu amor. Como quem abraça um triste amigo, feliz por sabê-lo um dos seus. Levemente, sorri. E esse sorriso é para o violão, como a agradecê-lo por não estar sozinho. Todo o mistério de João se revela nessa sequência. E toda a potência de seu comedimento também. João repete a letra. No entanto, sabe que toda repetição traz em seu bojo a força de uma diferença. João nunca repete. Bossa-cancione sempre outra a mesma.

CENA 4 (Zoom-out do rosto de João. Volta para Plano médio)


A música termina. O menino levemente sorri. As luzes se apagam...

Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória, em 13 de julho de 2019