sábado, 22 de dezembro de 2012

Alan Pauls, política da história e do corpo

Ao que tudo indica, Roberto Bolaño estava certo ao afirmar que Alan Pauls é um dos melhores escritores latino-americanos vivos. A obra do argentino foi uma das minhas grandes descobertas literárias dos anos de 2011 e 2012. El Pasado parece figurar entre os grandes romances latino-americanos ao lado de Paradiso, de Lezama Lima, Cien años de soledad, de Garcia Márquez, Rayuela, de Cortazar, e Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, para citar alguns. É para mim um dos livros mais bonitos sobre o amor, ou seja, sobre a sua impossibilidade. As quase 600 páginas do livro geraram leituras bastante distintas por parte da crítica. Se por um lado Ignacio Echevarría considerou o romance como excessivo ou “hipertrofiado”, por outro, Beatriz Sarlo viu em sua extensão algo necessário no processo de confecção. Em El Pasado é apresentado um período de vinte anos da vida de Rímini, um tradutor que depois de se separar de Sofía, com quem viveu treze anos, passa por um período de intensa crise. Outras mulheres passam a fazer parte de sua vida, no entanto, o passado sempre sobrevive como uma espécie de fantasma importuno, fato que o impede de prosseguir a vida com o espírito liberto e tranquilo.



Trata-se, sim, de um livro sobre o amor, o amor pelas mulheres, mas também pelo passado. Entre um e outro tipo de amor, a linguagem figura também como experiência amorosa. Se a experiência com o ser amado é "fantasmática", também é assim com o passado, fadado a ser descrito ali onde ele não está. É essa falta a origem de sua escrita. Talvez fosse possível ler o romance à luz dos Fragmentos de um Discurso Amoroso, de Roland Barthes. Não à toa Sarlo observou que em El Pasado estão os “abstracts” de múltiplos projetos ensaísticos. Aliás, um dos capítulos, apresenta um ensaio estético-biográfico de aproximadamente 50 páginas sobre um pintor imaginário. A pintura é uma arte que ronda o livro, assim como um tipo diferente de cinema parece operar implicitamente em suas descrições minuciosas. Sobre o livro, escreveu Reinaldo Moraes: “Página a página, cena a cena, a cada esquina de Buenos Aires, as "fábulas fabulosas" deste romance total se multiplicam de forma cinematográfica, barroca e exuberante. Pelo mesmo caminho segue a prosa em que são alinhavadas, fazendo o tempo recuar ou se dispersar em outras dimensões, numa operação ao mesmo tempo rigorosa e lúdica, que lembra um Proust que tivesse lido Cortázar”. Apesar das críticas negativas, apreciei a adaptação cinematográfica do livro realizada pelo Hector Babenco.

Beatriz Sarlo, no ensaio “La extensión”, de 2004, reunido no livro Escritos Sobre Literatura Argentina, chama a atenção para o fato de que o livro prescinde da história recente com uma radicalidade que obriga a pensar: “Pauls de modo programático, explora como pode ser uma ficção sem política e sem história, que abdica de suas alegorias ou de suas representações”. Nesse sentido, abre mão de uma ambientação precisa, afastando-se de uma linhagem da literatura argentina que busca pensar o reencontro com o passado como uma forma ainda possível de abordar os traumas da história. No entanto, discordo de Sarlo ao pensar a obra como uma “ficção sem política”. Se por um lado, o escritor abdica de uma determinada política “na” obra, por outro não abre mão de uma política “da” obra. Se por um lado escapa da onda de revisionismo que toma conta da literatura contemporânea argentina, por outro aborda o passado recente por meio de outras fórmulas, tocando as feridas abertas de uma forma talvez mais inteligente, e suplantando, assim, os códigos gastos da onda revisionista. Essa questão, em um certo sentido, parece funcionar bem em seus mais recentes livros: História do Pranto e História do Cabelo. Vejamos.

Tanto História do Pranto como História do Cabelo fazem parte da trilogia sobre os anos 70 na Argentina, que se encerrará com História do Dinheiro, ainda não lançado.


Em História do Pranto, Pauls aborda a tragédia político-militar na América Latina através da consciência de uma criança que emblematiza o “povo chorão” que é o argentino (A Taça Libertadores da América que o diga). O personagem possui a emotividade latina, mas é incapaz de se emocionar com os grandes acontecimentos da vida coletiva.
Ao ser indagado em uma entrevista sobre o motivo de ter fundido, no livro, o político e o íntimo, o público e o privado em um único registro, Pauls respondeu: “Estou cansado da História com maiúsculas, dos Grandes Feitos, dos Heróis, das Tragédias. Cansado da história que se deixa reger por hierarquias e sistemas de dignidade e indignidade que nunca são postos em discussão. É o que se passa com a década de 70 na Argentina. Tal como eu penso, a intimidade é o espaço para anular essas hierarquias e privilégios. Em História do Pranto, os sinais de intimidade (um gesto, uma relação de proximidade, a temperatura de um corpo), são imediatamente históricos, enquanto os sinais da história (um golpe de estado, um golpe guerrilheiro), são íntimos e repercutem no corpo”. Frisemos: os sinais de intimidade são históricos, assim como são íntimos os sinais da história. O privado e o público se embaraçam, fazendo lembrar por exemplo de um filme brasileiro O ano em que meus pais saíram de ferias, de Cao Hamburger.
Outra questão lançada ao escritor, na entrevista da revista Época, diz respeito ao processo de vitimização pós-ditadura. Ao ser indagado sobre o que acha do culto às vítimas da ditadura dos anos 70, Pauls responde: “O terrorismo de Estado produziu muitas vítimas na Argentina. A justiça tem que se encarregar de reparar essa situação e julgar os responsáveis por ela. O problema com a “cultura da vitimização” é que funciona como um princípio de autocomplacência e chantagem, ou como uma limitação para desenvolver uma vontade de poder. Há na condição de vítima algo que bloqueia toda a discussão, todo o exercício de linguagem, a invenção de horizontes. Frente a uma vítima, como frente a alguém que chora, não podemos fazer muito mais que nos apiedarmos, consolar, compadecer. O problema é que muitas vezes isso só faz consolidar o lugar de vítima”. É contra a lógica da vitimização que parece se insurgir a literatura de Pauls. Trata-se de um projeto que trabalha em um caminho diferente daquele que quer legitimar o lugar da vítima.

O argumento parece desmontar o argumento de Sarlo de que o que há em Pauls é a ficção sem política. Apesar da crítica ter sido endereçada ao romance El Pasado, cumpre observar que lógica semelhante ao História do Pranto parece funcionar no romance anterior, já que a história e a política parecem migrar para o universo íntimo e que repercute no corpo. Talvez o livro pudesse se chamar História do Amor, fazendo parte da coleção que está em curso.


Tanto em História do Pranto quanto em História do Cabelo, Pauls recupera os signos que nos legaram os anos 70: as camisas Castrillón, os gibis do Super-Homem, os filmes de Kurosawa, o saxofonista Gato Barbieri, as charges de Quino, os Panteras Negras, Jefferson Airplane, Genesis, Peter Frampton, para deixar em segundo plano as músicas de protesto e os grandes gestos revolucionários. Tudo isso sugere que o caminho é o inverso do revisionismo tradicional. Não se trata de partir dos grandes gestos para chegar na história daquilo que é íntimo de cada um, mas de partir do mínimo – o que se constitui a partir do próprio modelo de narrar, cuja lógica é microscópica – daquilo que é íntimo como o sentimentalismo ou o próprio cabelo, para só então vislumbrar a política e a História. E este gesto não deixa de ser político e já aparece em El pasado.

Em História do Cabelo, a intimidade dos fios é sintoma da História. Os cabelos compridos signos de rebeldia, os cabelos Black Power sinais de uma transformação social. Trata-se, naturalmente, de criar outros modos de pensar a história e outras formas de imaginar a comunidade. Em certo sentido, é o que parece desenvolver também, mas de maneira menos engenhosa, o argentino Martín Kohan, em livros como Ciências Morais e Duas Vezes Junho, que abordam a questão da ditadura por um viés distinto do revisionismo tradicional. No entanto, o que mais me chama a atenção nos três livros de Pauls não é a história nem a política, mas a escrita por ele maquinada, que produz um efeito bastante curioso ao apresentar frases longas onde são aglutinadas outras frases, produzindo o que o escritor chamou de “frases-habitat”, ou seja, frases que se convertem em lugares, lugares de pensamento responsáveis por um estilo deveras inusitado. Para Pauls, a linguagem não é transparente, mas algo “opaco, denso, cheio de camadas, onde gosto de cavar poços e túneis como um rato”.
A sintaxe é entendida como o “campo psicodélico da língua”, para usar ainda uma expressão do próprio autor.


Para perceber essa "escrita inusitada", basta ler o início de História do Pranto:

“Numa idade em que as crianças ficam desesperadas para falar, ele pode passar horas só ouvindo. Tem quatro anos, ou foi o que lhe disseram. Em face do espanto de seus avós e de sua mãe, reunidos na sala de estar da rua Ortega y Gasset, o apartamento de três cômodos do qual seu pai, que ele se lembre, sem nenhuma explicação, desaparece uns oito meses antes levando consigo seu cheiro de tabaco, seu relógio de bolso e sua coleção de camisas com o monograma da camisaria Castrillón, e ao qual agora volta quase todos os sábados de manhã, sem dúvida não com a pontualidade que sua mãe desejaria, para apertar o botão do interfone e pedir, não importa quem o atenda, com aquele tom crispado que mais tarde aprende a reconhecer como o emblema do estado em que fica sua relação com as mulheres depois de ter filhos com elas, que desça de uma vez!, ele cruza a sala com toda pressa, vestido com a patética roupa de Super-Homem que acaba de ganhar de presente, e com os braços estendidos para frente, numa tosca simulação do voo, pato com talas nas asas, múmia ou sonâmbulo, atravessa e estilhaça o vidro da janela francesa que dá para a sacada.”


quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Daniel Galera e o livro ensopado de crítica


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De todos os livros do Daniel Galera que li, “Barba Ensopada de Sangue” foi o que mais me chamou a atenção. Seguido de “Cordilheira”, este parece ser o seu romance mais bem acabado. Em apenas um mês depois de ser lançado (novembro de 2012), já recebeu o elogio reverencial de muitos jornais e revistas, chegando a despertar o interesse em países como Alemanha, Estados Unidos, Inglaterra e Itália, que compraram os direitos de publicação. Um longo trecho do romance foi apresentado na Granta, uma revista norte-americana dedicada a ficcionistas brasileiros.

Curiosamente, na mesma semana em que ganhei o livro, encontrei ao acaso num lapso de apenas um dia, três críticas a ele dedicadas. Uma na Cult, e as outras na Piauí e na Bravo! (Isso sem contar as inúmeras que ainda não vi). Protelei a leitura das resenhas com a finalidade de alcançar antes disso o ponto final de “Barba Ensopada de Sangue”. Independente do livro já ser considerado um clássico por boa parte dos críticos que escreveram sobre ele até agora, eu o leria, porque desde que me debrucei sobre “Até o dia em que o cão morreu” apreciei o estilo oscilante, entre o direto e o indireto, que caracteriza a prosa de Galera. Há algum tempo venho chamando a atenção dos meus alunos e dos meus amigos para o trabalho deste jovem escritor gaúcho, discípulo das oficinas de literatura de Luiz Antonio de Assis Brasil.

Apesar de todo o meu interesse pela obra de Galera (ele tem quase a minha idade), confesso que me senti um pouco perturbado com a quantidade de comentários que vieram à tona com seu novo livro. Como disse, encontrar um artigo no mesmo dia, sobre o mesmo livro, em três grandes revistas nacionais me fez lembrar imediatamente da conhecida frase de Nelson Rodrigues, “toda unanimidade é burra”. É claro que ela não vale para o talento de Galera, mas admito que me incomodou o fato de concentrarem o olhar com veemência em um mesmo livro no momento em que outros bons escritores estão publicando no país. A também gaúcha e grande escritora Veronica Stigger, no mesmo fim de ano (antes do Especial do Roberto Carlos), lançou o livro “Delírio de Damasco” e até agora não recebeu nenhuma atenção por parte da grande mídia. Terá sido pelo fato do livro sair pela “Cultura e Barbárie”, pequena grande editora da ilha de Florianópolis? Se fosse pela Companhia das Letras, teria sido diferente?

O fato de Galera despertar tanto a atenção me fez pensar: o que o livro tem de tão bom?

Eu já estava na página 128 das 422 e ainda não tinha encontrado a resposta para a pergunta. O fato do escritor arriscar mais de 400 páginas em uma carreira que nunca passou das 180 demonstra que está buscando alguma coisa realmente diferente. É claro que a questão pode ser pensada de outra maneira. Talvez não se trate de um objetivo que se propôs a cumprir, mas sim uma necessidade singular deste e não daquele livro. Como se o livro pedisse um tamanho e não outro. É assim com outros escritores. Guimarães Rosa, por exemplo, começou com narrativas menores até chegar no Grande Sertão, para depois disso voltar a escrever narrativas menores, chegando aos atos mínimos narrativos de Tutaméia. Aliás, o pesquisador italiano Ettore Finazzi-Agrò já tinha chamado a atenção para esse fato curioso na obra de Guimarães. A quantidade das páginas de “barba ensopada de sangue” não é um problema. Até aquilo que aparentemente é acessório faz sentido, contribuindo para dar uma densidade à obra que parece ter o tamanho exato, nem uma página a mais nem uma a menos.

Depois da metade do livro, comecei a ser absorvido pela narrativa. Antes disso, já tinha percebido que o livro tateava e lapidava com grande presteza sua prosa narrativa, alternando dois níveis de escrita, como apontou barthesianamente Francisco Bosco: “A um tempo engenhoso e desprendido, alternando entre o grau zero e o alto grau da escrita, um romance de aventura e mistério sobre a tenacidade dos homens, dos animais e da natureza”. No entanto, depois da metade, o autor parece caminhar com mais segurança pela trama, ou talvez sejamos nós que começamos a passear com maior intimidade no universo do livro.

                                              (foto publicada na revista Piauí (novembro 2012)

Muitas coisas me chamaram a atenção na obra. Gostaria de apontar algumas aqui:

- A ternura presente no contato do protagonista com a cachorra Beta, herdada depois que seu pai se suicidou. O pai, que comunicara ao jovem suas intenções de praticar a ação nefasta, havia pedido que o jovem sacrificasse o animal depois do suicídio, o que não aconteceu. Mario Sergio Conti, no ensaio “A hora e a vez do homem sem nome”, publicado na revista Piauí (Novembro de 2012), observou que desde Vidas Secas “um cão não tinha tanta proeminência num romance nacional”.

- Galera equilibra com eficiência as ações do livro, as reflexões do protagonista, e as descrições minuciosas da paisagem praieira de Garopaba. Nesse sentido, está interessado tanto nos fatos contados quanto nos procedimentos de escrita, agregando a eles a dimensão da lenda, que gira em torno do desaparecimento do avô naquela praia há algumas décadas. O acontecimento lhe fora contado pelo progenitor. É em torno desse mistério que gira o seu enredo, mas não é só ele o responsável pela qualidade do livro. O fato de produzir descrições bastante poéticas e minuciosas da praia faz com que o livro ponha em funcionamento uma espécie de “realismo íntimo”, para usar uma expressão de Karl Erik Shollhammer. No artigo “Barbas de Molho”, publicado na Cult (novembro 2012), o pesquisador escreve que Galera cria “um realismo peculiar e sensível pela densidade que consegue dar ao cotidiano sem excessos de gordura descritiva”. Trata-se de um realismo íntimo, em que “a intimidade não provém dos sentimentos nem das meditações psíquicas e diálogos interiores do protagonista senão da precisão descritiva dos cenários escolhidos e da empatia que sempre expressa com os humores do personagem”. Ainda sobre os procedimentos de Galera, vale lembrar de uma questão que faz de “Barba ensopada de sangue” um livro que merece ser lido. Galera articula com eficiência três outros caminhos, já apontados pelo crítico Vinícius Jatobá, em “Prosa Suja” (Bravo – Novembro 2012): “o caminho investigativo, em que o protagonista busca respostas para o desaparecimento do corpo do avô; o intimista, que tenta desvendar a mente alheia e fugidia do protagonista, revelada conforme ele encontra outros personagens; e o da narrativa de costumes, em que o cotidiano da cidade, com seu tempo moroso, é dissecado”. Misturar todas essas coisas sem perder o “fio da meada” é algo que faz de Galera um dos grandes jovens escritores do país. Talvez a influência da literatura de língua inglesa não seja fortuita em sua obra, que é também a de um tradutor (recentemente, Galera publicou uma tradução de David Foster Wallace).

O romance é sobre muitas coisas e sobre nenhuma ao mesmo tempo, como nenhum é o nome do protagonista (quero dizer, ele não é nomeado), como nenhum é o rosto do qual ele se lembra (O protagonista sofre de uma doença rara em que o rosto das pessoas nunca é memorizado). O livro é sobre a reinvenção de um homem, sobre a perda do amor, sobre o valor da amizade, sobre o amor por um cão, sobre a busca sem sentido das origens, sobre a relação do homem com o mundo, sobre as transformações de si oriundas de uma busca, sobre uma nova vida em uma outra cidade, sobre o arrependimento e o perdão, sobre o acerto de contas com o passado, sobre a consciência trágica da morte. Sobre outras coisas mais. E sobre nenhuma ao mesmo tempo. É por essas e outras que o livro me chamou tanto a atenção. Mas ainda preciso de um tempo para saber a dimensão exata das minhas impressões (isso aqui são só impressões: acendamos uma vela à crítica impressionista). Não é o melhor romance brasileiro da década, mas com certeza é um deles.