segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

Sobre dedicatórias alheias gravadas nos livros usados que compramos

 


Livros são objetos que contêm e possuem histórias. Para onde voam, em que lares, fazer sua morada depois de editados e vendidos por alguma livraria? Às vezes, passam de mão em mão e vão parar em algum sebo até que um aventureiro os colha de uma prateleira empoeirada, resgatando-os de um limbo silencioso qual museu. Quando adquiro um livro usado, fico a matutar – além de pensar sobre o afeto com que devo regá-lo na beleza da adoção -  quem já os leu, quantas mãos folhearam o volume, ou por que os antigos proprietários deixaram de desejá-lo. Cada livro de estória tem a sua história cujo conteúdo nos é vedado. A não ser que surja em meio às primeiras páginas alguma dedicatória a nos falar de um encontro, de um amor, de uma admiração, o que consigna a ideia de que quem dá um livro a alguém o faz com um gesto que transcende o mero presentear. Dar um livro é mais que um regalo, é ofertar uma história.

Como me encanta ler as dedicatórias de alguém que não conheço para alguém que desconheço nas páginas de um livro usado. Quando abro uma edição surrada de Gonçalo Tavares, o livro “O Senhor Swedenborg”, que me chegou pelo correio, descubro que um tal Hugo está indo dormir morrendo de saudade de um tal Grandão. Quem será este, cujo apelido é tão misterioso quanto engraçado? Ali, Hugo se declara para o amado, continuando: “Só vou te ver na quarta. Ainda bem que chega logo! Na quarta-feira, vou te dar este livro. Quando ler isso, olha para minha cara de felicidade! Você me faz feliz! Te adoro!”. Uma certeza: Hugo é uma pessoa romântica. Como Gonçalo Tavares é um grande escritor, o amado soube escolher.


Abro outro livro adquirido em um sebo. É um exemplar de “Comício de Tudo”, do poeta carioca Chacal. É uma daquelas edições que integrou nos anos oitenta a série Cantadas Literárias, da Editora Brasiliense. Descubro no interior da contracapa o texto que um Vitinho escreve para uma Claudinha: “Romário é carioca e você também. As tribos, os tipos, a energia do rio, passeia por essas páginas. Tape o nariz e mergulhe, o rio e as pessoas te amam! Um grande beijo nativo”. O texto tem o cheiro hippie, jovem e malandro dos poemas de Chacal. Vitinho parece ser uma pessoa legal, Claudinha também. Dois malucos belezas. O tom combina com a página manchada e com as pequenas avarias que olhadas de perto revelam a intervenção de alguma traça esperta. São palavras roídas pela matéria memória. Talvez a obra tenha sido uma companheira de viagem para Claudinha em uma Kombi e seus passeios pela serra do Rio de Janeiro, movidas ao som de Blitz e erva. 

 


Mas nem sempre tudo são flores. As dedicatórias, às vezes, vêm cheias de rancor, com a tristeza do abandono ou da incompreensão. Abro uma edição de “As Annamárias”, de Lindolf Bell, adquirida em uma loja de usados. Na primeira página, uma tal Tude escreve para Assis. É mais que uma dedicatória, é uma carta. Longa. Ocupa toda a página. Nela, Tude derrama poeticamente suas lamentações. Diz presentar Assis com a obra, porque sempre se deu a ele. Tude é também o próprio livro: “Sim, eu sou uma obra que ficou dez anos numa prateleira empoeirada e esquecida entre teus outros livros”. O tom é forte. Tude não está para brincadeira. É severa com Assis: “Não quisestes sequer abri-la, quanto mais se deter em valorizá-la”. À medida que escreve, a autora da missiva dá mais ênfase ao protesto: “Conhecer o verdadeiro, o autêntico, a pureza de atitudes e ações não faz o teu gênero”. O que deve ter sentido Assis ao ler a ácida dedicatória em um livro tão doce?: “Preferes ir apanhando o que te aparece mais fácil e mesquinho, fugaz e fútil”. Ao passo que escreve, Tude vai dando ao texto mais informação e personalidade: “Enfim, sei que as palavras são palavras, o que vale para mim são os valores mas como vou ser sempre a velha, a caipira de Blumenau, que fez Letras, por isso repito mais uma vez esta frase que não é minha: Ninguém melhor que o tempo para nos mostrar as razões”. 

Surpreso e apreensivo fico me perguntando o que Assis deve ter feito para Tude. Ou melhor, o que deixou de fazer por ela. Antes de terminar a carta, desculpando-se pelo desafeto e agressões, ela arremata: “Por tudo o que não quisestes fazer por mim e para mim, e por tudo o que me fizeste”. A data do texto é de 10 de agosto de 1982. Quase quarenta anos já se passaram. Onde estarão Assis e Tude? O que pensariam em reler a dedicatória tanto tempo depois desse vendaval? O que sentiriam ao saber que espio suas intimidades? O que fazer com a memória dos outros, com as ruínas desse (des)encontro doloroso? Sinto-me como que devassando a janela de uma casa alheia. Talvez a resposta para todas essas perguntas esteja guardada lá no próprio livro, no último poema, onde Bell escreve: 

“Amor mais perfeito
não é feito do fácil. 
Floresce por dentro 
embora se pretenda 
que cesse. 
E quando nas águas da pressa 
foge o amor mais depressa, 
é tempo de saber 
quanto dura 
o tempo de não saber”. 

Às vezes, os livros acabam longe de suas próprias histórias. Resta-nos perguntar: Quanto tempo dura essa distância? Quanto tempo dura esse não saber? Na vida, em que prateleira vão parar nossas lembranças?   

Caio Ricardo Bona Moreira

terça-feira, 7 de dezembro de 2021

Os esqueletos dançantes de Thiago Tizzot

 



Como num poema de Ricardo Reis, a vida tem sua cova a nos lembrar que somos todos “cadáveres adiados que procriam”, ou ainda, esqueletos que perambulam ou dançam à procura de algum sentido. Em “Nada Fica”, Fernando Pessoa, na voz do mais clássico e epicurista de seus heterônimos, reflete sobre a fugacidade da vida, concluindo com o seguinte verso: “Somos contos contando contos, nada”. A frase, penso, pode nos ajudar a entender as narrativas que compõe o livro “Esqueletos que Dançam” (Arte e Letra, 2020), de Thiago Tizzot. Tomemos a palavra ao pé da letra. Somos contos porque temos nossas histórias, histórias que não nos elevam à categoria de seres superiores, mas que, pelo contrário, revelam a fragilidade com a qual é revestida nossa vida. No entanto, contar um bom conto sobre seres banais pode ser uma forma de revelar o quanto de especial pode residir no trivial. Álvaro de Campos, em “Tabacaria”, não muito distante de Reis, escreveu: “Não sou nada. / Nunca serei nada. / Não posso querer ser nada”. Mas como o comum pode ser radiante, o poeta conclui a estrofe engrandecendo sua própria pequenez: “À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”. 

As personagens do livro de Tizzot são pessoas simples, mas que possuem uma rica existência revelada pela hábil escrita deste que é também autor de literatura de fantasia e editor da Arte & Letra, uma editora curitibana que se destaca no cenário nacional pela qualidade de suas produções e pela forma artesanal de suas edições. Na obra em questão, podemos encontrar o sujeito que deseja ser promovido no trabalho, o ex-detento que confessa ter sobrevivido a uma prisão injusta graças às palavras cruzadas que resolvia no cárcere, o escritor que é devorado por uma traça gigante (seria a própria memória?) na garagem de sua casa, o homem que ao se deparar com a igreja que já foi um cinema, reencontra proustianamente o próprio passado, alguém que desconfiando da morte iminente decide não abrir o envelope que traz o resultado dos seus exames médicos.

Os textos, muito bem lapidados, fazem lembrar da forma como Cortázar tratou o gênero conto. O argentino observava que nele é fundamental uma “máxima economia de meios”. É o que lhe dá intensidade. As histórias trazem sempre o essencial, não se podendo retirar delas o menor fragmento sem fazer com que os contos percam uma boa dose de sentido. Tizzot desenvolve com presteza aquela capacidade apontada pelo autor de “Rayuela”, que é a de recortar um fragmento da realidade, fixando-lhe determinados limites, mas de tal modo que esse recorte “atue como uma explosão que abra de par em par uma realidade muito mais ampla (...)”. Por exemplo, no bem orquestrado “A vida é assim”, o autor de “Esqueletos que dançam” apresenta uma série de personagens cujas ações vão preenchendo o vazio da vida no intervalo entre o nascer e o morrer. São pequenas histórias de pessoas anônimas que vão se desdobrando uma na outra e mostrando que viver é assim. São cenas aparentemente banais, mas que, além de distraírem, nos lançam a uma reflexão sobre a vida.




Outro conto me chama muito a atenção pelo mote e arquitetura. É o “União da Vitória”, no qual o protagonista sonha com uma promoção no trabalho enquanto ouve a misteriosa fala de um sujeito que aparece repentinamente na trama, dizendo-lhe que conhece alguém na cidade de União da Vitória que poderá resolver seu problema. Até que um assassinato acontece. E novamente, a morte aparece no livro como um elemento (des)norteador.

O livro chama a atenção para a literatura entendida como jogo, reforçando essa ideia tantas vezes discutida pela crítica. Aqui, a lógica é semelhante à das palavras cruzadas, nas quais cada parte tem um papel a cumprir no todo, sendo impossível retirá-la do puzzle sem lhe prejudicar o conjunto. Tal experiência forma uma espécie de esqueleto cuja montagem possui níveis variados de dificuldade. Quanto mais o jogador preencher seus espaços com imaginação e curiosidade, mais sentido tem a brincadeira. No entanto, o que muitas vezes move ou alimenta a vontade de continuar jogando é a incapacidade de solucionar certos problemas. O enigma da arte estimula um pacto de cumplicidade que é também a isca que captura um leitor. Não sabemos quem é o assassino. Não sabemos por qual crime não cometido um sujeito foi condenado.

No livro de Tizzot, várias das personagens evocam as palavras cruzadas. Um detento desiste do suicídio e tem a sua vida salva por este passatempo, um criador do jogo é misteriosamente assassinado, outro aparece marcando um encontro com uma mulher que não consegue resolver seus desafios no jornal. O autor tece a trama como quem monta um lego, o que confere à sua escrita a dita experiência do jogo. O leitor atento sempre ganha no final. Diante das narrativas dinâmicas de “Esqueletos que dançam” temos a estranha e fictícia impressão de que certos personagens de determinados contos reaparecem em outros da mesma obra. O livro é esse esqueleto montado, assim como as frases são peças de um quebra-cabeça, ou lego, que tão logo construído se põe a dançar. 

Caio Ricardo Bona Moreira

quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

O XAMANISMO E A POESIA COMO ARTES DA DIPLOMACIA: PERSPECTIVISMO E ALTERIDADE NA CONSTRUÇÃO DE UM PENSAR POÉTICO E POLÍTICO AMERÍNDIO


Ensaio publicado nos Anais do I SIMPÓSIO DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS E LITERÁRIOS, da Unespar, campus de União da Vitória: As Questões Identitárias Culturais na (Trans) formação do Ensino/Aprendizagem de Línguas e Literaturas, organizado por Karim Siebeneicher Brito, Sílvia Regina Delong e Valéria de Fátima Carvalho Vaz Boni

disponível no link:https://uniaodavitoria.unespar.edu.br/noticias/curso-de-letras-unespar-uv-lancam-e-book/e-book-letras-i-sell.pdf 

Caio Ricardo Bona Moreira[1]

 

RESUMO:

O objetivo deste texto é ensaiar uma reflexão sobre o xamanismo e a poesia entendidos como artes da diplomacia, para usar uma expressão de Eduardo Viveiros de Castro. Interessa-nos perceber como determinadas textualidades artísticas e práticas do pensamento ameríndio constroem uma relação poética e política com os objetos de seu conhecimento, aliando de forma eficiente os domínios da ética e da estética. Pensamos, por exemplo, em autores como Ailton Krenak, Kaká Werá Jecupé e Davi Kopenawa. A pergunta que nos move é a seguinte: Como o pensamento poético e político de uma série de intelectuais indígenas contribui para a emergência de uma ética e de uma estética na prática da alteridade e no exercício de seu perspectivismo? Propomos um encontro imaginário entre Eduardo Viveiros de Castro e Mikhail Bakhtin para tentar responder à questão, ou não.

Palavras-chave: xamanismo – poesia – perspectivismo ameríndio

 

 

1.   O XAMANISMO EM PERSPECTIVA

 

 

Parece que, para os índios Ianomami,

no dia em que matarem o último xamã

e a última onça-pintada, o céu cairá.

Acredito piamente nisso. O céu já caiu uma vez.

Vai cair pela segunda vez se os xamãs e as onças

desaparecerem. Proponho também que se

façam experiências telepáticas com onças

para conhecermos suas reais necessidades.

 

Roberto Piva

 

 

Em suas reflexões antropológicas sobre o perspectivismo ameríndio, Eduardo Viveiros de Castro observou que o encontro ou o intercâmbio de perspectivas é “um processo perigoso e uma arte política”, ou seja, uma “diplomacia”. Ele se referia aí à prática do xamanismo amazônico entendida como uma habilidade que certos indivíduos têm de cruzar deliberadamente as barreiras corporais e “adotar perspectivas e subjetividades aloespecíficas, de modo a administrar as relações entre estas e os seres humanos” (2014, p. 358). Para compreendermos a dimensão intersubjetiva que está em jogo nesse argumento precisamos lembrar que na teoria do perspectivismo o elemento mais significativo diz respeito à concepção de que o mundo é habitado por diferentes espécies que aprendem a realidade de maneira distinta, ou seja, a partir de diferentes pontos de vista. Como consequência, o binômio Natureza e Cultura passa a ser entendido não mais como um conjunto de elementos distintos. Outros dualismos seguem esse princípio como aqueles da animalidade e da humanidade, do objetivo e do subjetivo, do particular e do universal etc. Esses elementos não deixam de ser entendidos como regiões do ser, “mas antes configurações relacionais, perspectivas móveis, em suma – pontos de vista” (idem, p. 349).

Para Viveiros de Castro, o modo como os seres humanos veem os animais e outras subjetividades que povoam o universo é diferente do modo como esses seres veem os humanos e se veem a si mesmos. Tradicionalmente, os humanos veem os humanos como humanos e os animais como animais. Em uma outra ótica, os animais predadores veem os humanos como animais de presa. Essa constatação transforma significativamente a forma como a dita humanidade se relaciona com a dita natureza e/ou vice-versa: “os jaguares veem o sangue como cauim, os mortos veem os grilos como peixes, etc” (idem, p.350). Ao tratar, por exemplo, do perspectivismo na cultura yawalapíti, Viveiros de Castro citou a seguinte frase: “Gente é macaco de onça” (idem, p.48). É assim que a onça nos vê, como bichos, ou melhor, como alimento. Poderíamos entender a partir disso que o que está em jogo no perspectivismo, então, é uma política do olhar, ou seja, um modo de ver, já que o ver passa a ser percebido como um “ver como”.


Eduardo Viveiros de Castro


Figuras especiais no perspectivismo ameríndio são os xamãs, seres interessados em administrar as perspectivas cruzadas, transformando os conceitos em elementos sensíveis ou os elementos inteligíveis em intuições. Tudo para concluir que os animais são gente ou se veem como pessoas. O xamã é ele próprio um “relator” real: “(...) é preciso que ele passe de um ponto de vista a outro, que se transforme em animal para que possa transformar o animal em humano e reciprocamente” (VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p.173). Há, por sinal, uma infinidade de narrativas indígenas, cosmogônicas ou não, que abordam metamorfoses do humano ao animal ou do animal ao humano. É o caso, por exemplo, da história da mulher que virou tatu, colhida da cultura caxinauá por Capistrano de Abreu e depois retraduzida pela linguista Eliane Camargo (2016). Trata-se de uma narrativa que aborda a questão do alimento para o povo huni kuin, mais conhecido como caxinauá, evocando as transformações como recorrentes e fundamentais na base de sua cultura[2].

 A capacidade de intercambiar perspectivas, abolindo inclusive os limites que separam o animal do humano e/ou vice-versa, bem como a natureza da cultura, faz do xamanismo uma arte política, até porque o xamã aparece nesse contexto como um interlocutor entre seres de natureza distinta, humanos (animais) e animais (humanos), ou espíritos e seres encarnados, ancestrais da tribo e forças da natureza etc.

Assim como o poeta, o xamã passa por um processo de despersonalização, ou melhor, de trans-subjetivação, que faz da origem de seu dizer uma presença estrangeira em si. Assim como o xamã, o poeta tem o poder de vivenciar uma experiência intersubjetiva que permite seu encontro com um Outro, daí a caracterização dessa atividade como uma arte da diplomacia. Não raro, um ritual xamânico tem como objetivo promover a cura ou orientar a vida social de uma comunidade, muitas vezes empreendendo uma viagem de interlocução e resolução de problemas a partir do contato com seres de outra realidade.

As textualidades ameríndias, compostas por cânticos sagrados, narrativas míticas, entre outras manifestações, formam a base literária de uma determinada cultura, fazendo do xamã uma espécie de poeta da tribo, ou mesmo um narrador. Naturalmente, o conceito de poiésis é ocidental e estranho a uma perspectiva extraocidental, no entanto, faz sentido no tratamento da produção em questão, pois a utilização de uma linguagem metafórica, com vocabulário específico, com tendência à artesania, e com finalidades não-pragmáticas e ritualísticas, é encontrada com frequência em algumas culturas indígenas. Tome-se como exemplo a presença das ñe´e porã, na cultura guarani[3].

O que ensaiamos aqui é uma reflexão sobre o xamanismo e a poesia entendidos como artes da diplomacia. Interessa-nos perceber como determinadas textualidades e práticas do pensamento ameríndio constroem uma relação poética e política com os objetos de seu conhecimento, aliando de forma eficiente os domínios da ética e da estética, para usar expressões da cultura ocidental. Boa parte dos pensadores indígenas têm escrito e militado em língua portuguesa, sua arte/arma de luta, não deixando de trazer para o exercício filosófico suas riquezas poéticas. A pergunta é complexa, desafiadora e difícil de ser respondida, mas não podemos nos furtar de fazê-la: Como o pensamento poético e político de uma série de intelectuais indígenas contribui para a emergência de uma ética e de uma estética na prática da alteridade e no exercício de seu perspectivismo?

A minha hipótese aqui é que o que chamamos de filosofia indígena - na falta de um termo melhor que traduzisse a produção do pensamento ameríndio, seja ele literário ou não -, é enriquecido pela dimensão poética que está no cerne das culturas originárias. O que estou sugerindo é que o pensamento produzido por uma série de intelectuais indígenas concilia com força as dimensões éticas e estéticas, consolidando um saber ao mesmo tempo filosófico e poético, político e artístico. Assim como a poesia e o xamanismo, essa produção parece fomentar uma diplomacia que fortalece o campo das ideias por meio do bom exercício da alteridade, como heterogeneidade fundante de sujeitos e perspectivas. É o caso, por exemplo, da obra de intelectuais como Ailton Krenak, Kaká Werá Jecupé e Davi Kopenawa. Não faremos aqui uma análise de suas poéticas – o que extrapolaria nosso espaço e nossos objetivos, embora tal aprofundamento fosse necessário para uma melhor compreensão do assunto -, mas apenas nos contentaremos em apontar e discutir as questões lançadas acima, tentando ensaiar perspectivamente possíveis relações entre o xamanismo e a poesia, e entre a alteridade e a intersubjetividade na fomentação de uma ética e de uma estética tal como se nos apresentam no pensamento ameríndio.

Davi Kopenawa

2.   XAMANISMO E POESIA

 

A origem do dizer no xamanismo é sempre sobrenatural, seja quando o sacerdote transmite com suas palavras o que ouviu dos espíritos ou quando o próprio espírito fala pela boca do xamã. Ou ainda quando o ritual apresenta um diálogo entre o sacerdote e outros entes sobrenaturais. Portanto, a atividade do xamã é por excelência intersubjetiva, pois, ao entrar em estado de transe, abre as portas de percepção para uma sobrenatureza. Esse sacerdote da cura, interlocutor de espíritos ancestrais da tribo, guerreia muitas vezes contra entidades malévolas para espantar as doenças ou transmite orientações de entes amigos, animais ou não, para a vida da comunidade, auxiliando-a em seu cotidiano[4]. Piers Vitebsky (2001) observa que os xamãs são, ao mesmo tempo, médicos, sacerdotes, místicos e trabalhadores sociais. Acrescentamos que o xamã/pajé é um feiticeiro da palavra, uma espécie de poeta ou prosador, que escreve ou transcreve cantos, poemas, narrativas, receitas, profecias, encantos, e ensinamentos em geral para uma comunidade. Muitas vezes, ao manipular as palavras, este obreiro inter-telúrico transforma a realidade. É o que acontece, por exemplo, nos casos em que rebatiza um doente com um outro nome para espantar a morte, porque a palavra é entendida como a própria alma.

O termo xamã, segundo Vitebsky (2001), deriva da língua evenca que é própria de um pequeno grupo de caçadores e pastores de renas de língua tungu da Sibéria. O termo acabou servindo para caracterizar variadas práticas ritualísticas ancestrais de uma série de povos originários de muitos lugares do planeta, dos yanomani da Amazônia até os dyukhade do Nepal, passando pelos bosquímanos do Calaári, pelos wanas da Indonédia, pelos dervixes sufis da Arábia, pelos sadus hindus, entre tantos outros. Os tipos de rituais são variadíssimos porque cada cultura possui suas particularidades metafísicas e cosmogônicas, mas em todos os casos presentificam uma atividade religiosa ou para-religiosa voltada para o contato com espíritos, tirando proveito em algum sentido dessa comunicação. Em boa parte das atividades xamânicas, os sacerdotes, geralmente escolhidos e preparados para exercerem essa prática, vinculam em seus rituais narrativas que muitas vezes se aproximam do que em nossa cultura chamamos de literatura. Os cantos sagrados proferidos em momentos específicos, ou até recebidos dos espíritos pelos xamãs, são textualidades profundamente poéticas. Em muitos casos, são textos que constroem narrativas muito particulares sobre a luta de agentes envolvidos em alguma questão ou querela:      

 

O xamã usa primariamente a narrativa para organizar as experiências numa série épica de iniciações, viagens e batalhas. O que se verifica não só reflete a atual situação do xamã ou do paciente mas é também parte de uma história. À medida que a narrativa se desenvolve no tempo, passa do problema à sua resolução. Os obstáculos são descritos apenas porque têm de ser removidos, e há uma analogia próxima entre a psicanálise e as “curas faladas” descritas (VITEBSKY, 2001, p. 78).  

 

Josely Vianna Baptista

Sobre a relação entre o xamanismo e a poesia, e pensando também nas traduções de textualidades ameríndias, Célia Pedrosa (2018) escreveu que tal coexistência representa um modo singular de articular estética, ética e política, tudo pautado por uma “polifonia da outridade”. Josely Vianna Baptista relembrou em uma das passagens do livro Roça Barroca o argumento de Georges Lapassade de que a poesia é uma das “raras formas de transe relativamente ritualizadas que ainda restam no Ocidente” (BAPTISTA, 2011, p. 15). O poeta Roberto Piva, um entusiasta do xamanismo, em vários momentos apontou para a íntima relação entre o xamanismo e a poesia. Em uma de suas últimas entrevistas, concedida para a revista Cult, ao ser questionado sobre uma possível relação entre a arte e a loucura, o escritor respondeu que o desregramento de todos os sentidos, de que falava Rimbaud, refere-se não propriamente à loucura, mas a um estado do transe: “Um estado de transe xamânico, porque Rimbaud era um alquimista, um xamã avant la lettre, que propõe mesmo a 'alucinação das palavras'; o termo é dele. Os artistas, como afirma Joseph Campbell, são os xamãs da sociedade contemporânea” (2000, s/p). O poeta Claudio Willer, grande interessado pelo surrealismo e pela literatura beat, vem realizando estudos e desenvolvendo cursos relacionando a gnose e o gnosticismo com as atividades xamânicas e poéticas. 

Claudio Willer


Outros casos poderiam ser citados. Paulo Leminski, por exemplo, no artigo “Pajé”, publicado no jornal Diário do Paraná, em 1977, e inédito em livro, tratou o xamã como o primeiro “designer” de linguagens e comportamentos. O escritor, influenciado naqueles anos pelos estudos da semiótica - que lhe chegavam principalmente por meio do Concretismo -, considerou os pajés como designers “per-versos” (o hífen frisando uma aproximação da pajelança com a poesia) que, violando a Ordem Suprema das Coisas, não produziam bens materiais mas sim espirituais. Duas passagens do ensaio chamam a atenção. Aquela em que o pajé é tratado como o sujeito que abole as fronteiras entre o eu e o outro, sintoma de uma alteridade radical, e uma segunda passagem em que o domínio do ícone se sobrepõe ao domínio do índice, fazendo do pajé um ser voltado para a poesia e para o sonho mais do que para a vida material: 

 

Suas imensas noites meditando, seus delírios produzidos por ervas, seus saltos paradigmáticos por cima do sintagma cotidiano dos outros - ele era o Outro, o Anti-Ser, num universo só de matéria, ele já era antimatéria, o Des-Outro, Trans-Pessoa. (...)

Sua alta consciência dos códigos o obrigava a inventar grafias, amuletos, talismãs, tábuas imprecatórias, runas, "winter-acounts": depois deles, só Guttenberg.

É à toa que os 1ºs textos foram escritos em terra, tabuinhas babilônicas de barro mais forte que o ferro hitita?

Contra a proximidade, propunham a similaridade. A vigília para todos, para ele - o sonho (1977, s/p).

 

Paulo Leminski

As presenças do sonho, da imaginação e da poesia, aparecem com primazia no discurso dos próprios pensadores indígenas. Tomemos como exemplo as reflexões poéticas e políticas de Ailton Krenak nas conferências que compõe o livro “Ideias para adiar do fim do mundo” (2019). Nele, o autor aborda a crise dos Estados Nacionais e a abstração civilizatória que nega a diversidade, a pluralidade das formas vida e as diferentes cosmovisões. Segundo ele, o tipo de humanidade zumbi que estamos sendo convidados a integrar não tolera o prazer, a poesia, a fruição da vida. É certamente contra uma visão apocalíptica que Krenak lança sua provocação de adiarmos o fim do mundo enquanto pudermos contar uma história. O pensador diz ter visto as diferentes manobras que seus antepassados fizeram e se alimentou delas, da criatividade e da poesia que inspirou a resistência desses povos. Uma imagem poética é então lançada: Ao apontar para a sensação de uma queda permanente, a de que estamos despencando, Krenak nos convida a aproveitarmos toda a nossa capacidade crítica e criativa para construirmos o que ele chama de “paraquedas coloridos”:

 

Há centenas de narrativas de povos que estão vivos, contam histórias, cantam, viajam, conversam e nos ensinam mais do que aprendemos nessa humanidade. Nós não somos as únicas pessoas interessantes no mundo, somos parte do todo (2019, p. 32).


Ailton Krenak

 
Kaká Werá Jecupé

 O autor cita o perspectivismo de Eduardo Viveiros de Castro para fundamentar a ideia de que os humanos não são os únicos sujeitos interessantes e que têm uma perspectiva. Mais adiante, retoma o elogio do sonho:

 

Quando sugeri que eu falaria do sonho e da terra, eu queria comunicar a vocês um lugar, uma prática que é percebida em diferentes culturas, em diferentes povos, de reconhecer essa instituição do sonho não como experiência cotidiana de dormir e sonhar mas como exercício disciplinado de buscar no sonho as orientações para as nossas escolhas do dia a dia.

Para algumas pessoas, a ideia de sonhar é abdicar da realidade, é renunciar ao sentido prático da vida. Porém, também podemos encontrar quem não veria sentido na vida se não fosse informado por sonhos, nos quais pode buscar os cantos, a cura, a inspiração e mesmo a resolução de questões práticas que não consegue discernir, cujas escolhas não consegue fazer fora do sonho, mas que ali estão abertas como possibilidades. (2019, p.51-52).

 

Essa dimensão do sonho aparece com força na obra de Kaká Werá Jecupé, um txucarramãe que foi criado pelos guarani, com os quais aprendeu os fundamentos do ser, entrando em contato com sabedorias ancestrais. No livro “Todas as vezes que dissemos adeus” (2002), o autor conta que seus espíritos instrutores, os Tamãi, o empurraram para a boca do jaguar, “essa yauaretê chamada cidade”, para que ele aprendesse a nossa língua e cultura “de pedra e aço”. Ele, então “devorou” o cérebro da cidade. E o sonho aparece. Ele conta que sonhou que os Tamãi lhe deram a incumbência de contar um pouco de sua história de vida e de revelar alguns mistérios da tradição milenar ensinada pelos povos originários:

 

Nesse sonho firmei o compromisso de traduzir da vermelha “escrita-pintura” de meu corpo para o branco corpo dessa “pintura-escrita”. Cumprindo a tarefa nesse relato, para tingir o que até então no mundo tem parecido “intingível”, a mistura do vermelho sobre o branco resultando na cor da vida (2002, p. 16).

    

No sonho, Jecupé aceita o desafio de ser escritor e de usar as suas palavras como arma de luta (txucarramãe, aliás, quer dizer, guerreiro sem armas). Em sua obra, ao mesmo tempo e de forma ecológica e poética, Kaká conta histórias, reflete sobre a dimensão sagrada dos conhecimentos ancestrais – abordando o xamanismo e outros saberes místicos e filosóficos não-ocidentais – e milita em prol de causas indígenas. O autor tem participado ativamente de debates nacionais e internacionais pelos direitos básicos dos povos originários. Um de seus livros mais recentes, “O trovão e o vento” (2016), trata do xamanismo tupi-guarani como um caminho de evolução do ser. Transformando o ser, o homem transforma o seu meio e o mundo, pois o indivíduo é, segundo Kaká, um microcosmo do Grande Mistério. Portanto, cada ser e cada coisa é, em si, “uma extensão e um espelho-reflexo do Todo”. Isso implica uma ética profunda, que parte do reconhecimento da unidade na diversidade” (2016, p. 57). Curiosamente, as bases desta filosofia se encontram na poesia. Refiro-me aos textos “Ayvu Rapyta” e “Ivy Tenondé”, que são poemas sagrados, de origem guarani, e que tratam do fundamento do ser, bem como da origem do mundo para essa etnia. Kaká os traduz no livro para o português e os comenta, relacionando-os com o xamanismo, trabalhando, assim, no limar entre a ética e a estética, perpassadas pelo horizonte do sagrado.   

É interessante observar que o que está em jogo no pensamento ameríndio é uma experiência ecológica que se expande do respeito pela floresta - e da luta pela preservação da tribo (bem como do mundo que é uma grande tribo) – para uma poética que concilia no texto questões ao mesmo tempo políticas, artísticas, místico-filosóficas e religiosas. Portanto, há uma confluência das dimensões éticas e estéticas que norteia o trabalho destes pensadores que acabam exercendo o papel de diplomatas dos povos originários e poetas-xamãs da tribo, levando para o mundo suas mensagens. Davi Kopenawa, por exemplo, é um xamã yanomami que ao mesmo tempo luta internacionalmente, junto à ONU e a outros órgãos, pelos direitos das comunidades indígenas. Recentemente, o antropólogo Bruce Albert transformou suas conversas com Kopenawa no importante livro “Queda do Céu” (2015). Nele, transcreve a fala do índio que apresenta uma longa reflexão sobre as cosmogonias de seu povo, sua relação como sagrado, por meio do xamanismo, suas sabedorias poéticas e suas lutas políticas pela sobrevivência dos yanomami. Kopenawa fala/escreve que não tem livros nos quais estão desenhadas as histórias de seus antepassados, mas as palavras dos xapiri estão gravadas no seu pensamento, no fundo de si. São palavras de Omana. São, segundo ele, palavras muito antigas, mas os xamãs as renovam o tempo todo. São palavras que vêm protegendo a floresta e seus habitantes. Agora é a sua vez – a vez de Davi - de possui-las para que no futuro todos possam desfrutá-las. Por isso aceitou revelar seus conhecimentos ao antropólogo que conquistou sua amizade:

 

Dessa forma, elas (as palavras) jamais desaparecerão. Ficarão sempre no nosso pensamento, mesmo que os brancos joguem fora as peles de papel deste livro em que elas estão agora desenhadas; mesmo que os missionários, que nós chamamos de “gente de Teosi”, não parem de dizer que são mentiras. Não poderão ser destruídas pela água ou fogo. Não envelhecerão como as que ficam coladas em peles de imagens tiradas de árvores mortas. Muito tempo depois de eu já ter deixado de existir, elas continuarão tão novas e fortes como agora. São essas palavras que pedi para você fixar neste papel, para dá-las aos brancos que quiserem conhecer seu desenho. Quem sabe assim eles finalmente darão ouvido ao que dizem os habitantes da floresta, e começarão a pensar com mais retidão a seu respeito? (2015, p. 65-66).

 

O conjunto dessas ideias nos convida a lançar uma série de perguntas: Como pensar na poética como o paraquedas colorido de que nos fala Krenak? O que nos ensina a “pintura-escrita” gravada por Jecupé? O que podem “as peles de imagens” que registram as sabedorias de Kopenawa e seu povo? Como pensar na literatura como um espaço ético e estético de encontro com o outro? Como pensar na imaginação e no sonho como elementos que podem de fato orientar a vida? Como vislumbrar a natureza da cultura sem abrir mão da cultura da vida? Como perspectivar a literatura como exercício xamânico e poético da diplomacia? Perguntas que nos movem aqui, incitando-nos a perceber nas poéticas ameríndias, bem como em sua rede de sonhos e imaginações, uma atividade de produção de conhecimento. Difícil responder a todas elas, mas saber fazer as perguntas já me parece um bom começo.

 

3.   LITERATURA COMO OUTRAGEM/OUTRAMENTO

 

Poderíamos apontar duas grandes noções diametralmente opostas que tentam, cada uma à sua maneira, caracterizar a literatura. Na primeira delas, a literatura é compreendida como linguagem elevada à sua potência máxima. A linguagem é compreendida como sinal do domínio do homem sobre os animais, sobre a natureza. É o que nos separa dela. Nessa perspectiva, a linguagem é entendida como uma espécie de máquina antropológica. E a literatura acaba sendo uma espécie de suprassumo da linguagem. Escrever é, a partir desse ponto de vista, separar o homem da natureza. A escrita aqui é um corte. E a literatura nesse contexto acaba sendo considerada como uma espécie de linguagem elevada. Viveríamos assim numa espécie de República das Letras, o que não diminui a barbárie, porque aquilo que separa o homem da natureza não torna o mundo melhor. Parafraseando Walter Benjamin, poderíamos dizer: “Nunca há um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie” (BENJAMIN, 1994, p. 225).

Na segunda noção, a natureza é pensada como produção de diferença. Platão, aliás, em Íon, define a poesia como uma linguagem extra-humana. Ou seja, há uma dimensão sobre-humana na palavra poética. A origem não humana da poesia, figurada na exaltação das Musas, é um sintoma disso. Na perspectiva da inspiração, poderíamos perguntar: quem diz “eu” quando poeta diz “eu”, já que a palavra vem de fora dele? Dialogando com Paul Valéry, poderíamos supor que a poesia não é apenas a hesitação entre o som e o sentido, mas também a excitação entre a natureza e a cultura. A linguagem não é necessariamente o que nos separa da natureza, mas o que produz dobras. A poesia nos lança para o corpo da natureza, promovendo o que poderíamos chamar aqui de exercício de “outragem”. A linguagem reenvolve o homem na natureza, reenvolve o homem no corpo do mundo. “Outragem” aqui é um exercício de “outramento”. O homem por meio da literatura se “outra”. Essa segunda noção é aquela que está ligada a uma concepção perspectivista que transforma a relação entre sujeitos dentro de uma dada realidade. É o que poderíamos chamar de uma abertura do olhar e da arte para a heterogeneidade, promovendo, assim, uma outra experiência ética:

 

Esta abertura da arte constitui uma ética da heterogeneidade que deixa irromper o olhar do outro e transforma a imagem em uma poética de alteridade. A ética que se revela neste processo se apresenta como práxis de afetação, de contato, de contágio. Trata-se de uma ética da alteridade e da heterogeneidade que transforma a arte em irrupção do olhar do outro. Isso porque a questão da ética pressupõe um reconhecimento do outro anterior à dicotomia eu-outro, mesmidade-alteridade. Neste sentido, ela é inseparável da política, porquanto a questão do político é a que nos vem do outro, a que é significada a partir do lugar do outro. Mas também da estética, já que este olhar do outro transforma a própria linguagem da arte, realiza um devir-minoritário da língua pela arte, revela uma presença irrepresentável, que coloca em jogo e desnaturaliza as formas fixas, homogêneas e excludentes da cultura dominante (CERNICCHIARO, 2015, 257).

 

A abertura da arte e do olhar que está explícita no argumento de Ana Carolina Cernicchiaro chama a atenção para uma ética da heterogeneidade que se abre para a poética da alteridade. Lembremos aqui que o encontro com a literatura, com seus narradores, é sempre um encontro com um outro, que nos ajuda a construir uma imagem de nós mesmos. Pode ser um caminho apaixonado, com-pathos, e em-pathos, sendo dessa maneira um ritual que promove diplomaticamente a empatia. O argumento de Cernicchiaro é um argumento-xamã, por isso político e poético em sua excelência. É uma fala que vem da floresta e que, sem saber, nos leva a um lugar curiosamente distante, à Rússia. Abramos aqui um parêntese. Invoquemos com nosso texto xamânico um sábio pajé, um velho griô, o filósofo Mikhail Bakhtin.

 

4.   BAKHTIN, O EU E O OUTRO, NÓS EM DIÁLOGO: CAMINHANDO PARA UMA IN-CONCLUSÃO

 

Em 2002 ou 2003, recém-egresso da graduação em Letras, assistindo a uma aula ministrada pelo professor João Wanderley Geraldi, num curso de Especialização em Língua Portuguesa, fui apresentado ao seu texto “A diferença identifica. A desigualdade deforma. Percursos bakhtinianos de construção ética e estética” (2007) – até aquele momento não publicado. Geraldi, ao longo daqueles encontros, nos motivou a ler com atenção e talvez pela primeira vez filósofos como Bakhtin e Michel Foucault, causando um abalo em nossas concepções sobre a política dos discursos. Lembro que o texto sobre Bakhtin chamara a minha atenção, mas nada mais do que isso. O curso acabou e voltamos à vida normal com a lembrança de aulas magníficas, no entanto, o texto ficou para trás. De lá para cá, inseri-me com gosto no magistério, não sem o permanente desassossego que acompanha a caminhada daqueles que constantemente se sentem aprendizes no universo complexo e prazeroso da profissão. Com os anos, fui me afastando da linguística – área que nunca deixei de apreciar – e me aproximando cada vez mais das pesquisas voltadas para a literatura, arte que me seduzia desde a infância e adolescência nos tempos de colégio. O texto de Bakhtin foi ficando para trás, mas não esquecido. Quase vinte anos depois, enquanto ensaiava as primeiras reflexões para o presente texto, imediata e misteriosamente o texto de Geraldi me voltou ao pensamento e o reli agora com outros olhos, numa outra enunciação.

Mikhail Bakhtin

No artigo, Geraldi transpõe o conceito de “excedente de visão”, oriundo da teoria estética de Bakhtin, para o mundo da vida, que é o mundo no qual não há um autor. Sua hipótese é a de que se estamos vivendo, temos um porvir e, portanto, somos inacabados. O nosso “eu” não domina, então, o todo acabado da vida. Por isso, para Geraldi, o mundo da vida é um mundo ético, embora possamos viver a vida esteticamente. O autor dá um exemplo, convidando-nos a imaginar que estamos no mundo e quem nos vê nos vê com o fundo da paisagem em que estamos: “A visão do outro nos vê como um todo com o fundo que não dominamos” (2007, p.44). Portanto, ele tem em relação a nós um “excedente de visão”. O que isso nos quer dizer? Que ele tem uma experiência de mim que eu próprio não tenho, e vice-versa de mim sobre ele:

 

Este acontecimento nos mostra a nossa incompletude e constitui o Outro como o único lugar possível de uma completude sempre impossível. Olhamo-nos com os olhos do outro, mas regressamos sempre a nós mesmos e a nossa incompletude (...) (GERALDI, 2007, 44).

 

João Wanderlei Geraldi

Daí Bakhtin nos falar que a memória é uma memória do futuro, pois é somente nele que se situa “o centro de gravidade efetivo de minha própria autodeterminação” (BAKHTIN, 1992, p. 141). O-que-deve-ser e o-que-é-esperado só se situa assim num tempo que não é o do presente nem o do passado. É da ordem do porvir:  

 

Enquanto a posição exotópica ocupada pelo Outro lhe permite um excedente de visão, pelo qual também nos orientamos na busca de completude e acabamento, o próprio sujeito desloca-se, no tempo, e estabelece no futuro a razão de ser de sua ação presente que, concretizada, torna-se pré-dado para futuras ações, sempre orientadas pelo sentido que lhe concede a razão perpetuamente situada à frente. Se, no mundo estético, o futuro da personagem e dos acontecimentos são desde já conhecidos do autor -, e são precisamente as formas de operar com este conhecimento na relação como herói que definem relações monológicas ou polifônicas nas narrativas – no mundo ético, tempo dos acontecimentos, cada um tem a responsabilidade pela ação concreta definida não a partir do passado – que lhe dá condições de existência como um pré-dado -, mas a partir do futuro, cuja imagem construída no presente orienta as direções e os sentidos das ações. É do futuro que tiramos os valores com que qualificamos a ação do presente e com que estamos sempre revisitando e compreendendo o passado (GERALDI, 2007, 45).

 

É a partir dos sentidos dessas palavras que Geraldi, recorrendo ao pensamento de Bakhtin, nos fala da importância de um “cálculo de horizontes de possibilidades” que a consciência de um excedente de visão nos oferece, porque é a partir da alteridade que não apenas entramos em comunhão com o outro, mas também nos constituímos como sujeitos, experimentando a nossa própria singularidade. Daí o título de seu texto: “A diferença identifica”. Mas o título fala também de uma desigualdade que deforma. Geraldi observa que quando o olhar para as construções estéticas deixarem de lado as classificações que tornam desigual tudo o que é diferente, “talvez reencontremos na experiência estética o que de comum compartilhamos como homens – a capacidade de criar” (2007, p.52). As reflexões nos ajudam a pensar não apenas no outro como constituinte e constituidor de nós mesmos, mas também na nossa responsabilidade ética no entendimento e na compreensão do outro. Poderíamos aqui refletir sobre as centenas de etnias compostas pelos povos originários do Brasil, bem como nos milhares de índios (sim, o termo é problemático), desrespeitados nos seus direitos básicos, como o direito a uma terra e outros direitos que formam uma vida digna. Pensamos aqui também no nosso compromisso ético no respeito, compreensão e valorização de suas poéticas e culturas, que nos convidam constantemente ao nosso próprio devir-índio, brancos-índios-brasileiros que somos. Relembremos que para Bakhtin, a nossa existência só se dá pela criação do outro, bem como pela necessidade estética absoluta do outro:

 

É nesse sentido que o homem tem uma necessidade estética absoluta do outro, de sua visão e de sua memória; memória que o junta e o unifica e que é a única capaz de lhe proporcionar um acabamento externo. Nossa individualidade não teria existência se o outro não a criasse. A memória estética é produtiva: ela gera o homem exterior pela primeira vez num novo plano de existência (BAKHTIN, op. cit, p. 55).

 

 Em uma bonita e derradeira passagem do ensaio de Geraldi, somos lembrados de que a incompletude e a inconclusão andam juntas. E é exatamente por isso que nossas identidades não se revelam pela repetição do mesmo, mas resultam de uma “dádiva da criação do outro” (2007, p. 48). Dádiva que nos permite olhar a nós mesmos pelo olhar do outro. É uma espécie de perspectivismo. Viveiros de Castro, tal qual Kafka, borgeanamente precursor de seus precursores. Viveiros de Castro precursor de Bakhtin?    

 

Apoderar-se da arte que se define pela diferença e é o lugar por onde podemos nos identificar; aprender a conviver com o inusitado; reencontrar sonhos abortados e, por fim, fazer ressurgir o sujeito - não como imagem de um deus criador com o qual cada um tem compromissos de concretizar na vida sua perfeição, à sua imagem e semelhança, nem como o sujeito todo poderoso certo e certeiro de sua racionalidade e de suas técnicas - e sim um sujeito frágil, humano demasiadamente humano, cuja identidade, estabilidade instável, se define pelos gestos de responsabilidade de ordenar a experiência do nosso fazer e do nosso padecer. Nossa liberdade maior, aquela que a arte nos ensina, é precisamente a capacidade de nos darmos uma lei (...) Esta liberdade de darmo-nos uma lei remete à noção de responsabilidade tal como definida por Bakhtin e certamente não tendo compromissos ontológicos outros que não com o próprio princípio supremo do ato ético - a relação concreta entre o eu e o outro, inscreve a lei a nos darmos na complementaridade que o excedente de visão do outro permite, porque diferente seu posto de observação; calculados nossos horizontes de possibilidades, defendendo, ainda que conflituosamente enquanto vivemos entre desiguais, a sociedade que nossa memória do futuro projetou, dando-nos acabamentos provisórios para com eles construirmos nossos roteiros de viagens: eles dirão de nós o que fomos (GERALDI, 2007 ). 

 

Aí faz sentido que os xamãs ocupem o lugar de interlocutores privilegiados de outros seres, tendo o poder, ao encontrar o outro, de ser-outro, trans-pessoa, ou poeta, tradutor de um ser que volta para contar uma história. No xamanismo, aquele que volta tem o poder de contar, o que ressignifica o conceito de experiência, pautada meramente pela noção de pobreza, tal como vemos, por exemplo, em Walter Benjamin. O espírito é aquele que pode voltar pela boca do xamã. É aquele, por vezes animal, que fala para o homem na boca do homem. O xamã é esse outro do Outro que se despersonaliza em perspectiva cambiando de lugares, formulando assim com mais presteza seus “cálculos de horizontes de possibilidades”. Os poetas-xamãs nos ajudam a interpretar a vida, porque nos convidam a esse câmbio permanente de subjetividades. Eu me constituo pelo olhar do outro. Os narradores nos ajudam a construir esteticamente uma imagem ética de nós mesmos. Perdoem o câmbio de perspectivas teóricas. O xamã traz Bakhtin para a festa na tribo. Vamos sim antropofagicamente misturando as linhas teóricas. O poeta celebra o contato com o outro. O que vemos faz mais sentido a partir do olhar daquele que nos olha. E vamos aprendendo a olhar juntos, de forma igual, sempre diferente. Todos em volta dessa fogueira vão cumprindo suas vocações diplomáticas. Como os espaços de conhecimento podem ser também espaços poéticos e políticos, rendemo-nos à alegria de celebrar nesse lugar, ao mesmo tempo, uma gaia ciência, a união do saber com a alegria, seja em “peles de papel” ou na “escrita-pintura” do corpo traduzida no branco corpo de uma “pintura-escrita”. A título de brincadeira, certa vez, o poeta Roberto Piva (2000) disse que as universidades deveriam ser transformadas numa coisa viva, com xamãs no lugar dos professores. Tudo para proporcionar aos alunos uma verdadeira iniciação.

 

5.   Referências:

 

BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.  

BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas vol. 1: Magia e técnica, arte e política. 7 ed. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994.

CAMARGO, Eliane (Org). Yuxabu Yaixni (A mulher que virou tatu). Tradução Eliane Camargo. São Paulo: Hedra, 2016.

CERNICCHIARO, Ana Carolina. Perspectivas Ameríndias na Estética Contemporânea”. In: Crítica Cultural. Palhoça, vol. 10. núm. 2, 2015 (p. 257-268).

GERALDI, João Wanderlei. A diferença identifica. A desigualdade deforma. Percursos bakhtinianos de construção ética e estética. In: FREITAS, Maria Teresa; JOBIM e SOUZA, Solange; KRAMER, Sonia (Orgs). Ciências Humanas e pesquisa: leitura de Mikhail Bakhtin. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2007. (p. 39-56).

JECUPÉ, Kaká Werá. O trovão e o vento: um caminho de evolução pelo xamanismo tupi-guarani. São Paulo: Polar Editorial; Instituto Arapoty, 2016.

____. Todas as vezes que dissemos adeus. 2 ed. São Paulo: Triom, 2002.

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. Queda do céu: palavras de um xamã yanomami. Tradução Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

LEMINSKI, Paulo. Pajé. In: Caderno Anexo do Diário do Paraná. 30 de junho de 1977. Disponível em:

< http://www.elsonfroes.com.br/kamiquase/ensaioPL54.htm> Acesso em 08 de março de 2021.

MOREIRA, Caio Ricardo Bona. Poéticas ameríndias: Perspectivismo e Transcriação canibal. In: Chuy: Revista de Estudios Literarios Latinoamericanos. N. 6 Buenos Aires, 2019. (p. 63-82). Disponível em: < http://revistas.untref.edu.ar/index.php/chuy/article/view/310>. Acesso em 10 de março de 2021.

PEDROSA, Célia. Josely Vianna Baptista: uma poética xamânica da tradução e da tradição. In: Alea vol.20 no.2. Rio de Janeiro, May/Aug 2018. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1517106X2018000200092&script=sci_abstract&tlng=pt Acesso em 09 de março de 2021.

PIVA, Roberto. Entrevista: Roberto Piva: Os artistas são os xamãs da sociedade contemporânea. In: Revista Cult. São Paulo, 2001. Disponível em: < https://revistacult.uol.com.br/home/entrevista-roberto-piva/> Acesso em 08 de março de 2021.

RISÉRIO, Antonio. Textos & Tribos: Poéticas extraocidentais nos trópicos brasileiros. Rio de Janeiro: Imago, 1993.

STIGGER, Veronica. Onde a onça bebe água. São Paulo: Cosac Naify, 2015.

VIANNA BAPTISTA, Josely. Roça Barroca. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

VITEBSKY, Piers. O Xamã: Viagens da Alma, transe, êxtase e cura desde a Sibéria ao Amazonas. Taschen: Köln, 2001.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. 5 ed. São Paulo: Cosac Naify, 2014.

____. Metafísicas Canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Cosas Naify, 2015.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo et al. Araweté: um povo tupi da Amazônia (3 ed. revista e ampliada). São Paulo: Edições Sesc, 2017.

 

 



[1] Professor de Literatura Brasileira e Teoria Literária na UNESPAR, campus de União da Vitória.

[2] Recentemente, Veronica Stigger escreveu a obra infanto-juvenil – para todas as idades – Onde a onça bebe água (2015), elaborada a partir da obra de Eduardo Viveiros de Castro. O livro trata de traduzir para uma forma narrativa as grandes questões filosóficas e antropológicas relacionadas ao perspectivismo, tendo como grande tema as transformações, inerentes à tradição mítica ameríndia, para a qual a ideia de transformação é central. A metamorfose de um homem em onça e vice-versa é um dos focos principais da história, o que nos faz lembrar de contos como o “Julián Darién”, de Horacio Quiroga, e o “Meu tio o Iauaretê”, de Guimarães Rosa.        

[3] Tivemos a oportunidade de nos aprofundar nas ñe´e porã no ensaio “Poéticas Ameríndias: Perspectivismo e Transcriação Canibal” (2019). Ali pudemos relembrar que os conceitos de poesia e de literatura são ocidentais, mas as “belas palavras”, as palavras adornadas, ou inspiradas, chamadas de ñe´e porã pelos guarani, são as referências que em sua linguagem e cultura mais se aproximam da poesia, em termos de aspectos sonoros e metafóricos. Trata-se, assim como na poesia, de uma linguagem voltada para a própria linguagem, cuja função não é comunicar, mas produzir acima de tudo beleza com a linguagem, com finalidades religiosas e/ou ritualísticas. Naturalmente, as metáforas são constantes nesse trabalho linguístico não-pragmático. Por exemplo, para designar a flecha, as ñe´e porã usam a expressão “pequena flor do arco”, ou para falar do cachimbo, usa-se a expressão “o esqueleto da bruma”. Com tais cantos, por exemplo, em um ritual de pajelança, não apenas se reconstituem os mitos cosmogônicos, mas também curam-se doenças, espantam-se maus espíritos, e preserva-se o mundo da destruição. Assim como o belo da poesia, o belo (porã) das ñe´e porã refere-se ao adornado, e não à beleza natural (MOREIRA, 2019, p.78).

 

[4] Belo exemplo de experiência poética xamânica pode ser encontrado no “Canto da Castanheira”, colhido na cultura araweté, e traduzido por Eduardo Viveiros de Castro (2017). Posteriormente, o poema foi transcriado por Antonio Risério (1993), no livro Textos & Tribos.