Caio Ricardo Bona
Moreira
Faixa
1 - Feliz foi Schelling ao conceber a junção entre a filosofia e a arte como
uma nova mitologia. Na falta de uma palavra melhor, a boa nova é essa velha
magia imaginativa que constitui uma outra possibilidade para o pensar. Ou
talvez seja ela - a mitologia - o fruto rico desse pensar diferente. Essa
junção seria evocada por Agamben (2005) como uma “mitologia crítica”,
problematizando a velha cisão da palavra que na história da cultura ocidental
colocou o filósofo de um lado e o poeta de outro. Gozar e pensar o objeto, ao
mesmo tempo, é uma forma de conhecê-lo de forma mais plena, observou esse mesmo
escritor pensante (Agamben, 2007). Talvez Schelling (1984) tenha sido o
primeiro a investir de forma contundente nessa vocação originária do saber para
o pensamento em comunhão com a poesia[1]. De mitos, aliás, as
culturas originárias estão cheias, embora a palavra não seja apropriada, pois
suas verdades culturais nada têm de fala falseada[2]. Mito é verdade que se
conta. Os itans iorubanos são tratados por integrantes de sua cultura como
fatos históricos portadores de muito saber. Canta-se porque os deuses existem.
Dança-se sob a força de uma existência divina porque ela nos assiste. O poeta
diria com um piparote: “Tudo o que não invento é falso” (BARROS, 2006, s/p). E
assim as sabedorias afro-ameríndias vão cantando suas filosofias. Pierre
Clastres, em A Fala Sagrada (1990),
por exemplo, apontou para uma forte metafísica no pensamento dos Guarani, a
quem chamou de pensadores. Os mesmos que pensam são aqueles que cantam.
Faixa
2 - Seria o momento de perguntarmos não se o pensamento afro-ameríndio está à
altura da filosofia ocidental, mas se a filosofia ocidental está à altura do
pensamento afro-ameríndio. Pensamento que (en)canta. (En)Canto que pensa. Uma
das histórias primordiais dos Mbyá-Guarani conta que no início dos tempos houve
um “ruído portador da sabedoria da natureza”, um som do cosmos se constituindo
a partir de uma linguagem fundadora (BAPTISTA, 2011, p.10). Tupã: desdobramento
de tu (som), pan (sufixo indicador de totalidade), o Grande Som Primeiro. Era
com essa divindade que os tupinambá, no período das invasões portuguesas,
respondiam aos religiosos estrangeiros quando perguntados a respeito de Deus. No
entanto, por mais que os tamãi tentassem
explicar, “aqueles que vieram do outro lado das Grandes Águas entenderam
somente um aspecto superficial desse Altíssimo Ser-Trovão” (JECUPÉ, 2001, p.
33). Tudo o que é grandioso para esse povo pensador, os Jeguakava, ou Adornados, se materializa ora e outra em som e
música. Ñe´en´g significa ao mesmo
tempo palavra e alma, mas também o cantar das aves. Linguagem, Ser e Canto
parecem se misturar nesse mundo no qual dar a palavra significa dar a própria
alma. Ayvu expressa o espírito como
som vivo. Kaká Werá Jecupé observa que Tupã Tenondé - que se desdobrou em
Seres-Trovões que o ajudaram a criar mundos e constelações -, preparou um
criador para a morada terrena, Tupy.
Tu (som), py (pé, assento), portanto “som-de-pé”, ou seja o ser humano: “Uma
tonalidade da Grande Música Divina colocada em pé, encarnada, dentro de um
assento chamado corpo-carne para entoar a criação no mundo terreno, para ser na
Terra o que sua essência sagrada é no céu – escultor, tecelão, cantor e transformador
da vida” (JECUPÉ, 2001, p. 79). O mundo nasce com as palavras como nos
“Primitivos Ritos do Colibri”. Nele, Ñamandu, nosso Pai verdadeiro, o primeiro,
desdobra-se de si mesmo, ou seja, “de uma pequena parte de seu ser-de-céu”
(BAPTISTA, p. 2011, p. 31), e é alimentado por um beija-flor com os frutos
divinos, para então fazer brotar a fonte da fala, que é um canto. O homem é
criado, então, mediante a criação da palavra, e por que não dizer da música. Por
isso Douglas Diegues escreveu que a procriação para os Mbyá-Guarani é acima de
tudo um “ato poético-religioso mais que um ato erótico-sexual (2006, p. 39). A
morte chega com a perda da palavra, por isso a palavra é o canto que gera a
vida. Nada mais justo que a cosmologia Mbyá-Guarani, nesse contexto, estar
registrada justamente em cantos sagrados formados pelas belas palavras, as ñe´e porã, linguagem comum aos homens e
aos deuses. Poderíamos tratá-la como poesia, apesar desse conceito se referir a
uma textualidade especificamente ocidental. As ñe´e porã compõe portanto uma fala especial que aponta não apenas
para a importância da palavra na cultura Mbyá-Guarani - diríamos que a palavra
é o seu cerne -, mas também para um uso particular dessa linguagem em situações
específicas. Como a poesia ocidental, trata-se de uma linguagem que produz um
estranhamento, uma fala afastada do cotidiano: por exemplo, para dizer flecha,
usa-se a expressão “pequena flor do arco”, para dizer cachimbo, usa-se a
expressão “esqueleto da bruma”. O ayvu porã
(fala adornada), jamais utilizado na linguagem comum, é usado apenas em
rituais religiosos, traduzindo noções abstratas, conjuntos de tradições
sagradas, conversas com deuses. Por que
não dizer poemas/cantos que traduzem uma particular metafísica? O som sagrado é
sempre amigo da sabedoria.
Faixa
3 - O que o pensamento pode aprender com a música? Como a música pode curar um
corpo ou um pensamento? No livro Namoros
com a Medicina, de Mário de Andrade, há um belo ensaio chamado “Terapêutica
Musical”. Nele, o autor de Macunaíma analisa o extraordinário poder de atuação
da música sobre os indivíduos, em especial a sua potência curativa. O escritor
lembra que toda arte tem ritmo, mas na música ele é puro. Por isso, o ritmo musical
organiza com mais energia a dinâmica do ser. Mário observa que a oratória, por
exemplo, pode eletrizar uma pessoa, bem como uma coletividade, mas isso se dá
principalmente pelos empréstimos que faz à música e à dança do que pelos
valores que lhe são essenciais: “Um discurso inteligentíssimo, cheio de
ciência, de raciocínios elevados e imagens raras, jamais não eletrizará
ninguém” (1972, p.14). Mas seu ritmo sim. Ou não é o ritmo que produz dobras e
redobras na arquitetura filosoficamente barroca de Gilles Deleuze? Não é principalmente
ele que me eletriza em Nietzsche e Schopenhauer, orquestradores de uma
filosofia musical? Como um ritmo no pensamento pode tocar o leitor encantando-o?
Nas culturas originárias, o ritmo predomina fortemente. A aceleração da
dinâmica do ser promove por meio do ritmo um efeito terapêutico, aguçando as
faculdades fisiológicas (ANDRADE, 1972). Pensemos, por exemplo, no ritmo suave
do ijexá que acompanha e dá forma à dança sensual da bela Oxum. O agogô
acompanha os atabaques, que nesse caso são tocados sem as baquetas de
percussão. Dos terreiros para os carnavais de rua, o ijexá predomina nos
afoxés, cortejos carnavalescos que evocam religiosidades de matriz afro. Aliás,
a palavra afoxé vem da expressão iorubana àfose,
que significa encantamento pelo som, pela palavra. A sedutora Oxum encanta com
sua beleza e dança. Só poderia vir acompanhada de um ritmo leve e cadenciado
capaz de enfeitiçar. A música traduz seus poderes e sabedorias. Ao lado da força do ritmo, o poder da música
está também na “indestinação intelectual do som” (idem, p. 19). O que significa que a música não contem imagens –
pelo menos no sentido tradicional - que são representações inteligíveis
recorrentes em quase todas as artes. A música, poderíamos pensar, está atrás,
então, do pensamento. Não é uma filosofia, mas pode lhe animar o espírito.
Faixa
4 - A música está atrás do pensamento, é constituída por ele e também o
constitui. É linguagem misteriosa além da própria linguagem. Não seria fortuito
lembrar que Clarice Lispector intitulou seu Água
Viva inicialmente como Atrás do
Pensamento. Poderíamos pensar que a bruxa Clarice intentou com essa ficção
captar o “é” da coisa, o mundo se fazendo, o “it”, o neutro, a quarta dimensão,
aquilo que está atrás do pensamento mas que só pode ser alcançado por meio do
pensamento. Eis a sua proposital contradição. E na impossibilidade de capturar
o “instante-já”, o agora das coisas se fazendo, a escritora apela para a
escrita automática - na materialização de um monólogo interior - e para a
expressão musical próxima do jazz, que se caracteriza como a arte musical do
improviso. Um jazz, como o pensamento, a partir de uma linha melódica, se cria
à medida que se toca: “Sei o que
estou fazendo aqui: estou improvisando. Mas que mal tem isso? improviso como no
jazz improvisam música, jazz em fúria, improviso diante da plateia” (1980, p.
23). Depois de ler Água Viva, Alberto
Dines, amigo da escritora, lhe escreveu: “Você venceu o enredo (...) A
gente vai encontrando a todo instante situações-pensamento. (...) É menos um
livro-carta e, muito mais, um livro música. Acho que você escreveu uma
sinfonia” (DINES apud GOTLIB, 2004, p. 33). Não à toa, Clarice, em Perto
do Coração Selvagem, aproximou o universo da música ao universo do
pensamento. Nesse livro, o pensamento é pensado como música se criando: “A
música era da categoria do pensamento, ambos vibravam no mesmo movimento e
espécie. Da mesma qualidade do pensamento tão íntimo que ao ouvi-la, este se
revelava” (1997, p.54). Pensaram também musicalmente, à sua maneira, Kerouac,
no clássico On the Road; José
Castello, no romance Ribamar; Julio
Cortázar, em contos e ensaios, entre tantos outros escritores/sabiás.
Faixa
5 - Mais do que pensarmos a música na cultura talvez fosse possível pensarmos a
cultura e o pensamento como música. A antropologia musical, aliás, tem pensado
na vida social como uma forma de performance. Anthony Seeger, em Por que cantam os kisêjê (2015), analisa
o papel da música no processo social a partir de um estudo de representações
musicais na etnia brasileira Suyá. Mais do que mostrar a influência da música
na vida social desse grupo, o pesquisador está interessado em investigar como a
música cria muitos dos aspectos da cultura e da vida em sociedade. A música,
nesse sentido, nos constitui. Por que não pensá-la também como uma forma de
pensamento? Durval Muniz de Albuquerque Júnior, ao prefaciar o livro Dissonâncias de Foucault (2012), de Daniel
de Oliveira Gomes, escreve que o pensamento possui uma música. Segundo ele, “há
em cada maneira de pensar, em cada prática filosófica uma dada musicalidade”
(2012, p.11). O pensamento dissonante, por exemplo, possui uma forma específica
de soar, uma dada maneira de sonar, o que leva o prefaciador a
observar que o livro em questão merece ser mais ouvido do que lido. O
prefaciador lembra que para Nietzsche a chave de explicação do pensamento
trágico grego estava no espírito da música grega. O mesmo se daria sobre
Foucault, lido por Gomes. Tanto em Nietzsche quanto em Foucault, a beleza não
advém apenas das teses que defendem, dos seus conceitos, “mas também da forma
em que são vazados, da poesia que deles emana” (2012, p. 13). Ou seja, da
música. Se o pensamento tem uma musicalidade, ele “é imediatamente do campo da
estética” (idem, p.16). Recuperar a
música do pensamento é dessa forma restituir a poesia à filosofia.
Faixa
6 – Mário de Andrade escreve sobre a importância da música para todos os povos,
o que pode ser percebido, por exemplo, na sua utilização litúrgica em todas as
civilizações: “Do culto do Vodu antilhano como no templo católico, no candomblé
como entre os esotéricos, nas cerimônias cinegéticas guaranis como na caça à
raposa dum baronete inglês (...)” (1972, p. 54). Não por acaso o artista
modernista, que era músico e professor de piano, interessou-se profundamente pela
feitiçaria nordestina, coletando em suas viagens étnico-culturais, pelo Norte e
Nordeste, cantos de macumba e catimbó. Mário aponta para o allegro e para a repetição violenta de um ritmo, como
característica desses cantos, aliados a uma coreografia na qual a sociedade
macumbeira vê Xangô descer na terra, encarnando-se no “cavalo-de-santo” para
fazer sua festa e realizar suas curas. Escreve ele: “Desculpem-me os médicos,
mas a cura se dá, cancros desaparecem, artritismos e nefrites, à custa de
amuletos orantes, pedrinhas vindas da África, galos pretos imolados, ou
garrafas de pinga esperdiçadas na onda da praia” (1972, p. 18). No entanto, há
uma ambiguidade que não pode ser desconsiderada. Observemos com ele que a
música pode ser um veneno ou um remédio, o que prova nos dois casos a sua força
exuberante na vida, em especial nas artes e em outras atividades do pensamento.
A música é phármakon. Tamísides,
observa Mário, aconselhava a música contra pestes e as feridas. Demócrates
utilizava da flauta para curar pestes. Na Odisseia,
de Homero, o canto das Sereias enlouquece e seduz. Do flautista de Hamelin às
orquestras de Auschwitz, passando pelos músicos do Titanic, a música agora
assiste à morte, sendo a trilha sonora para as águas da Calunga Grande, o mar
engolindo centenas de corpos, ou para a pá que joga terra sobre tantas covas
abertas. Em tempos de Covid 19, as lives
sertanejas oscilam entre o canto que alegra e o silêncio diante do caos social
e político. Lavemos as mãos e bebamos os mortos, enquanto o navio afunda.
Faixa
7 - Há um itan que conta uma aventura dos irmãos Ibeji, orixás que protegem as
crianças e que foram sincretizados no Brasil com Cosme e Damião, os santos
gêmeos do Catolicismo. Certo dia, Iku resolveu levar com ele todas as pessoas
de um determinado povoado. A comunidade desesperada, sabendo dos poderes deste
Senhor da Morte, foi consultar Orumilá, que por meio de seu oráculo de Ifá,
orientava a comunidade. O oráculo informou que somente os irmãos Ibejis
poderiam salvar a cidade. As crianças aceitaram ajudar o povo a se livrar da
morte, desde que recebessem como recompensa muitos doces, carurus e o direito
de sempre brincar. Os travessos contaram com a ajuda de outro irmão, o Idowu,
que no Brasil virou o Doum. Com um tambor encantando essas crianças começaram a
cantar para Iku, que ficou hipnotizado pela música das crianças, não
conseguindo mais parar de dançar. Os irmãos se alternavam na execução da música
para ela não parar. Cansado de tanto se mexer, Iku foi vencido pelos Ibejis.
Acordou que em troca da paz e do descanso, deixaria a cidade livre da morte. Os
arteiros irmãos foram, então, saudados e reconhecidos pelo povo como grandes
orixás, os pequenos grandes Ibejis. Luiz Rufino e Luiz Antonio Simas recuperam
essa história no livro Flecha no Tempo
(2019), para concluir uma bela lição: “Tambores encantados e crianças são
capazes de salvar a humanidade” (idem,
p. 47). O canto faz a morte dançar e nos convida a imaginar outras
possibilidades de vir a ser. Quantas lições podem ser imaginadas aqui? A
potência do jogo, da brincadeira, da vadiação como forma de sobreviver às
agruras da mortificação. O canto, a dança, como formas de alegria e jeitos de
adiar a morte. Distante da África e do Brasil, mas encantando com ideias
semelhantes, o menino Agamben, em seu livro Infância
e História (2005), evocou a história de Pinóquio, na cena do “País dos
Brinquedos”, para falar que a invasão da vida pelo jogo tem como consequência
uma grande mudança: uma paralização e uma destruição do calendário. O filósofo
escreve que em nenhum lugar como em um brinquedo, “poderemos captar a
temporalidade da história no seu puro valor diferencial e qualitativo (...)” (idem, p. 86). Se brincar é a melhor
forma de paralisar o calendário, então o jogo, e sua experiência de prazer e
alegria, tem o poder de adiar a morte. Há milhares de anos esse saber é cantado
em itans africanos. Na filosofia dos Ibejis ou nos Itans de Agamben, essa
sabedoria se espalha: Quem canta, seus males (a morte) espanta. Em um outro
Itan, Iansã, a Senhora dos Ventos, faz os egunguns dançarem ao som da música de
seu fole. Graças a isso, Oiá recebeu de Ogum sua coroa, alegrando os espíritos
ancestrais, fazendo a morte cantar e dançar.
Faixa
8 - Eduardo Viveiros de Castro observou que a “música dos deuses” é a área mais
complexa da cultura Araweté. Ele se refere aos cantos xamânicos que formam a
base de sua vida religiosa. O pajé é o “suporte das divindades”, o “cantador
das almas” (2017, p. 127). Na cultura Araweté, o pajé não incorpora o espírito
dos mortos, mas canta o que ouviu deles. Sua voz no momento de transe está
entrelaçada à fala dos ancestrais. Os cantos são, portanto, poemas com muitas
vozes. Sua vocação para o polifônico aponta para uma grande riqueza discursiva
que é criada à medida que se canta. Por meio da ingestão do tabaco e do uso do
maracá o pajé realiza seu trabalho espiritual recebendo orientação dos ancestrais
da tribo, por vezes travando lutas com espíritos malévolos, mas sempre
produzindo suas curas por meio da música. Davi Kopenawa apresenta em Queda do Céu (2015) uma linda e longa
análise descritiva dos rituais xamânicos yanomami, nos quais o pajé inalando o
pó de yãkoana faz descer, dançar e cantar os espíritos xapiri, trazendo luz e
cura. Antonio Risério, em seu livro Textos
e Tribos, investe na ideia do xamã como um “poeta-músico”. Sua música é um
“canto-viagem” que “condensa esteticamente o saber espiritual do grupo” (1993, p.
164). Interessado em uma poética afro-ameríndia, Risério transcria não apenas o
“Canto da Castanheira”, dos Araweté, como também uma série de Orikis,
poemas/cantos que os iorubanos utilizam para louvar os orixás. Em ambas as
culturas, africanas e indígenas, o transe está ligado à atividade musical.
Relembrando Georges Lapassade, Josely Vianna Baptista, em sua Roça Barroca, observa que a poesia é um
das “raras formas de transe relativamente ritualizadas que ainda restam no
Ocidente” (2011, p. 15). É justamente a poesia que Agamben reivindica para a
filosofia, ao observar que a cisão entre essas duas esferas testemunha a
“impossibilidade da cultura ocidental de possuir plenamente o objeto do
conhecimento” (2007, p.12). Quantas lições a música e a poesia afro-ameríndia
tem a nos dar? Como pode ela tornar mais musical e alegre uma filosofia do
porvir? Quanto afeto, música e alegria poderíamos trocar (ou tocar) em um
congresso acadêmico euro-afro-ameríndio ou num ritual de pajelança entre Davi
Kopenawa e Baruch de Espinosa ou Gilles Deleuze para tratarmos filosófica e xamanicamente
das relações entre corpo e alma? Reunamos Platão e Seu 7 da Lira, República e Macumba,
por que não?
Faixa
9 – Na macumba de Seu 7 da Lira era a música que curava. Ele ensinava o bem
viver por meio das canções. Feito um Orfeu com seu instrumento de cordas, pito
e marafo, o Exu incorporado na Mãe Cacilda de Assis fez o carnaval no bairro do
Santíssimo, no Rio de Janeiro dos anos 70 e 80. Aspergindo sua cachaça e
assoprando a fumaça de seu charuto nos fieis, Seu Sete Encruzilhadas da Lira
realizava suas curas, mas não sem a música que era o seu elemento fundamental.
O Exu cantava para curar. Por vezes pedia para um determinado fiel entoar a
canção que mais gostava enquanto o médico espiritual realizava seu trabalho.
Isso porque, segundo ele, a boa música elevava a energia do corpo e do
pensamento de um paciente, atuando no indivíduo por meio de sua frequência,
timbre, intervalos e melodias. Chocou a sociedade conservadora,
predominantemente católica naquele tenso período da ditadura militar. Sua fama
o levou a programas de auditório, como os de Flávio Cavalcanti e Chacrinha.
Reza a lenda que parte do público presente, bem como muitos que assistiam à
transmissão ao vivo em suas casas, entravam em transe durante suas
apresentações. Esse Orfeu e sua lira, médico dos pobres e desassistidos era um
Exu catiço da Umbanda e do mundo que elogiava a medicina e que dizia iniciar o
seu trabalho onde ela terminava. Na periferia carioca, Seu 7 recuperou o
sentido da música como um elemento curador, questão discutida desde a
antiguidade por filósofos como Platão e Aristóteles. O som das esferas de
Pitágoras e seus números sagrados estavam no cerne do trabalho do Exu, que tem
como nome um número e como ferramenta a canção. Há milhares de anos, o
esoterismo fala da energia de cada nota musical. A mensagem de Seu 7, também
chamado de Seu Saracura, era de paz e amor, do poder da alegria e da música
para contagiar a vida. Que lições Seu 7 e sua encantaria trazem para nossa
canhestra cultura ocidental? O que ele nos falaria hoje desse Brasil que
destrói terreiros em nome de uma “verdade” religiosa maior? O que pensaria Seu
7 desse mundo pautado por uma lógica de violência e terror a que nos levou o
“carrego colonial”? A noção de “carrego colonial” é apresentada por Rufino e
Simas (2019) na tentativa de romper com a lógica de mortificação, esquecimento
e desencanto pautada pela condição colonial entre nós. A figura de Exu,
inspirada no orixá africano que representa a desmesura, a pura hybris e ao mesmo tempo o poder
organizador do caos, tem inspirado curiosas reflexões no Brasil de hoje,
promovendo um reencontro do pensamento filosófico e pedagógico com as
sabedorias ancestrais que sofreram um silenciamento violento nos trópicos a
partir da diáspora africana. Celebro esse movimento. O Senhor dos Caminhos não
apenas fez da morte e do desencanto, da dor e da chibata, um convite à alegria,
à vida e ao movimento, inspirando o povo a cantar novamente antigas canções e a
praticar resistência – Exu faz o erro virar acerto -, mas também inspirou novas
matrizes religiosas, emprestando seu nome a uma vasta falange de catiços. Seu 7
da Lira é um deles. A sabedoria de Exu tem nos convocado a uma permanente
reflexão sobre a possibilidade de um outro pensar. Seu jeito matreiro de viver
e criar tem mostrado os limites das velhas formas do pensamento ocidental, o
nosso jeito acomodado de ser. Rompendo com todo e qualquer dualismo, esse
mestre da ambivalência, nos convida a uma revolucionária missão, transformarmos
os nossos erros em acertos, afinal de contas Exu matou um pássaro ontem com uma
pedra que só jogou hoje. Seu 7 da Lira ouviu bem o chamado e nas suas Giras do
Santíssimo, não cansava de dizer: “Nem todo mal é mal, nem todo bem é bem. Há
mal que vem para o bem, como há bem que vem para o mal”. E gargalhava, e
cantava. (En)cantar é uma forma não só de vencer a morte, mas principalmente o
desencanto, pior forma de morte, o que Simas e Rufino (2019) chamaram de
“política do desencantamento”, a ser vencida por flechas, tambores, caroço de
dendê, sabedoria ancestral e muito axé. Em suas mensagens, Seu 7 Encruzilhadas
da Lira nos convidava a reencontrar uma vida de alegria e conhecimento através
do (en)canto. A Corrente de Amor, frequentada por até trinta mil pessoas, cantava
à meia-noite, no Terreiro de Mãe Cacilda: “Seu 7 Rei da Lira é meu protetor,
seu 7 Saracura cura a minha dor”. Em meio a uma sociedade predominantemente
católica, racista, e preconceituosa com religiosidades de matriz afro, Seu 7 da
Lira[3] escancarava a Umbanda e a
Quimbanda em pleno horário nobre nas grandes emissoras de televisão, afirmando
uma potência cultural afro-brasileira por meio da música e da macumba. A figura
de seu 7 parece sintetizar todas as faixas desse texto. Como o nosso pensamento
pode aprender a ser mais musical com todas essas outras canções? O que pode
essa poesia sequestrada devolver em forma de música a um exercício ocidental do
pensar e do viver? Ou melhor, como pode esse pensamento estar à altura de seus
sons? Cantemos. Axé!
Referências:
AGAMBEN,
Giorgio. Estância: a palavra e o
fantasma na cultura ocidental. Trad. Selvino José Assmann. Belo Horizonte:
UFMG, 2007.
____.
Infância e História: Destruição da
experiência e origem da história. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte:
UFMG, 2005.
ANDRADE,
Mário de. Namoros com a Medicina. 3
ed. São Paulo: Martins; Brasília: INL, 1972.
BAPTISTA,
Josely Vianna. Roça Barroca. São
Paulo: Cosac Naify, 2011.
BARROS,
Manoel de. Memórias Inventadas: a
segunda infância. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2006.
CLASTRES,
Pierre. A Fala Sagrada: mitos e cantos
sagrados dos índios guarani. Trad. Nícia Adan Bonatti Campinas: Papirus,
1990.
DIDI-HUBERMAN,
Georges. Imágenes pese a todo: memoria
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Ibérica, 2004.
DIEGUES,
Douglas. Viagem ao Orvalho em Chamas. In: SEQUERA, Guillermo. Kosmofonia Mbya Guarani. São Paulo:
Mendonça & Provazi, 2006. (O morto q fabla)
GOMES,
Daniel de Oliveira. Dissonâncias de
Foucault. São Paulo: Lumme Editor, 2012.
GOTLIB,
N. B. A descoberta do mundo. In: Clarice
Liespector: Cadernos de Literatura Brasileira. São Paulo: Instituto
Moreira Salles, 2004.
JECUPÉ,
Kaká Werá. Tupã Tenondê: a criação do
Universo, da Terra e do Homem segundo a tradição oral Guarani. São Paulo:
Peirópolis, 2001.
KOPENAWA,
Davi; ALBERT, Bruce. Queda do céu:
Palavras de um xamã yanomami. Trad. Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo:
Companhia das Letras, 2015.
LISPECTOR,
Clarice. Água Viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
____.
Perto do Coração Selvagem. 7 ed. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
RISÉRIO,
Antonio. Textos e Tribos: poéticas
extraocidentais nos trópicos brasileiros. Rio de Janeiro: Imago, 1993.
SCHELLING.
Friedrich Von. Obras Escolhidas.
Tradução, seleção e notas de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril
Cultural, 1984.
SEEGER,
Anthony. Por que cantam os Kisêjê.
Trad. Guilherme Werland. São Paulo: Cosac Naify, 2015.
SIMAS,
Luis Antonio Simas; RUFINO, Luiz. A
flecha no tempo. Rio de Janeiro: Mórula, 2019.
SIQUEIRA,
Cristian. O Fenômeno Seu Sete da Lira:
Cacilda de Assis, a médium que parou o Brasil. Porto Alegre: BesouroBox,
2020.
[1] Depois dele, Goethe e Baudelaire
valorizaram com presteza a imaginação como uma forma suprema de conhecimento, o
que em ambos os casos nos leva ao trabalho de Georges Didi-Huberman, que tem
relacionado de forma curiosa o pensamento poético e crítico-filosófico em seus
estudos sobre imagem: “Para saber hay que imaginarse” (2004, p. 17).
[2] Naturalmente, a distância entre
Schelling e as culturas originárias como aquelas que fundamentam um pensar
afro-ameríndio é grande. Mitologia pode significar coisas diferentes para suas
mentalidades, mas em ambos os casos trata-se de pensar/imaginar numa forma
encantada ou poética de conceber e/ou representar a realidade.
[3] A figura de Seu 7 da Lira é
amplamente apresentada no livro O
Fenômeno Seu Sete da Lira: Cacilda de Assis, a médium que parou o Brasil,
de Cristian Siqueira (2020).