domingo, 22 de dezembro de 2019

Ciúme da Morte, de Ladislau Romanowski: apontamentos de leitura



Texto de Caio Ricardo Bona Moreira (UNESPAR) apresentado no I Encontro Internacional de Estudos Poloneses, na Universidade Federal do Paraná, em 02 de dezembro de 2019



Resumo:
O presente trabalho propõe uma leitura do romance “Ciúme da Morte”, do escritor Ladislau Romanowski, nascido no interior do Paraná (Mallet) e filho de imigrantes poloneses. Publicado em 1943, no mesmo ano em que veio a lume “O Ser e o Nada”, de Jean Paul Sartre, o livro de Romanowski foi contemplado em 1945 com o Prêmio Raul Pompeia, da Academia Brasileira de Letras. Segundo o parecer da Comissão Julgadora, a tessitura de “Ciúme da Morte” lembra os romances de Dostoiévski, e sua técnica seria semelhante a dos livros de Aldous Huxley. A partir de uma perspectiva comparatista, intentamos desenvolver uma análise que estabeleça possíveis relações entre o romance de Ladislau Romanowski e a obra desses autores. Ao inserir o escritor paranaense em uma rede que vai de Dostoiévski a Huxley, entre outros que exploraram o universo da loucura e da angústia em suas narrativas, como Graciliano Ramos ou mesmo Érico Veríssimo - que traduziu Huxley e a quem Romanowski dedicou “Ciúme da morte” -, teremos a possibilidade de retirá-lo da província, promovendo, assim, uma contra-leitura à crítica que Dalton Trevisan dirigiu ao autor na revista modernista Joaquim, nos anos 40.
Palavras-chave: Ladislau Romanowski – Literatura Paranaense – Romance Psicológico. 

“- Eu não matei! Juro que sou inocente!” (ROMANOWSKI, 1977, p. 17). Com essa frase, proferida em desespero pelo médico Armando, internado como louco e assassino em um manicômio, inicia-se o romance Ciúme da Morte, de Ladislau Romanowski, publicado pela Coeditora Brasílica, em 1943. O livro alterna duas narrativas, a de Dr. Armando, e a de seu amigo José de Vasconcelos, o Juca, com quem o protagonista trabalhara em um jornal chamado Gazeta. Depois de visitar o possível criminoso e de receber dele um manuscrito no qual o médico narrava a própria vida - da infância até o fatídico dia em que acabou no hospício -, Juca inicia uma viagem de Porto Alegre a Águas da Guarda, onde se hospeda em um hotel de águas termais. Durante a viagem e hospedagem, o segundo narrador, Juca, intercala a leitura do manuscrito de Dr. Armando com a descrição de suas experiências amorosas, bem como com a narração de uma jornada mental de reflexões sobre a vida e sobre o amigo. Estamos diante de dois narradores com personalidades diferentes, mas que igualmente tencionam os limites entre a razão e a loucura. Mais de uma vez, Juca se questiona em seu texto se o louco na verdade não seria ele próprio. Dr. Armando, por sua vez, integra uma linhagem de personagens loucos que na literatura brasileira vai de Simão Bacamarte, de Machado de Assis, até os mais contemporâneos, passando, por exemplo, por Fileto, de No Hospício, de Rocha Pombo, e Policarpo Quaresma, de Lima Barreto.
Um dos aspectos mais curiosos do livro parece ser a apresentação de um enredo construído sobre o discurso de um homem cuja sanidade é posta em questão. Se Dr. Armando é louco, que garantia de verdade ou razão há em sua narrativa, como justificativa para os atos cometidos? O livro é narrado sempre em primeira pessoa. Até que ponto podemos acreditar nela? Como em Shakespeare, razão e loucura parecem se amalgamar produzindo a tragédia que é o próprio livro. Seria a opção pela loucura uma forma do autor abordar verdades insuportáveis pelo senso comum, ou melhor, pulsões psicanaliticamente profundas? Seria a condição de loucura uma possibilidade para o narrador conquistar o que deseja por cima de toda e qualquer moral? Aprendemos com Foucault sobre as relações entre a loucura e o poder, bem como seus desdobramentos sociais. Muitas perguntas poderiam se somar a estas, mas como nosso tempo é curto contento-me em ensaiar um olhar sobre a obra, confrontando-a com outras, e analisando mesmo que superficialmente suas potencialidades estéticas, promovendo, assim, um resgate do romance deste ilustre paranaense, nascido no município de Mallet, no interior do Estado e infelizmente um tanto quanto esquecido.



Toda a narrativa do livro pode ser lida como o fruto de fantasias patológicas ou como o relato de uma vida movida pela paixão que levou Armando à perdição. O que vem antes, o crime ou a loucura? Vejamos um pouco mais a sinopse. Ao saber da doença terminal de sua noiva, o médico, tomado de furores irracionais, comete dois crimes. No primeiro, realiza uma experiência que acaba levando um doente à morte, na tentativa de testar um tratamento para a noiva. No outro, possui sexualmente a amada com tamanha violência que acaba matando-a. À medida que Dr. Armando descreve sua vida, aproximando-se do assassinato da amada, a narrativa vai ganhando ares surreais – como um intenso diálogo com a morte materializada como uma personagem – e ares trágicos que fazem lembrar por vezes uma peça teatral de Nelson Rodrigues. Aliás, Vestido de Noiva, do dramaturgo carioca, foi encenada pela primeira vez justamente em 1943.
No dia 24 de outubro daquele ano, o jornal paulista Correio da Manhã anunciava em uma resenha anônima a publicação de Ciúme da Morte, observando que há um drama gigantesco nas páginas deste livro, em que um sujeito incompreendido e possivelmente louco narra no hospício “o drama cruciante de sua existência atormentada e o desfecho doloroso de um grande amor”. Segundo a resenha, estamos diante de uma narrativa produzida por um homem genial “a quem os homens talvez por falta de compreensão encerraram entre quatro paredes de um manicômio” (Correio da Manhã, 1943, p. 37).


Ainda em 1943, foram publicados O Ser e o Nada, de Jean Paul Sartre, O jogo das contas de vidro, de Herman Hesse, e O pequeno príncipe, de Saint-Exupéry. O livro de Romanowski, que no período de lançamento ganhou o elogio de Afrânio Peixoto, é hoje um romance pouco conhecido entre as obras da literatura brasileira que vieram à lume na chamada segunda geração modernista, aquela que, segundo os manuais literários, vigorou com força entre 1930 e 1945. Pouco comparável a qualquer um dos livros que integraram o chamado Regionalismo de 30, Ciúme da Morte parece se ligar a uma linhagem romanesca menos reconhecida da literatura brasileira dos anos 30 e 40 que é a linhagem intimista, uma espécie de corpo estranho na produção cultural do período.
Acostumados a pensar nos romances de 30 apenas pelo viés social e regionalista, boa parte dos leitores acaba por desconsiderar uma série de obras que, explorando um viés psicológico, prefiguram temporalmente e esteticamente a literatura, por exemplo, de Clarice Lispector e Guimarães Rosa. Com isso não quero sugerir uma suposta parecença entre as obras de uns e outros, mas apenas sinalizar para o fato de que Rosa e Lispector não são os primeiros a romper no romance com uma longa tradição especificamente social, regional ou naturalista, que sempre fez tradição na literatura brasileira. Luis Bueno, aliás, já aprofundou essa discussão no ensaio “Guimarães, Clarice e antes”:

(...) os anos 30 são a época do romance social, de cunho neonaturalista, preocupado em representar, quase sem intermediação, aspectos da sociedade brasileira na forma de narrativas que beiram a reportagem ou o estudo sociológico. É claro que, nesse tempo, houve também uma outra tendência na qual pouco se fala, uma “segunda via” do romance brasileiro, para usar a significativa expressão de Luciana Stegagno Picchio, o chamado romance intimista ou psicológico, mas tão secundário que não teve forças para estabelecer-se como via possível no desenvolvimento do romance no Brasil (2001, 251).

Numa linhagem intimista e psicológica, alternativa ao sistema naturalista na nossa literatura, Bueno inclui, por exemplo, romances como Sob o olhar malicioso dos trópicos, de Barreto Filho, A mulher que fugiu de Sodoma, de José Geraldo Vieira, entre outros livros de escritores como Lúcia Miguel Pereira, Mário Peixoto, Cyro dos Anjos, Octávio de Faria, Lúcio Cardoso, Cornélio Pena e porque não dizer Dyonélio Machado, em Os Ratos, e Graciliano Ramos, em Angústia. Aliás, boa parte da obra do autor de Vidas Secas - bem como alguns outros romances de 30 -, poderiam escapar facilmente da nomenclatura “regionalista” que consolidou o cânone na segunda geração modernista. Difícil categorizar certas obras como meramente regionalistas ou intimistas. Romanowski poderia muito bem figurar entre esses autores cuja obra pode ser colocada como alternativa ao modelo predominantemente social e regional. Interessante perceber a influência de Dostoiévski em muitos desses autores do romance regionalista e ou intimista, o que demonstra a força de sua obra na produção literária brasileira do século XX.

Altino Flores e Ladislau Romanowski

Alfredo Bosi chamou a atenção para o fato de que ao lado da ficção regionalista, do ensaísmo social e do aprofundamento da lírica moderna, o romance introspectivo, vinha se afirmando lentamente entre os anos 30 e 50, “raro em nossas letras desde Machado de Assis e Raul Pompeia” (1994, p. 386). Certamente, um dos fatores que propiciaram a intensa produção do romance psicológico está ligado ao advento Revolução de 30: “caíram as máscaras mundanas que empetecavam as histórias medíocres do pequeno realismo belle époque (...)” (1994, p. 389). Segundo Bosi, o renovado convite à introspecção far-se-ia com “o esteio da Psicanálise afetada muitas vezes pelas angústias religiosas dos novos criadores” (1994, p. 389).
Ciúme da Morte exercita um aprofundamento psicológico que se direciona para o crescimento gradativo de uma tensão que gera no leitor um mal-estar que pode ser encontrado com facilidade no autor de Irmãos Karamazov. Aliás, em dois momentos específicos o autor russo é evocado nas páginas de Romanowski. No primeiro momento, Dostoievski aparece entre um conjunto de autores lidos com voracidade pelo Dr. Armando no tempo em que frequentou a Faculdade. Entre Nietzsche, Schopenhauer, Voltaire, Edgar Alan Poe, Freud e Hoffmann aparece o autor de Crime e Castigo. Em um segundo momento, quando depois da personagem realizar uma experiência em um doente levando-o à morte, surge o sentimento de culpa pelo suposto crime a assolar sua consciência:

A maleta que eu levava na mão pesava-me, como se dentro dela estivesse levando o peso de meu crime. Sim, eu levava nela o cadáver do homem que acabara de matar, em consequência de minha ambição! Precisava ver-me livre dela... Mas jogá-la fora seria deixar sinal por onde passei miserável, covarde, fraco... Isso não era prudente. Tive a impressão de que se havia encarnado em mim o Raskolnikolf, a personagem impressionante do “Crime e Castigo”, de Dostoievski (1977, p. 328).

Essa é apenas uma das possíveis aproximações entre as personagens de um romance e outro. As paisagens de noturna tensão psicológica em Ciúme da Morte caminham para um nonsense que me faz recordar por exemplo certas cenas de Cisne Negro, dirigido por Darren Aronofsky, bem como de alguns filmes de Lars Von Trier, ou dos filmes brasileiros Nina, de Heitor Dhalia e Durval Discos, de Anna Muylaert. 
Vale lembrar que em 1943 José Lins do Rego publica Fogo Morto, e Jorge Amado Terras do Sem Fim. Em uma outra linhagem vemos encenada pela primeira vez o já citado Vestido de Noiva, uma peça com nítidas intenções psicológicas. Também em 1943 vemos publicado o romance Dias Perdidos, de Lúcio Cardoso, cujo protagonista rememora com profunda angústia uma vida carregada de secretas culpas. Sete anos antes de Ciúme da Morte, Graciliano Ramos edita o romance Angústia, que faz do monólogo interior uma experiência narrativa intensamente voltada para os dramas psicológicos. Aliás, este romance de Graciliano e Ciúme da Morte, por si só, já renderiam uma leitura bastante pertinente. Ambos, diga-se de passagem, leitores de Dostoiévski.
Dalton Trevisan, no segundo número da revista modernista Joaquim, publicou o artigo “Emiliano, poeta medíocre”, um dos mais fervorosos ataques ao Paranismo, tendo como alvo principal o poeta simbolista. Depois de considerar este movimento como uma escola sem importância para a poesia paranaense e brasileira, bem como de rebaixar a obra de Perneta, o artigo alude a Ladislau Romanowski com o intuito não apenas de criticá-lo, mas também de situar a literatura paranaense anterior à produção da revista em um contexto provinciano. Cito a passagem:

Me entendam bem os chauvinistas. Porque em arte, não há prata de casa, é-se
Dostoiewski ou L. Romanowski, é-se Rimbaud ou … e pobre de quem lê “Ciúme da Morte”, em vez de Dostoiewski, por causa que um é comunista russo e, o outro, nasceu em Mal. Mallet… E, pois, hélas! Não se perca tempo, vamos aos valores supremos, a essas experiências decisivas de Rilke, Aragon, Drummond de Andrade (1946, p. 17).

Naturalmente, Trevisan intentava inserir-se em uma concepção literária mais cosmopolita, e como sua proposta literária demarcava um projeto nitidamente modernista, vanguardista, o escritor negava uma certa tradição, fundada principalmente pelo simbolismo, mas também aquela produção literária que estava de fora do paideuma joaquiniano. Romanowski integrava um conjunto de escritores que não estava à altura do que buscavam os jovens escritores modernistas do Paraná. Trevisan percebia uma certa presença de Dostoiévski na literatura de Romanowski, em especial em Ciúme da Morte, mas por outro lado apontava a distância entre elas. Ler Ciúme da Morte e não Dostoiévski  - por Romanowski ter nascido em Mallet - para o editor de Joaquim era lamentável. Curiosamente, é por meio de uma contra-leitura a Dalton Trevisan que situamos o horizonte do presente trabalho.
Descobrir, redescobrir, aprofundar, resgatar a produção de Romanowski são gestos que, por uma quase ironia dos acasos ou do destino, brotam justamente no Simpósio de um encontro internacional destinado a pensar a cultura polonesa – com ênfase no Estado do Paraná – e acredito que os motivos que movem nosso interesse pelo autor de origem eslava não está de todo desvinculado de seu espaço social de nascimento, no interior do Paraná, bem como sua ancestralidade polonesa. Mas não se trata, penso eu, apenas em lê-lo a partir dessa ligação identitária com o espaço de origem ou com o aspecto cultural que se materializa a partir de uma ligação genética. Trata-se também de partir dessa possibilidade de aproximação quase conterrânea com o autor apenas para de certa forma tirá-lo da província, situando sua literatura fora do espaço reservado ao regional, ao local – como se o autor fosse uma espécie de patrício – para ensaiar uma dimensão crítica capaz justamente de resgatar seus objetos artísticos. Ciúme da Morte, por sinal, não aponta para nenhuma ligação palpável com a cultura polonesa e ou paranaense, ao contrário de outros livros seus.  
Ler a obra de Romanowski a partir de uma perspectiva comparada, trazendo para o debate sua relação por exemplo com Dostoiévski e Aldous Huxley não para colocá-lo ao lado de clássicos internacionais numa intenção de acender uma vela ao paranaense, exaltando-o, mas para cotejá-lo com outras experiências na expectativa de lê-lo mais e melhor, reitero fora da província. Aliás, o livro, ao ser premiado pela Academia Brasileira de Letras, nos convida à sua leitura independente de ser escrito por um paranaense.      






Imagens raras de Ladislau Romanowski

Na sessão de 28 junho de 1945, a ABL outorgou ao livro Ciúme da Morte o prêmio Raul Pompéia de melhor romance. O volume 69 dos Anais da Academia traz o parecer da Comissão. Segundo os relatores A. Austregésilo, Múncio Leão e J. C. de Macedo Soares, a técnica usada pelo romance de Romanowski é a mesma dos livros de Aldous Huxley e a tessitura lembra os romances de Dostoiévski, “cuja pena muito impressionou o escritor”: “A não ser alguns descuidos de linguagem, alguns exageros descritivos, e certos transbordamentos de subjetivos postos nas meditações do Dr. Armando, poderíamos dizer que o livro é bom e merece a outorga por parte da Academia do Prêmio Raul Pompeia” (1945, p. 17).   
Os imortais da Academia observaram alguns elementos que revelavam boas qualidades do autor, a saber, as descrições paisagísticas, as considerações filosóficas e mórbidas do Dr. Armando, a análise do caráter de Lorena, bem como as posturas intriguistas de Dona Finoca. Nota-se, portanto, que um dos elementos que mais chamaram a atenção dos avaliadores foi a construção das personagens, bem como seus aprofundamentos psicológicos, o que de certa forma lhe chegara via Dostoiévski.  
  Se por um lado as aproximações a Dostoiévski são óbvias, as relações com Aldous Huxley são mais sutis, no entanto, não menos importantes. Lembremos que o parecer da Academia aponta para a influência da técnica de Huxley no livro de Romanowski. Vale observar que Ciúme da Morte é dedicado também para Érico Veríssimo que havia traduzido para o português o romance Contraponto, de Huxley, de 1932. É justamente esse livro no qual o autor norte-americano adaptou a técnica do contraponto musical para a literatura, o que nos leva a inferir que o parecer da Academia tinha em vista principalmente essa obra quando comparou Huxley e Romanowski. Sabemos que o contraponto nada mais é que a sobreposição de duas ou mais vozes melódicas em uma composição musical. Estamos aqui diante da polifonia, um dos conceitos chaves da obra de Bakhtin ao abordar a obra de Dostoiévski. Até que ponto a polifonia na obra dos quatro autores, Dostoiévski, Romanowski, Érico Veríssimo e Aldous Huxley, poderia ser pensada de forma comparativa. Eis uma proposta interessante que ultrapassada nosso espaço e tempo neste momento.
Em Contraponto, também chamado de romance-sinfonia, Huxley intercala várias narrativas, com diversos personagens, analisando suas relações conjugais bem como a vida intelectual no período entre guerras. As histórias de várias personagens vão se cruzando, gerando uma impressão polifônica. Romanowski ao intercalar as duas narrativas de Ciúme da Morte, acaba que fazendo o mesmo. Observemos também que cada um dos narradores modula uma linha melódica particular. Armando é esquizofrênico, impulsivo, louco, Juca é racional, meditativo, ponderado, no entanto, ambos são movidos por paixões.
Essa experiência do contraponto teria chegado a Romanowski possivelmente via Érico Veríssimo. Segundo Gérson Werlang, ao travar contato com Contraponto, de Huxley, “Erico ficou profundamente entusiasmado com a possibilidade de dar uma estruturação musical a uma obra sua”. O que o levou a escrever Caminhos Cruzados, provavelmente lido por Romanowski. Como o escritor paranaense morou em Porto Alegre é possível que os autores tenham travado contato na capital gaúcha, rendendo uma possível amizade. São perspectivas que se traduzem em possibilidades para futuras leituras, passíveis de promoverem ao mesmo tempo o resgate da obra de Romanowski, e a sua retirada do lugar provinciano que Dalton Trevisan o colocou, ensaiando, assim, uma contra-leitura modernista capaz de ampliar nosso olhar sobre ele.

Referências:

BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 40 ed. São Paulo: Cultrix, 2002.
BUENO, Luis. Guimarães, Clarice e antes. In: Teresa (Revista de Literatura Brasileira n. 2). Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas: Universidade de São Paulo. São Paulo: Ed. 34, 2001.
CORREIO DA MANHÃ. Livros novos: resenha sobre Ciúme da Morte. In: Jornal Correio da Manhã. 24 de outubro de 1943. São Paulo. (p. 37)
ROMANOWSKI, Ladislau. Ciúme da Morte. 2 ed. Curitiba: Parga Editora e Dist. De Livros Ltda, 1977.
TREVISAN, Dalton. Emiliano, poeta medíocre. In: Revista Joaquim (número 2). Curitiba, 1946. (p.17).
WERLANG, Gérson. A música em Caminhos Cruzados e O Prisioneiro. In: Revista Literatura e Autoritarismo (n.7). Universidade Federal de Santa Maria. Disponível em: <  http://w3.ufsm.br/literaturaeautoritarismo/revista/num07/art_02.php> Acesso em 01 de dezembro de 2019.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

2019 foi um ano fantástico





2019 foi um ano fantástico, como num romance de realismo mágico em que tudo pode acontecer



2019 foi um ano fantástico. Daqueles dignos de um romance em que tudo pode acontecer. O realismo mágico – também chamado de fantástico – popularizou-se na América Latina principalmente nos anos 60 e 70 do século XX, período obscuro de nossa história, e acabou se transformando em um movimento literário de grande força que abarcou escritores como Alejo Carpentier, Gabriel Garcia Márquez, Júlio Cortázar, entre tantos outros. No Brasil, autores como Murilo Rubião e José J. Veiga dialogaram fortemente com essa corrente. Não chegando a formar uma escola, o realismo fantástico teve conotações políticas em sua intenção de dar verossimilhança ao fantástico e ao irreal, denunciando muitas vezes ditaduras e sendo uma afirmação artística diante da arte europeia.

No realismo fantástico mortos ressuscitam, como em “Incidente em Antares”, de Érico Veríssimo, ou chove durante quatro anos em Macondo, como podemos ler em “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel Garcia Márquez. Um grupo de invasores e seus ruminantes montam acampamento em uma cidade - que poderia ser nosso país - como vemos na obra de J.J.Veiga. Em um conto de Murilo Rubião os invasores são dragões. É o que temos visto na vida real. E aí já não sabemos dizer mais se encontramos a vida real no fantástico da literatura ou se estamos mesmo vivendo o impossível. Os jornais e telejornais assemelham-se a novelas intermináveis cujos mocinhos e bandidos mudam de lugar a todo momento. As teorias literárias da narrativa chamam essas personagens de complexas ou redondas. Geralmente, são as mais interessantes na literatura. Na vida real - pelo menos aquela que vivemos fora do texto - talvez não seja bem assim. Ingênuos ou pelo menos crentes em algum tipo de redenção, buscamos as páginas finais do livro ou os últimos capítulos da novela para ver se conseguiremos, depois de tanta encrenca, ser felizes para sempre. Os telespectadores – entre os quais me incluo - assistem à novela procurando descobrir, antes do “The End”, se o espetáculo bufo faz parte da trama ou é só uma estratégia para desviar a atenção do público; se vale a pena dar ibope a essa novela ou se não seria melhor pedir que a emissora termine a trama um pouco antes para que uma outra possa começar. O problema disso tudo é que o fantástico está na vida real. Tudo seria engraçado ou divertido – promovendo a catarse – não fosse o trágico da vida fatalmente agora. Mas assim como nem tudo são flores, nem tudo é assim escuridão, evocando aqui as palavras de Hilda Hilst.

2019 foi um ano de boas leituras. Emocionei-me lendo as “Ilhas” e “Cristal”, de Wilson Bueno, a “Trilogia do Adeus”, “Catálogo de Perdas” e “Elegia do Irmão”, de João Anzanello Carrascoza, bem como “Juan Darién”, de Horácio Quiroga. Protestei com Georges Didi-Huberman lendo “Levantes” e “Remontagens do Tempo Perdido”. Lutei ao lado de Carlos de Assumpção, lendo “Protesto e outros poemas”. Lamentei o destino das mulheres africanas em “As alegrias da Maternidade”, de Buchi Emecheta.  Vivi meu devir índio lendo “Traduções Canibais”, de Álvaro Faleiros, “Curare”, de Ricardo Corona, “Totem”, de André Vallias, e “Ideias para Adiar o Fim do Mundo”, de Ailton Krenak. Saravei o Brasil de Luiz Rufino e Luiz Antonio Simas, lendo “Flecha no Tempo”. Matei a saudade de Raúl Antelo lendo “Ruinologia”, “Paraná”, e “Por que o Nu masculino com bastão de Eliseu Visconti é uma tela moderna”. Surpreendi-me com a escrita experimental de Gramiro de Mattos ao ler “Conspiração de Búzios”. Matei a saudade de Vinícius de Moraes com “100 Vinícius 100”, de Alex Solnik. Reencontrei João Cabral de Melo Neto nas páginas de “O Homem sem Alma”, de José Castello. Adentrei “A casa do Rio Vermelho”, de Zélia Gattai, para visitar Jorge Amado. Em “Uma arquiduquesa imperial entre nós”, de Franklin Cunha, lamentei o destino de Maria Antonia, a princesa austríaca que morreu pobre e esquecida no Sul do Brasil. Surpreendi-me com a literatura de Katherine Funke, Eduardo Silveira e Maria Cecília T. Koerich, lendo seus livros editados pela Micronotas. Descobri a rica obra do paranaense Ladislau Romanowski apreciando “Ciúme da Morte”. Lamentei o destino do Brasil do presente lendo “Essa Gente”, de Chico Buarque. Celebrei mais uma vez a poesia de Nicolas Behr em seu livro de poemas eróticos “Meio Seio”. Para não perder o costume, li o “Prins”, de César Aira. Apreciei os pequenos filmes literários do Gonçalo Tavares, em “Short Movies”. Celebrei a obra de Alejandra Pizarnik devorando “A Condessa Sangrenta”. Apreciei com muita curiosidade as revistas “Documents”, reunidas em livro pela editora Cultura e Barbárie, em seus textos de Georges Bataille e Carl Einstein. Comemorei a vida e obra de Paulo Leminski, lendo o “Roteiro” escrito por Rodrigo Garcia Lopes, editado pela Biblioteca Pública do Paraná.
Está aí uma mostra do meu 2019. São livros fantásticos. E o fantástico do texto tem sido bem mais interessante do que o realismo mágico a que temos assistido nos telejornais, diga-se de passagem. Mas não percamos a ternura, muito menos a capacidade de enxergar. Que 2020 nos traga bons livros! Notícias melhores! Para que tudo seja mais feliz e menos fantástico.

  

sábado, 23 de novembro de 2019

O que os índios têm a dizer?


Apontamentos sobre “Ideias para Adiar o Fim do Mundo”, de Ailton Krenak





Muitos brancos adoram teorizar sobre os índios. Sobre suas necessidades e sobre aquilo de que, aos olhos ocidentais, não necessitam. A terra, por exemplo. Muitos brancos adoram dizer que os índios já têm o suficiente e que devem aprender a viver na cidade, que essa história de “tribo” é coisa de um passado incivilizado e selvagem. Que essa história de demarcação já deu o que tinha que dar. O assunto é mais bem complexo do que parece. Por que não nos permitirmos ouvir dos índios o que eles têm a nos dizer? Comecemos a prestar atenção em suas palavras lendo a obra de um deles.
Há alguns meses, a Companhia das Letras publicou o livro “Ideias para Adiar o Fim do Mundo” (2019), de Ailton Krenak, que reúne três textos desse reconhecido ativista do movimento socioambiental e de defesa dos direitos indígenas. Desde os anos 70, Krenak tem se dedicado com afinco em um trabalho educativo e ambientalista, tendo se destacado na criação da União das Nações Indígenas (UNI), bem como tendo um papel determinante para a conquista do “Capítulo dos Índios”, na Constituição de 1988.
O texto que dá nome ao livro é uma conferência proferida no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, no dia 12 de março de 2019. Como a palestra é recente, Krenak consegue abordar questões bastante pertinentes – pela sua própria atualidade - que estão movimentando a política nacional em relação aos direitos indígenas.
O fato da palestra ser em Portugal é bastante sintomático, tendo em vista que as lutas indígenas remontam aos primeiros contatos entre brasileiros e portugueses no século XVI e de certa forma repercutem até hoje nos modos de vida das comunidades originárias.
Conceitos como os de Estados nacionais, humanidade, existência e liberdade são trazidos à tona por meio do pensamento do autor. O texto aponta para a triste realidade de uma humanidade que vai sendo “descolada de uma maneira tão absoluta desse organismo que é a terra”. Distantes do mito do monstro corporativo que ruma em direção ao “progresso” de uma comunidade entusiasmada com shoppings, prédios gigantescos, veículos espaciais, entre outros, alguns núcleos ainda se agarram nessa terra: são caiçaras, índios, quilombolas, aborígenes, a dita “sub-humanidade”. Para Krenak, a ideia de nós, humanos, “nos descolarmos da terra, vivendo numa abstração civilizatória, é absurda. Ela suprime a diversidade, nega a pluralidade das formas de vida, de existência e de hábitos”.
Educados desde sempre para sermos clientes, somos adulados pela sociedade até o ponto de nos tornarmos imbecis, lembra Krenak. Para que estarmos no mundo de uma maneira crítica e consciente se podemos ser consumidores? Para ele, essa ideia dispensa a experiência de viver numa terra “cheia de sentido, numa plataforma para diferentes cosmovisões”.
O pensador aprofunda a questão observando que nosso tempo é especialista em criar ausências. Ausências do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida: “Isso gera uma intolerância muito grande com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar. E está cheio de pequenas constelações de gente espalhada pelo mundo que dança, canta, faz chover”. O tipo de humanidade à qual estamos sendo convocados, segundo o autor, não tolera tanto prazer e fruição de vida. Não tolera inclusive a poesia, poderíamos acrescentar. Pregam com recorrência o fim do mundo, nos convidando ao fracasso alarmante de um amanhã sem esperança e alegria. Sem sonhos. Daí a provocação que inspira o tema: “adiar o fim do mundo é exatamente poder contar sempre mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim”. Como não lembrar aqui das “Mil e uma Noites”, em que Sherazade adia sua morte contando sempre uma nova história para o Sultão. Aliás, ouvir as histórias dos índios é uma forma interessantíssima de conhecê-los. Como gostar do que não se conhece? Aos conhecê-los melhor, talvez nós, os brancos, aprendamos a amá-los na fímbria da amizade, transformando o limite que nos separa no limitar de um contato amoroso. Ao conhecê-los talvez possamos nos dar a imaginar outras possibilidades de vida em sociedade.
Em um dos momentos mais marcantes da conferência, Krenak relembra que há centenas de narrativas de povos que estão vivos, que contam histórias, cantam, viajam e nos ensinam mais do que aprendemos nessa humanidade. Vem daí um de seus ensinamentos mais bonitos e importantes: “Nós não somos as únicas pessoas interessantes no mundo, somos parte do todo. Isso talvez tire um pouco da vaidade dessa humanidade que nós pensamos ser, além de diminuir a falta de reverência que temos o tempo todo com as outras companhias que fazem essa viagem cósmica com a gente”.
Essa realidade nos convida a promover uma reserva ecológica desse bem que nos salva. Falo das palavras sábias que vêm do chão mais profundo da terra, respeito pelo semelhante, pelo meio ambiente, por outras formas de ver e pensar a vida. Naturalmente, isso tudo deve estar fora da lógica do mercado, dos interesses pelo minério, do extrativismo sem responsabilidade, tudo aquilo que não é coisa de índio.


Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR),23 de novembro de 2019 - Caio R Bona Moreira

domingo, 3 de novembro de 2019

Ribamar Bernardes e a poesia incurável: Apontamentos sobre o livro 44 invernos (no prelo)








Humana, demasiadamente humana, a poesia de Ribamar Bernardes passeia entre girassóis e urubus com sua sanha e arma/palavra de franco-atirador. Remonta um mundo desmoronado e com suas vísceras nos apresenta uma imagem de seu eterno recomeçar. Ela, a poesia, nos faz vislumbrar aquilo que Warburg dizia sobre o artista como aquele que faz com que se compreendam mutuamente os astra e os monstra, a ordem celeste e a ordem visceral, o corpo celeste das estrelas e o corpo aberto em dissecação, o mundo da beleza e o mundo dos horrores, o mundo dos astros e o mundo dos desastres. Curiosamente, a flor do girassol está na terra olhando para o céu e o urubu no céu olhando para a terra: 

(...) tons de amarelo  
a se completar 
no inverno do girassol 
sem Sol 
sem carnaval 

pobre 
Van Gogh 

a miséria 
do girassol 
(...) 
corvos 
crepusculares 

até hoje tranquilos 
passeiam 

sobre os 
girassóis 
de 
Van Gogh. 

A poesia é esse mundo que nos cala para nos fazer gritar. Celebrando o que nos falta, ela é esse varal sem roupas, que nos move para muito além de nós. Trata-se de um vazio que não é o nada, mas o neutro, que nos permite ver mais longe, até onde o olhar permitir olhar, lá onde o mar faz a curva. Sua poesia, nesse sentido, é a rosa que, drummondianamente, nasce separada, mas não de todo apartada de nós. No meio dos urubus, um girassol nos seus cabelos. Da torre de marfim, seu palacete de papel, melhor se descortina aos leitores o inverno em que estamos mergulhados nas quatro estações do ano, nas quatro estações da vida. De janeiro a janeiro, da torre de marfim melhor se vê. Sua distância aprofunda o olhar e apartados olhamos mais e melhor. A poesia de Ribamar dessa forma é carne inquieta em sua abertura dissecada. Nela, versa-se sobre uma certa queda ou decadência que está na origem de um drama que mora dentro do poeta e que lhe dá a insígnia de estrangeiro (aquele que está fora), mas que o conduz paradoxalmente e de forma expressionista à sua lúgubre, porém delicada e doce interioridade. E do interior se abre feito flor para um espaço muito mais imenso. Sua obra, assim, é coisa mental. Mas – não esqueçamos - a mente está no corpo e só nele encontra a devida animalidade que, simultaneamente, o anima e atordoa. Poesia é coisa para ser amada ou deixada de lado. Celebro a chegada desses poemas como a vinda daquele anjo noturno que beira o caos das noites de insônia e de chuva numa xilogravura de Goeldi.  As sonoridades delirantes, dançando melopaicamente seu jazz em fúria, com sabor noir, tal qual Contrane em Blue Train, tocam delicadas mas não por isso menos rudes. Nunca olvidar o abismo. Nunca esquecer a barra pesando, o mundo pesado equilibrando-se nas costas de um deus/homem. E a poesia nos carregando nas costas na labuta diária da vida. Esse é o nosso único e verdadeiro mapa. Esse é o nosso Atlas. E a nossa mesa de (des)orientação. Nunca esquecer que o jazz é música se fazendo à medida que se toca, mas para atingir com presteza tal improviso é necessária muita criatividade, prática e disposição corajosa. Só assim é possível se equilibrar no abismo. Nesse quesito, Ribamar nada fica devendo. Tudo vibra em seus versos, tudo arde na arte de seu tom. O poema arde porque é palavra que vibra. A disposição peralta de seus versos evoca um Mallarmé lançando seus dados do alto do Cristo Rei, colina/bairro onde vive o poeta, em União da Vitória, interior do Paraná, sul do Brasil, pedaço do mundo. A aliteração, tão presente em seus versos, sugere o que chamo de dicção do desespero, uma certa figura que nos permite imaginar não só a visceralidade de sua poesia, mas uma certa intencionalidade vocal que reconstitui sua voz em uma virtual declamação, promovendo a apresentação do poeta a quem estiver disposto a ouvi-lo nesse palco que é o livro (poesia na voz é poesia no corpo). Som e sentido em suas linhas quebradas avizinham-se com presteza e clareza. Esses poemas são urgentes. Há que se ter pressa em lê-los, antes que o fogo apague e as cinzas voem para longe efetivando a transmutação de um estado da matéria em outro. Mas há quem diga ainda que é na iminência de seu desaparecer que a chama queima mais bela. Leia-se o poema “44 invernos”, dedicado a Jim Morrison: 

entre o aroma 
deixado pela tarde 
e a cor do céu na 
noite de julho 

é que existo 

após 
demasiado drama 
demasiada Brahma 
após  
aquele excessivo 
amarelo doença 
recobrindo meu obeso 
corpo 

existo 

após o Sol 
após o Som 

silêncio 
sombra 

após 
décadas de Dor 
de axila nova 
sem bolor 

existo 

novo
no 
mundo 

acordo 

da boca aberta 
escorre 
uma 
saliva 
cor de rosa 
cor de vida 

a gotejar na minha 
velha pança 
por isso sei 
agora 
existo 
tudo ao meu redor 
se quebra e dança. 

Há portanto uma beleza no sentimento de decadência que aponta não necessariamente para algo que está em extinção mas que revela antes de qualquer coisa a força simbólica de uma ruína, que em sua decadência nos apresenta a pervivência do que se extingue, revelando, assim seu eterno vir a ser, ou seja, seu originar-se. É o que talvez escrevesse Walter Benjamin depois de ler Ribamar. O poema de Riba (pela sua disposição gráfica, mas não apenas por isso) é sangue escorrendo pela parede da vida e pela página do livro. Sangue coagulado com cor de tinta da pena, ou tinto como o sangue de cordeiro imolado. Poeta visceral: aquele que expõe suas próprias vísceras, vísceras que são também, paradoxalmente, alheias. Eis a sua pena: a mesma palavra que nomeia uma condenação (pena) é aquela que representa a parte do corpo de uma ave que voa (o poeta é um albatroz) e também sua parte usada como instrumento de escrita, bem leve mas também afiada. Uma pena pode deixar uma cicatriz no corpo, na alma, ou no papel. O mar de seu nome (Riba-MAR), no entanto, é também aquele que faz cicatrizar uma dor como quando o sal é posto pela mãe sobre a ferida depois de uma surra no filho. A violência de suas palavras é excesso de amor pela vida, é amor de mãe (poeta) pelo filho (mundo/palavra). Mas seu nome me diz outra coisa. O dicionário informa que RIBA quer dizer "Margem alta de um rio", "pequena elevação sobranceira a um rio ou mar". RIBA-MAR. A elevação que se precipita sobre o mar. Como a Garganta do Diabo, em Cascais, onde Fernando Pessoa ajudou a forjar o desaparecimento de um bruxo (Aleister Crowley). Um salto em direção ao abismo. Um convite ao caos. Do alto se vê melhor a imensidão. Mas não se trata de forjar nos versos a sujeira do mundo, desistindo da vida, trata-se de ver na dor de toda lida o signo não só de um substantivo (lida é trabalho, esforço fora do comum, labuta), mas também o signo de um verbo disposto a ler o seu mundo e a descortiná-lo para nós em aurora (obra que se lê é obra lida). E isso tudo rima com vida. A beleza da poesia, com dor ou sem dor, é sempre a chama de um novo amanhecer. Quem lê-lo com atenção o achará em cada um de seus versos.

Publicado originalmente no jornal Caiçara de União da Vitória (PR), no dia 26 de outubro de 2019

sábado, 28 de setembro de 2019

João Anzanello Carrascoza e arte da perda


Foto: Luana Luíse

Nesta quarta-feira (25-09), tive o prazer de participar da 38ª Semana Literária do SESC, de União da Vitória, em suas dependências. O evento é promovido todos os anos por essa instituição e acontece simultaneamente em várias cidades do Paraná. Na ocasião, participei de um bate-papo com o escritor João Anzanello Carrascoza, um dos grandes nomes da literatura brasileira contemporânea, tanto no gênero conto como no romance. Com os acadêmicos de Letras (Português-Espanhol), da Unespar, e de Comunicação Social, da UNIUV, pudemos ouvi-lo discorrer sobre seus livros, sua linguagem e concepções literárias.
Carrascoza é um dos autores atuais mais comprometidos com um trabalho sofisticado no âmbito da linguagem, o que engloba um domínio impressionante da palavra, do ritmo do texto, bem como da construção de narradores complexos, de personagens profundos e da elaboração de belas histórias. Reconhecido já pela crítica e amplamente premiado, o autor lançou recentemente o romance “Elegia do Irmão” (2019), pela editora Alfaguara. O livro narra a história de uma despedida. A irmã do narrador é diagnosticada com uma doença terminal, não nomeada. A partir daí, ele passa a refletir sobre a morte e a vida dela com uma pungência que dá ao livro uma dimensão profundamente poética. O romance é sobre o luto previamente anunciado, sendo portanto uma reflexão fúnebre sobre a partida de Mara, mas é acima de tudo uma reflexão sobre a vida da irmã, ou melhor, de sua sobrevida por meio do livro como fato de memória. O tema da perda, aliás, é recorrente na obra de Carrascoza.


Em “Catálogo de Perdas” (SESI-SP Editora, 2017), por exemplo, o autor elabora uma série de pequenos contos a partir da ideia da perda, seja de um objeto, de um ente amado, de uma situação, de algo que se move a partir de uma ruptura e que com ela nos transforma. O livro - inspirado no Museu das Relações Partidas, sediado na Croácia – é composto a partir de um diálogo entre os contos de João e as fotografias de Juliana Carrascoza, sua esposa. Como não lembrar aqui da relação que o escritor Julio Cortázar estabelece entre o gênero conto e a fotografia, experiências que visam a capturar o leitor por meio de uma espécie de nocaute, e não de pontos corridos como faz o romance. Seu Catálogo atinge essa meta por meio de textos velozes e furiosamente delicados.


A já citada presença da perda pode ser percebida também na sua “Trilogia do Adeus” (Alfaguara, 2017), que reúne três livros: “Caderno de Um Ausente”, “Menina escrevendo com o Pai”, e “A Pele da Terra”. São três cadernos cujas histórias se entrelaçam. A primeira apresenta uma espécie de diário que um pai escreve para uma filha, na possibilidade de não vê-la crescer. O livro, de uma beleza singular, lembra por vezes a linguagem literária de Raduan Nassar, em “Lavoura Arcaica”. O pai conta a história da família, o nascimento da filha, apresentando a ela alegrias e tristezas da vida. “Menina escrevendo com o Pai” inverte a narração, já que quem narra agora é a filha para o pai. A jovem Bia revela sua visão de mundo e da relação familiar diante daquele que a gerou. O terceiro livro, por sua vez, apresenta o filho mais velho relatando uma viagem ao lado de seu filho, ou seja, o neto do primeiro pai, do primeiro narrador. Tanto em um caderno como no outro, a questão da perda do tempo, a sua passagem, bem como a perda de entes queridos é tematizada com recorrência. Essa trilogia é uma das grandes referências literárias de nossa prosa contemporânea. Nota-se o quanto as questões familiares movem a escrita de Carrascoza, nunca se transformando ali em um assunto piegas e sem graça.



Toda a escrita de Carrascoza está carregada de uma profunda dimensão poética, como podemos perceber em uma passagem de “Caderno de Um Ausente”, quando o pai revela à filha sobre a dor da vida: “(...) embora viver seja coisa grande, é também a força que lhe contraria, e não há como vencê-la, senão aceitando que a dor desenha em nossa pele, com esmero, um itinerário de pequenos cortes, ora arde um, ora sangra outro, e, às vezes, todos, juntos, nos queimam, em uníssono”. Essa dimensão poética, penso, insere Carrascoza em uma linhagem de grandes escritores da literatura brasileira que integra, por exemplo, o já citado Raduan Nassar, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, João Gilberto Noll, Wilson Bueno, Caio Fernando Abreu, entre outros. Lendo a obra de Carrascoza penso em como a boa literatura se projeta sempre como um lugar de encontro. Poderíamos imaginá-la também como um espaço de pervivência do perdido, do ausente, já que o sujeito está e não está no texto, como alguém que partiu está e não está conosco na memória. Nesse sentido, a literatura propicia um (re)encontro com aquilo que perdemos, ou a possibilidade de lutarmos contra a perda daquilo que amamos, já que escrever é (re)elaborar simbolicamente o vivido, possibilitando um encontro não apenas com o outro, mas também e principalmente consigo próprio.

(Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR), em 28 de Setembro de 2019)

sexta-feira, 13 de setembro de 2019

Micronotas: uma editora apaixonada e apaixonante









Imagino poeticamente a evolução da espécie consoante a quantidade de escritores, livrarias, sebos, bibliotecas e editoras existentes neste planeta que chamamos Terra. O nível cultural de um país poderia ser medido também por esses fatores. Livrarias, infelizmente, vão sendo fechadas dia após dia, numa crise que foi instaurada por motivos variados e que vem aumentando a cada ano. O que não significa que bons livros não estejam sendo escritos, editados e vendidos. Tome-se como exemplo a sobrevivência da Estante Virtual, bem como o surgimento de pequenas editoras, que têm apostado em autores desconhecidos ou quase, publicando pérolas literárias que dificilmente viriam a lume de outra forma. Aliás, o curioso e corajoso investimento em um mercado editorial mais artesanal e independente tem motivado a proliferação dessas pequenas (grandes) empresas para a alegria de amantes do livro. Uma delas é a Micronotas, de Joinville, que descobri recentemente.

Voltada predominantemente para a literatura, com ênfase na poesia (a menos culpada de todas as ocupações, como nos diria Waly Salomão), ensaios e artes visuais, a Micronotas é coordenada pela escritora Katherine Funke. Os livros dessa editora são produzidos a partir de uma confecção carinhosa, desde o trato visual, a diagramação, passando pelas capas artesanais, não esquecendo da qualidade literária de cada trabalho, minuciosamente escolhido e cuidado pela editora. 



A Micronotas acaba de lançar o belo “Pedra, poro, pele”, da poeta Maria Cecília Takayama Koerich, uma daquelas publicações que dá gosto de pegar além do prazer de ler. O livro é um corpo feminino cujos poemas são suas partes feitas de carne e palavras com toques de desejo e paixão. Esse livro é um escândalo de bom, a começar pelas lindas ilustrações de Isadora Weber, com destaque para a capa, um conjunto de flores derretendo. Suas pétalas pingam o prazer do corpo que é também a paixão da linguagem. E mora aí – na superfície da pele/papel - a política mais profunda que é a do corpo que pensa e deseja: “Desejo desejos / como trilhar no mundo / sem ser feita deles? / só é possível existir / na Via Láctea / por ele, apesar dele, com ele e para ele: início e fim”. O erotismo com toques de luxúria é a medida do corpo(poema) cultivado por Maria Cecília: “Pequena e voraz / flor sem espinho / úmida e quente / doce e cítrica /vermelha e rosada / macia / sutil / esconderijo / para um segredo íntimo /que nesse mundo / é só teu”. “Pedra, poro, pele” é um livro que deseja. Por isso talvez venha a ser sempre e profundamente desejado por seus leitores.     


A editora acaba de publicar também o estranho, bem escrito/montado e tragicômico “Tamanduá/Bandeiras”, de Eduardo Silveira. Esse livro de poemas é profundamente atual e difícil de ser abordado em um simples comentário, dois motivos que por si só já bastariam como um convite à leitura. Nem tudo o que se faz agora – no presente - é atual e naturalmente há uma necessidade de distanciamento fundamental para uma possível assimilação daquilo que foi feito. Mas não precisamos esperar o tempo passar e as formigas desaparecerem para lermos esse Tamanduá. Pelo contrário, há uma urgência de leitura em sua atualidade que penso contribuir para os sentidos e para a importância desse livro. A dimensão trágica e cômica da obra aparece, por exemplo, no poema “O amor possível”: “no instante mesmo em que / doidos doentes drogados / mendigos migrantes marielles / velhos violados violetas / dormem morrem vazam // dois jovens, um homem e uma mulher, / se amam num beliche / - e bem que eles fazem”. No livro de Eduardo Silveira podemos encontrar um banco, “desses para onde brasileiros enviam dinheiro ilegal”, uma tribo sem nome em uma floresta prestes a desaparecer (tanto a floresta quanto a tribo), um bombeiro velho e cansado de apagar o fogo, a canção do Roberto nos levando para Além do Horizonte, “Boldonaro” (personagem de nome simbólico – assim mesmo grafado-, amargo e fonicamente presidencial): “militarmente cansado / como se não descansasse mais do que duas horas / desde 1964”. Há uma opção claramente política no livro que faz o poeta defender uma história com “menos adornos e mais Adornos”. A obra, nesse sentido é um gesto potencialmente forte e, segundo o autor, o gesto ainda é “nossa única e verdadeira arma / muito antes de tacapes e bombas / os gestos”. O poema “Antes II” se encerra com um gesto que é também um convite: “dia e noite / até que a estrela exploda / haveremos de militar // militar / sem limites // abaixo a ditadura limitar”. A estrela do verso, o vermelho da capa, a palavra Bandeiras (no título), são signos que estão consciente ou inconscientemente atravessados por uma vontade política, mas não se trata de sua mera estetização. Tamanduá politiza a arte. E faz disso sua paixão. Assim como Maria Cecília, Eduardo Silveira é movido por desejo e paixão. São paixões diferentes, mas mesmo assim paixões: “acredito sobretudo nos que se movem por paixão”, diz um verso do livro.  


É também com paixão que se move a escrita de Katherine Funke em “Sem pressa”, que saiu no ano passado pela mesma editora. Trata-se de uma série de textos escritos entre 2010 e 2011, quando a autora/editora morava em Salvador. O título combina perfeitamente com o ritmo do livro, a lembrar um jazz deliciosamente tocado por alguém que sabe executar bem um instrumento e compor a música à medida que toca. Combina também com o tema de cada um dos seus textos com sabor de poesia e reportagem jornalística, desde um ensaio que divaga sobre um trabalho arqueológico deveras paciencioso no Museu Náutico do Forte de Santo Antônio da Barra até uma cósmica e curiosa narrativa sobre um chocolate artesanal, produzido sem pressa como a boa literatura. Outros textos lentamente saborosos se somam a esses, como aquele que aborda o trabalho do fotógrafo Christian Cravo, um dedicado ao cineasta Bernard Attal, outro à Stella Caymmi - neta de Dorival -, e um ensaio baianamente sonoro sobre Tamima, percursionista e luthier de pandeiros, confeccionados com muita paciência e amor, tal qual a escrita de Katherine, que trata tudo com muita atenção, concentrando-se em detalhes, mirando em minúcias, o que só enriquece seu texto. Sem pressa se vai longe! 
Eis aí três livros que honram o trabalho da editora. Penso que só é possível ser uma editora apaixonante se a mesma estiver permanentemente apaixonada pelos seus próprios livros. É o caso da Micronotas. 

Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória - PR,  no dia 14 de setembro de 2019.