terça-feira, 30 de novembro de 2021

Apontamentos para um mosaico poético-filosófico-musical: o ensaio de um (en)canto afro-ameríndio

 

Caio Ricardo Bona Moreira

 

 

Daguerreótipo de Schelling, Hermann Biow, em fevereiro de 1848

Faixa 1 - Feliz foi Schelling ao conceber a junção entre a filosofia e a arte como uma nova mitologia. Na falta de uma palavra melhor, a boa nova é essa velha magia imaginativa que constitui uma outra possibilidade para o pensar. Ou talvez seja ela - a mitologia - o fruto rico desse pensar diferente. Essa junção seria evocada por Agamben (2005) como uma “mitologia crítica”, problematizando a velha cisão da palavra que na história da cultura ocidental colocou o filósofo de um lado e o poeta de outro. Gozar e pensar o objeto, ao mesmo tempo, é uma forma de conhecê-lo de forma mais plena, observou esse mesmo escritor pensante (Agamben, 2007). Talvez Schelling (1984) tenha sido o primeiro a investir de forma contundente nessa vocação originária do saber para o pensamento em comunhão com a poesia[1]. De mitos, aliás, as culturas originárias estão cheias, embora a palavra não seja apropriada, pois suas verdades culturais nada têm de fala falseada[2]. Mito é verdade que se conta. Os itans iorubanos são tratados por integrantes de sua cultura como fatos históricos portadores de muito saber. Canta-se porque os deuses existem. Dança-se sob a força de uma existência divina porque ela nos assiste. O poeta diria com um piparote: “Tudo o que não invento é falso” (BARROS, 2006, s/p). E assim as sabedorias afro-ameríndias vão cantando suas filosofias. Pierre Clastres, em A Fala Sagrada (1990), por exemplo, apontou para uma forte metafísica no pensamento dos Guarani, a quem chamou de pensadores. Os mesmos que pensam são aqueles que cantam.

Grafismo indígena

Faixa 2 - Seria o momento de perguntarmos não se o pensamento afro-ameríndio está à altura da filosofia ocidental, mas se a filosofia ocidental está à altura do pensamento afro-ameríndio. Pensamento que (en)canta. (En)Canto que pensa. Uma das histórias primordiais dos Mbyá-Guarani conta que no início dos tempos houve um “ruído portador da sabedoria da natureza”, um som do cosmos se constituindo a partir de uma linguagem fundadora (BAPTISTA, 2011, p.10). Tupã: desdobramento de tu (som), pan (sufixo indicador de totalidade), o Grande Som Primeiro. Era com essa divindade que os tupinambá, no período das invasões portuguesas, respondiam aos religiosos estrangeiros quando perguntados a respeito de Deus. No entanto, por mais que os tamãi tentassem explicar, “aqueles que vieram do outro lado das Grandes Águas entenderam somente um aspecto superficial desse Altíssimo Ser-Trovão” (JECUPÉ, 2001, p. 33). Tudo o que é grandioso para esse povo pensador, os Jeguakava, ou Adornados, se materializa ora e outra em som e música. Ñe´en´g significa ao mesmo tempo palavra e alma, mas também o cantar das aves. Linguagem, Ser e Canto parecem se misturar nesse mundo no qual dar a palavra significa dar a própria alma. Ayvu expressa o espírito como som vivo. Kaká Werá Jecupé observa que Tupã Tenondé - que se desdobrou em Seres-Trovões que o ajudaram a criar mundos e constelações -, preparou um criador para a morada terrena, Tupy. Tu (som), py (pé, assento), portanto “som-de-pé”, ou seja o ser humano: “Uma tonalidade da Grande Música Divina colocada em pé, encarnada, dentro de um assento chamado corpo-carne para entoar a criação no mundo terreno, para ser na Terra o que sua essência sagrada é no céu – escultor, tecelão, cantor e transformador da vida” (JECUPÉ, 2001, p. 79). O mundo nasce com as palavras como nos “Primitivos Ritos do Colibri”. Nele, Ñamandu, nosso Pai verdadeiro, o primeiro, desdobra-se de si mesmo, ou seja, “de uma pequena parte de seu ser-de-céu” (BAPTISTA, p. 2011, p. 31), e é alimentado por um beija-flor com os frutos divinos, para então fazer brotar a fonte da fala, que é um canto. O homem é criado, então, mediante a criação da palavra, e por que não dizer da música. Por isso Douglas Diegues escreveu que a procriação para os Mbyá-Guarani é acima de tudo um “ato poético-religioso mais que um ato erótico-sexual (2006, p. 39). A morte chega com a perda da palavra, por isso a palavra é o canto que gera a vida. Nada mais justo que a cosmologia Mbyá-Guarani, nesse contexto, estar registrada justamente em cantos sagrados formados pelas belas palavras, as ñe´e porã, linguagem comum aos homens e aos deuses. Poderíamos tratá-la como poesia, apesar desse conceito se referir a uma textualidade especificamente ocidental. As ñe´e porã compõe portanto uma fala especial que aponta não apenas para a importância da palavra na cultura Mbyá-Guarani - diríamos que a palavra é o seu cerne -, mas também para um uso particular dessa linguagem em situações específicas. Como a poesia ocidental, trata-se de uma linguagem que produz um estranhamento, uma fala afastada do cotidiano: por exemplo, para dizer flecha, usa-se a expressão “pequena flor do arco”, para dizer cachimbo, usa-se a expressão “esqueleto da bruma”. O ayvu porã (fala adornada), jamais utilizado na linguagem comum, é usado apenas em rituais religiosos, traduzindo noções abstratas, conjuntos de tradições sagradas, conversas com deuses.  Por que não dizer poemas/cantos que traduzem uma particular metafísica? O som sagrado é sempre amigo da sabedoria.       

 

Mário de Andrade e seu piano

Faixa 3 - O que o pensamento pode aprender com a música? Como a música pode curar um corpo ou um pensamento? No livro Namoros com a Medicina, de Mário de Andrade, há um belo ensaio chamado “Terapêutica Musical”. Nele, o autor de Macunaíma analisa o extraordinário poder de atuação da música sobre os indivíduos, em especial a sua potência curativa. O escritor lembra que toda arte tem ritmo, mas na música ele é puro. Por isso, o ritmo musical organiza com mais energia a dinâmica do ser. Mário observa que a oratória, por exemplo, pode eletrizar uma pessoa, bem como uma coletividade, mas isso se dá principalmente pelos empréstimos que faz à música e à dança do que pelos valores que lhe são essenciais: “Um discurso inteligentíssimo, cheio de ciência, de raciocínios elevados e imagens raras, jamais não eletrizará ninguém” (1972, p.14). Mas seu ritmo sim. Ou não é o ritmo que produz dobras e redobras na arquitetura filosoficamente barroca de Gilles Deleuze? Não é principalmente ele que me eletriza em Nietzsche e Schopenhauer, orquestradores de uma filosofia musical? Como um ritmo no pensamento pode tocar o leitor encantando-o? Nas culturas originárias, o ritmo predomina fortemente. A aceleração da dinâmica do ser promove por meio do ritmo um efeito terapêutico, aguçando as faculdades fisiológicas (ANDRADE, 1972). Pensemos, por exemplo, no ritmo suave do ijexá que acompanha e dá forma à dança sensual da bela Oxum. O agogô acompanha os atabaques, que nesse caso são tocados sem as baquetas de percussão. Dos terreiros para os carnavais de rua, o ijexá predomina nos afoxés, cortejos carnavalescos que evocam religiosidades de matriz afro. Aliás, a palavra afoxé vem da expressão iorubana àfose, que significa encantamento pelo som, pela palavra. A sedutora Oxum encanta com sua beleza e dança. Só poderia vir acompanhada de um ritmo leve e cadenciado capaz de enfeitiçar. A música traduz seus poderes e sabedorias.  Ao lado da força do ritmo, o poder da música está também na “indestinação intelectual do som” (idem, p. 19). O que significa que a música não contem imagens – pelo menos no sentido tradicional - que são representações inteligíveis recorrentes em quase todas as artes. A música, poderíamos pensar, está atrás, então, do pensamento. Não é uma filosofia, mas pode lhe animar o espírito.


Clarice Lispector

Faixa 4 - A música está atrás do pensamento, é constituída por ele e também o constitui. É linguagem misteriosa além da própria linguagem. Não seria fortuito lembrar que Clarice Lispector intitulou seu Água Viva inicialmente como Atrás do Pensamento. Poderíamos pensar que a bruxa Clarice intentou com essa ficção captar o “é” da coisa, o mundo se fazendo, o “it”, o neutro, a quarta dimensão, aquilo que está atrás do pensamento mas que só pode ser alcançado por meio do pensamento. Eis a sua proposital contradição. E na impossibilidade de capturar o “instante-já”, o agora das coisas se fazendo, a escritora apela para a escrita automática - na materialização de um monólogo interior - e para a expressão musical próxima do jazz, que se caracteriza como a arte musical do improviso. Um jazz, como o pensamento, a partir de uma linha melódica, se cria à medida que se toca: “Sei o que estou fazendo aqui: estou improvisando. Mas que mal tem isso? improviso como no jazz improvisam música, jazz em fúria, improviso diante da plateia” (1980, p. 23). Depois de ler Água Viva, Alberto Dines, amigo da escritora, lhe escreveu: “Você venceu o enredo (...) A gente vai encontrando a todo instante situações-pensamento. (...) É menos um livro-carta e, muito mais, um livro música. Acho que você escreveu uma sinfonia” (DINES apud GOTLIB, 2004, p. 33). Não à toa, Clarice, em Perto do Coração Selvagem, aproximou o universo da música ao universo do pensamento. Nesse livro, o pensamento é pensado como música se criando: “A música era da categoria do pensamento, ambos vibravam no mesmo movimento e espécie. Da mesma qualidade do pensamento tão íntimo que ao ouvi-la, este se revelava” (1997, p.54). Pensaram também musicalmente, à sua maneira, Kerouac, no clássico On the Road; José Castello, no romance Ribamar; Julio Cortázar, em contos e ensaios, entre tantos outros escritores/sabiás.

 

Kisêdjê tocando flauta

Faixa 5 - Mais do que pensarmos a música na cultura talvez fosse possível pensarmos a cultura e o pensamento como música. A antropologia musical, aliás, tem pensado na vida social como uma forma de performance. Anthony Seeger, em Por que cantam os kisêjê (2015), analisa o papel da música no processo social a partir de um estudo de representações musicais na etnia brasileira Suyá. Mais do que mostrar a influência da música na vida social desse grupo, o pesquisador está interessado em investigar como a música cria muitos dos aspectos da cultura e da vida em sociedade. A música, nesse sentido, nos constitui. Por que não pensá-la também como uma forma de pensamento? Durval Muniz de Albuquerque Júnior, ao prefaciar o livro Dissonâncias de Foucault (2012), de Daniel de Oliveira Gomes, escreve que o pensamento possui uma música. Segundo ele, “há em cada maneira de pensar, em cada prática filosófica uma dada musicalidade” (2012, p.11). O pensamento dissonante, por exemplo, possui uma forma específica de soar, uma dada maneira de sonar, o que leva o prefaciador a observar que o livro em questão merece ser mais ouvido do que lido. O prefaciador lembra que para Nietzsche a chave de explicação do pensamento trágico grego estava no espírito da música grega. O mesmo se daria sobre Foucault, lido por Gomes. Tanto em Nietzsche quanto em Foucault, a beleza não advém apenas das teses que defendem, dos seus conceitos, “mas também da forma em que são vazados, da poesia que deles emana” (2012, p. 13). Ou seja, da música. Se o pensamento tem uma musicalidade, ele “é imediatamente do campo da estética” (idem, p.16). Recuperar a música do pensamento é dessa forma restituir a poesia à filosofia.

 

A Grécia musical


Faixa 6 – Mário de Andrade escreve sobre a importância da música para todos os povos, o que pode ser percebido, por exemplo, na sua utilização litúrgica em todas as civilizações: “Do culto do Vodu antilhano como no templo católico, no candomblé como entre os esotéricos, nas cerimônias cinegéticas guaranis como na caça à raposa dum baronete inglês (...)” (1972, p. 54). Não por acaso o artista modernista, que era músico e professor de piano, interessou-se profundamente pela feitiçaria nordestina, coletando em suas viagens étnico-culturais, pelo Norte e Nordeste, cantos de macumba e catimbó. Mário aponta para o allegro e para a repetição violenta de um ritmo, como característica desses cantos, aliados a uma coreografia na qual a sociedade macumbeira vê Xangô descer na terra, encarnando-se no “cavalo-de-santo” para fazer sua festa e realizar suas curas. Escreve ele: “Desculpem-me os médicos, mas a cura se dá, cancros desaparecem, artritismos e nefrites, à custa de amuletos orantes, pedrinhas vindas da África, galos pretos imolados, ou garrafas de pinga esperdiçadas na onda da praia” (1972, p. 18). No entanto, há uma ambiguidade que não pode ser desconsiderada. Observemos com ele que a música pode ser um veneno ou um remédio, o que prova nos dois casos a sua força exuberante na vida, em especial nas artes e em outras atividades do pensamento. A música é phármakon. Tamísides, observa Mário, aconselhava a música contra pestes e as feridas. Demócrates utilizava da flauta para curar pestes. Na Odisseia, de Homero, o canto das Sereias enlouquece e seduz. Do flautista de Hamelin às orquestras de Auschwitz, passando pelos músicos do Titanic, a música agora assiste à morte, sendo a trilha sonora para as águas da Calunga Grande, o mar engolindo centenas de corpos, ou para a pá que joga terra sobre tantas covas abertas. Em tempos de Covid 19, as lives sertanejas oscilam entre o canto que alegra e o silêncio diante do caos social e político. Lavemos as mãos e bebamos os mortos, enquanto o navio afunda.

 

Ibejis

Faixa 7 - Há um itan que conta uma aventura dos irmãos Ibeji, orixás que protegem as crianças e que foram sincretizados no Brasil com Cosme e Damião, os santos gêmeos do Catolicismo. Certo dia, Iku resolveu levar com ele todas as pessoas de um determinado povoado. A comunidade desesperada, sabendo dos poderes deste Senhor da Morte, foi consultar Orumilá, que por meio de seu oráculo de Ifá, orientava a comunidade. O oráculo informou que somente os irmãos Ibejis poderiam salvar a cidade. As crianças aceitaram ajudar o povo a se livrar da morte, desde que recebessem como recompensa muitos doces, carurus e o direito de sempre brincar. Os travessos contaram com a ajuda de outro irmão, o Idowu, que no Brasil virou o Doum. Com um tambor encantando essas crianças começaram a cantar para Iku, que ficou hipnotizado pela música das crianças, não conseguindo mais parar de dançar. Os irmãos se alternavam na execução da música para ela não parar. Cansado de tanto se mexer, Iku foi vencido pelos Ibejis. Acordou que em troca da paz e do descanso, deixaria a cidade livre da morte. Os arteiros irmãos foram, então, saudados e reconhecidos pelo povo como grandes orixás, os pequenos grandes Ibejis. Luiz Rufino e Luiz Antonio Simas recuperam essa história no livro Flecha no Tempo (2019), para concluir uma bela lição: “Tambores encantados e crianças são capazes de salvar a humanidade” (idem, p. 47). O canto faz a morte dançar e nos convida a imaginar outras possibilidades de vir a ser. Quantas lições podem ser imaginadas aqui? A potência do jogo, da brincadeira, da vadiação como forma de sobreviver às agruras da mortificação. O canto, a dança, como formas de alegria e jeitos de adiar a morte. Distante da África e do Brasil, mas encantando com ideias semelhantes, o menino Agamben, em seu livro Infância e História (2005), evocou a história de Pinóquio, na cena do “País dos Brinquedos”, para falar que a invasão da vida pelo jogo tem como consequência uma grande mudança: uma paralização e uma destruição do calendário. O filósofo escreve que em nenhum lugar como em um brinquedo, “poderemos captar a temporalidade da história no seu puro valor diferencial e qualitativo (...)” (idem, p. 86). Se brincar é a melhor forma de paralisar o calendário, então o jogo, e sua experiência de prazer e alegria, tem o poder de adiar a morte. Há milhares de anos esse saber é cantado em itans africanos. Na filosofia dos Ibejis ou nos Itans de Agamben, essa sabedoria se espalha: Quem canta, seus males (a morte) espanta. Em um outro Itan, Iansã, a Senhora dos Ventos, faz os egunguns dançarem ao som da música de seu fole. Graças a isso, Oiá recebeu de Ogum sua coroa, alegrando os espíritos ancestrais, fazendo a morte cantar e dançar.


Araweté tocando terewo, cornetas espiraladas feitas de brotos de babaçu, Araweté/Igarapé Ipixuna, Pará (Eduardo Viveiros de Castro)


Faixa 8 - Eduardo Viveiros de Castro observou que a “música dos deuses” é a área mais complexa da cultura Araweté. Ele se refere aos cantos xamânicos que formam a base de sua vida religiosa. O pajé é o “suporte das divindades”, o “cantador das almas” (2017, p. 127). Na cultura Araweté, o pajé não incorpora o espírito dos mortos, mas canta o que ouviu deles. Sua voz no momento de transe está entrelaçada à fala dos ancestrais. Os cantos são, portanto, poemas com muitas vozes. Sua vocação para o polifônico aponta para uma grande riqueza discursiva que é criada à medida que se canta. Por meio da ingestão do tabaco e do uso do maracá o pajé realiza seu trabalho espiritual recebendo orientação dos ancestrais da tribo, por vezes travando lutas com espíritos malévolos, mas sempre produzindo suas curas por meio da música. Davi Kopenawa apresenta em Queda do Céu (2015) uma linda e longa análise descritiva dos rituais xamânicos yanomami, nos quais o pajé inalando o pó de yãkoana faz descer, dançar e cantar os espíritos xapiri, trazendo luz e cura. Antonio Risério, em seu livro Textos e Tribos, investe na ideia do xamã como um “poeta-músico”. Sua música é um “canto-viagem” que “condensa esteticamente o saber espiritual do grupo” (1993, p. 164). Interessado em uma poética afro-ameríndia, Risério transcria não apenas o “Canto da Castanheira”, dos Araweté, como também uma série de Orikis, poemas/cantos que os iorubanos utilizam para louvar os orixás. Em ambas as culturas, africanas e indígenas, o transe está ligado à atividade musical. Relembrando Georges Lapassade, Josely Vianna Baptista, em sua Roça Barroca, observa que a poesia é um das “raras formas de transe relativamente ritualizadas que ainda restam no Ocidente” (2011, p. 15). É justamente a poesia que Agamben reivindica para a filosofia, ao observar que a cisão entre essas duas esferas testemunha a “impossibilidade da cultura ocidental de possuir plenamente o objeto do conhecimento” (2007, p.12). Quantas lições a música e a poesia afro-ameríndia tem a nos dar? Como pode ela tornar mais musical e alegre uma filosofia do porvir? Quanto afeto, música e alegria poderíamos trocar (ou tocar) em um congresso acadêmico euro-afro-ameríndio ou num ritual de pajelança entre Davi Kopenawa e Baruch de Espinosa ou Gilles Deleuze para tratarmos filosófica e xamanicamente das relações entre corpo e alma? Reunamos Platão e Seu 7 da Lira, República e Macumba, por que não?


Mãe Cacilda e Seu 7 da Lira

 

Faixa 9 – Na macumba de Seu 7 da Lira era a música que curava. Ele ensinava o bem viver por meio das canções. Feito um Orfeu com seu instrumento de cordas, pito e marafo, o Exu incorporado na Mãe Cacilda de Assis fez o carnaval no bairro do Santíssimo, no Rio de Janeiro dos anos 70 e 80. Aspergindo sua cachaça e assoprando a fumaça de seu charuto nos fieis, Seu Sete Encruzilhadas da Lira realizava suas curas, mas não sem a música que era o seu elemento fundamental. O Exu cantava para curar. Por vezes pedia para um determinado fiel entoar a canção que mais gostava enquanto o médico espiritual realizava seu trabalho. Isso porque, segundo ele, a boa música elevava a energia do corpo e do pensamento de um paciente, atuando no indivíduo por meio de sua frequência, timbre, intervalos e melodias. Chocou a sociedade conservadora, predominantemente católica naquele tenso período da ditadura militar. Sua fama o levou a programas de auditório, como os de Flávio Cavalcanti e Chacrinha. Reza a lenda que parte do público presente, bem como muitos que assistiam à transmissão ao vivo em suas casas, entravam em transe durante suas apresentações. Esse Orfeu e sua lira, médico dos pobres e desassistidos era um Exu catiço da Umbanda e do mundo que elogiava a medicina e que dizia iniciar o seu trabalho onde ela terminava. Na periferia carioca, Seu 7 recuperou o sentido da música como um elemento curador, questão discutida desde a antiguidade por filósofos como Platão e Aristóteles. O som das esferas de Pitágoras e seus números sagrados estavam no cerne do trabalho do Exu, que tem como nome um número e como ferramenta a canção. Há milhares de anos, o esoterismo fala da energia de cada nota musical. A mensagem de Seu 7, também chamado de Seu Saracura, era de paz e amor, do poder da alegria e da música para contagiar a vida. Que lições Seu 7 e sua encantaria trazem para nossa canhestra cultura ocidental? O que ele nos falaria hoje desse Brasil que destrói terreiros em nome de uma “verdade” religiosa maior? O que pensaria Seu 7 desse mundo pautado por uma lógica de violência e terror a que nos levou o “carrego colonial”? A noção de “carrego colonial” é apresentada por Rufino e Simas (2019) na tentativa de romper com a lógica de mortificação, esquecimento e desencanto pautada pela condição colonial entre nós. A figura de Exu, inspirada no orixá africano que representa a desmesura, a pura hybris e ao mesmo tempo o poder organizador do caos, tem inspirado curiosas reflexões no Brasil de hoje, promovendo um reencontro do pensamento filosófico e pedagógico com as sabedorias ancestrais que sofreram um silenciamento violento nos trópicos a partir da diáspora africana. Celebro esse movimento. O Senhor dos Caminhos não apenas fez da morte e do desencanto, da dor e da chibata, um convite à alegria, à vida e ao movimento, inspirando o povo a cantar novamente antigas canções e a praticar resistência – Exu faz o erro virar acerto -, mas também inspirou novas matrizes religiosas, emprestando seu nome a uma vasta falange de catiços. Seu 7 da Lira é um deles. A sabedoria de Exu tem nos convocado a uma permanente reflexão sobre a possibilidade de um outro pensar. Seu jeito matreiro de viver e criar tem mostrado os limites das velhas formas do pensamento ocidental, o nosso jeito acomodado de ser. Rompendo com todo e qualquer dualismo, esse mestre da ambivalência, nos convida a uma revolucionária missão, transformarmos os nossos erros em acertos, afinal de contas Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje. Seu 7 da Lira ouviu bem o chamado e nas suas Giras do Santíssimo, não cansava de dizer: “Nem todo mal é mal, nem todo bem é bem. Há mal que vem para o bem, como há bem que vem para o mal”. E gargalhava, e cantava. (En)cantar é uma forma não só de vencer a morte, mas principalmente o desencanto, pior forma de morte, o que Simas e Rufino (2019) chamaram de “política do desencantamento”, a ser vencida por flechas, tambores, caroço de dendê, sabedoria ancestral e muito axé. Em suas mensagens, Seu 7 Encruzilhadas da Lira nos convidava a reencontrar uma vida de alegria e conhecimento através do (en)canto. A Corrente de Amor, frequentada por até trinta mil pessoas, cantava à meia-noite, no Terreiro de Mãe Cacilda: “Seu 7 Rei da Lira é meu protetor, seu 7 Saracura cura a minha dor”. Em meio a uma sociedade predominantemente católica, racista, e preconceituosa com religiosidades de matriz afro, Seu 7 da Lira[3] escancarava a Umbanda e a Quimbanda em pleno horário nobre nas grandes emissoras de televisão, afirmando uma potência cultural afro-brasileira por meio da música e da macumba. A figura de seu 7 parece sintetizar todas as faixas desse texto. Como o nosso pensamento pode aprender a ser mais musical com todas essas outras canções? O que pode essa poesia sequestrada devolver em forma de música a um exercício ocidental do pensar e do viver? Ou melhor, como pode esse pensamento estar à altura de seus sons? Cantemos. Axé!

 

Referências:

 

AGAMBEN, Giorgio. Estância: a palavra e o fantasma na cultura ocidental. Trad. Selvino José Assmann. Belo Horizonte: UFMG, 2007.

____. Infância e História: Destruição da experiência e origem da história. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2005.

ANDRADE, Mário de. Namoros com a Medicina. 3 ed. São Paulo: Martins; Brasília: INL, 1972.

BAPTISTA, Josely Vianna. Roça Barroca. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

BARROS, Manoel de. Memórias Inventadas: a segunda infância. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2006.      

CLASTRES, Pierre. A Fala Sagrada: mitos e cantos sagrados dos índios guarani. Trad. Nícia Adan Bonatti Campinas: Papirus, 1990.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Imágenes pese a todo: memoria visual del Holocausto. Trad. Mariana Miracle. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 2004.

DIEGUES, Douglas. Viagem ao Orvalho em Chamas. In: SEQUERA, Guillermo. Kosmofonia Mbya Guarani. São Paulo: Mendonça & Provazi, 2006. (O morto q fabla)

GOMES, Daniel de Oliveira. Dissonâncias de Foucault. São Paulo: Lumme Editor, 2012.

GOTLIB, N. B. A descoberta do mundo. In: Clarice Liespector: Cadernos de Literatura Brasileira. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2004.

JECUPÉ, Kaká Werá. Tupã Tenondê: a criação do Universo, da Terra e do Homem segundo a tradição oral Guarani. São Paulo: Peirópolis, 2001.

KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. Queda do céu: Palavras de um xamã yanomami. Trad. Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

LISPECTOR, Clarice. Água Viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

____. Perto do Coração Selvagem. 7 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

RISÉRIO, Antonio. Textos e Tribos: poéticas extraocidentais nos trópicos brasileiros. Rio de Janeiro: Imago, 1993.

SCHELLING. Friedrich Von. Obras Escolhidas. Tradução, seleção e notas de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1984.

SEEGER, Anthony. Por que cantam os Kisêjê. Trad. Guilherme Werland. São Paulo: Cosac Naify, 2015.

SIMAS, Luis Antonio Simas; RUFINO, Luiz. A flecha no tempo. Rio de Janeiro: Mórula, 2019.

SIQUEIRA, Cristian. O Fenômeno Seu Sete da Lira: Cacilda de Assis, a médium que parou o Brasil. Porto Alegre: BesouroBox, 2020.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo; CAUX, Camila de; HEURICH, Guilherme Orlandini. Araweté: um povo tupi na Amazônia. 3 ed. São Paul


[1] Depois dele, Goethe e Baudelaire valorizaram com presteza a imaginação como uma forma suprema de conhecimento, o que em ambos os casos nos leva ao trabalho de Georges Didi-Huberman, que tem relacionado de forma curiosa o pensamento poético e crítico-filosófico em seus estudos sobre imagem: “Para saber hay que imaginarse” (2004, p. 17).

 

[2] Naturalmente, a distância entre Schelling e as culturas originárias como aquelas que fundamentam um pensar afro-ameríndio é grande. Mitologia pode significar coisas diferentes para suas mentalidades, mas em ambos os casos trata-se de pensar/imaginar numa forma encantada ou poética de conceber e/ou representar a realidade.

[3] A figura de Seu 7 da Lira é amplamente apresentada no livro O Fenômeno Seu Sete da Lira: Cacilda de Assis, a médium que parou o Brasil, de Cristian Siqueira (2020).

sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Fortuna Crítica


O professor Everton Grein escreveu uma bela apreciação dos meus livros Fábrica de Flores, Papele e Oriki Daqui. Ele apresentou este texto na noite de lançamento das obras, no Espaço Cultural da Estação Ferroviária de União da Vitória, numa noite de dezembro de 2019. Transcrevo aqui o texto pela beleza e agudeza da leitura. 


Senhoras e Senhores,

Boa noite.

Sr. Caio Moreira.

 

Gostaria de endereçar essas breves considerações para um terreno mais pessoal, enfatizando os laços de amizade que nos unem. Importa destacar, em vossa biografia, os vigorosos princípios éticos que a norteiam, e a correlata manifestação de tais valores que transcendem não somente vossa produção literária, mas diria, sobretudo, seu completo e competente trabalho. 

Numa célebre definição sobre o espanto Ferreira Gullar disse “a súbita constatação de que o mundo não está explicado e, por isso, a cada momento nos põe diante de seu invencível mistério. Tentar expressá-lo é a pretensão do poeta”.

Assim não é sem espanto, também, e ao mesmo tempo, tomado por uma grande honra que aceitei seu convite e o desafio de apresentar brevemente os textos de sua lavra. De antemão, digo-vos, uma proposta inovadora abraçada pela Editora Medusa com todo cuidado e delicadeza aos textos que lhes são meritórios. Nomeadamente ORIKI-DAQUI, FÁBRICA DE FLORES E PAPELE.

Caio ORIKI, que em língua yorùbá pode ser traduzido de várias maneiras, sendo as mais recorrentes: texto ou literatura; mas também pode ser usada como nome e sobrenome: oruko-oriki (oruko = nome da pessoa / oriki = diz quem a pessoa é). Ainda os Oríkì (do yorùbá, orí = cabeça, kì = saudar) são versos, frases ou poemas que são formados para saudar o orixá referindo-se a sua origem, suas qualidades e sua ancestralidade. Os Oríkì são compostos para mostrar grandes feitos realizados pelo orixá. Por outras palavras são também formas de reverência aos Orixás.

Em ORIKI-DAQUI na medida em que me entregava ao deleite de sua leitura, a percepção da textualidade sagrada africana personificava cada vez mais os espíritos ancestrais. Como que num grito vindo do fundo da floresta, embalado pelo ritmo do afoxé, cuja sincronia só poderia ser quebrada pelo intermitente repicar do agogô. Em suas linhas mais profundas, Caio, nos conduzia não somente ao ato de ler, mas também a introspecção da oração, cujas formas variadas da expressividade poética impressa pelo seu texto mais que poesia deixavam entrever o poeta.

A justeza do espírito poético de Caio Moreira em Oriki-Daqui parece elevar-se de forma apoteótica na defesa das culturas de axé, desenhando de maneira sublime ao mesmo tempo uma profunda e contemplativa religiosidade, ladeada por uma fúria combativa na firmação das identidades negro-africanas. Seu discurso poético representado nessa dupla perspectiva pode parecer aos olhos mais desatentos, absolutamente contraditórios, mas é justamente aqui que reside seu argumento: a tessitura dos elementos religiosos marcadamente distintivos das identidades africanas não são de modo algum contraditórios, pelo contrário, são esses mesmos elementos que forjam nossa natural e indiscutível herança.

Caio lembra-nos de forma incisiva os pontos que cirzem nossos caminhos, que nos tornam ao mesmo tempo diferentes e iguais uns aos outros. Talvez aqui, salvo uma leitura equivocada, esteja a pedra fundamental de sua poética: Oriki fostes fiel ao título, demonstrando aquilo que és, respeitando a ancestralidade de seu passado e a vigorosidade de seu presente. Exu, Santo Antônio, Nanã, Preto Velho, Oxum, Iemanjá, Ogum, Oxóssi, Oxalá, Xangô, Iansã, Euá, Ibejis, Iroco, Ossain, a todos, SARAVÁ!

Já em FÁBRICA DE FLORES, de sua poética, Caio, tomo por empréstimo dois elementos: a percepção e a sensibilidade. Com as flores buscou a ruptura com a fria e indiferente resistência da técnica. O ato de escrever tornou-se, para além da técnica, um ato espontâneo, que encontrou na natureza nua e clara das formas alvas das flores o significado mais sublime. Da percepção, eu leitor, tornara-me uma gota de orvalho, correndo despreocupadamente de flor em flor, sentindo suas formas, seus gostos, seus cheiros.

A flor símbolo da natureza tornou-se também significado.

Eu-leitor percorri cada uma delas. Percebi suas cores, seus aromas. A sensibilidade Talvez fosse eu mesmo enquanto gota de orvalho. Ao final do meu caminho caí nas pequenas mãos do menino.

Vi o menino sentado com uma flor na mão, declamando seu poema. Esse menino dedica o poema às flores e a todos os meninos que tiveram que engolir o choro e se fazer fortes mesmo sendo frágeis. O menino Caio tem alma de flor.

Em PAPELE o manifesto ato da observação. Conhecer só no observar. Sentir sem precisar invadir. Reconhecer sem precisar olhar. Ouvir sem precisar falar.

Em seu texto Caio exige do leitor uma postura de observador. O leitor torna-se o poeta cego. Um aedo diriam os gregos. A lembrança é "poética" - é o artista que cria o exemplo e modelo das ações e personagens, sob a inspiração das musas. As musas contam ao poeta, o que foi, é e será. O poeta prefere não "ter visto", mas "ter ouvido" diretamente das musas, que tudo vêm.

Caio tens tua musa. Sois vós o poeta. Ela te fala com seus olhos, te inspira com seus gestos. Ela também é poema, sem sê-lo em poesia, mas em eterna inspiração. És musa como a que cantou Caetano: ah Bruta-flor! Onde queres o ato, seu poeta é o espírito.

Papele mais que um misto de sentimentos, é um misto de sentidos, aguçados pelo ato de observar.

Papele nos priva da visão, e ficamos a espera da musa que nos conte sobre os caminhos a serem percorridos com sua poesia.

Papele nos priva da audição. Não podendo ouvi-la obriga-nos a observar. O poeta observa a musa e traduz dela seus gestos mais poéticos.

Papele nos priva do olfato. Não podemos sentir seu cheiro como nas flores. Apenas observar suas formas, como disse Valéry, e imaginar o que esperamos ver.

Papele nos priva do paladar. Não sentimos seu gosto. Imaginamos sê-lo por suas formas.

Papele no priva do tato. Não podemos tocar. Não somos aqueles que tocam. Somos tocados.

Enfim, Papele, poema que mora no corpo.

Penso, por fim, que de maneira bastante modesta cumpri o destino que me colocou. Caio, não tenho a autoridade de um poeta. Para encerrar dirijo-me a você com as palavras de outro poeta que sei, gostas muito: Manoel de Barros. Celebrando sua inventividade disse Manoel:

“Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:
a) Que o esplendor da manhã não se abre com faca
b) O modo como as violetas preparam o dia para morrer
c) Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas têm devoção por túmulos
d) Se o homem que toca de tarde sua existência num fagote, tem salvação
e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega mais ternura que um rio que flui entre 2 lagartos
f) Como pegar na voz de um peixe
g) Qual o lado da noite que umedece primeiro.
etc. etc. etc.
Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios”.

De um poeta a outro poeta.

Obrigado pelo privilégio.

Ass: Everton Grein



































quarta-feira, 24 de novembro de 2021

“Área de Broca”, de Luciana Tiscoski: Um Gabinete de Curiosidades

 


Há quase vinte anos, quando lecionei no curso de publicidade, costumava com os alunos, nas aulas de redação, ler o livro de um tal Roy H. Williams, sobre marketing. Aprendi coisas interessantes com a obra, o que prova que até os textos mais inusitados podem nos oferecer conhecimentos curiosos. Lembro que o autor dizia que a área de Broca é uma espécie de palco no qual uma peça será representada na mente do ouvinte. Broca seria como um crítico de teatro, o juiz que determinaria se deveríamos ou não abandonar a peça. Para obter a aprovação do juiz, o espetáculo deveria eletrificar Broca com a emoção do inesperado. Ele dizia que enquanto um falante usa essa área para organizar suas palavras em frases compreensíveis, o ouvinte usa essa região do cérebro para antecipar o que o outro vai dizer, quando o que se ouve é previsível. Quando não há novidade alguma na comunicação, a atenção é comprometida.

Penso, por exemplo, na música “Cálice”, de Chico Buarque e Milton Nascimento. Em uma determinada passagem, ouvimos: “Mesmo calada a boca resta o peito / Silêncio na cidade não se escuta // De que me vale ser filho da santa / melhor seria ser filho da ...”. Pensamos que a letra vai dizer uma coisa, um palavrão, um xingamento, e ela acaba por frustrar nossa expectativa pré-moldada, dizendo outra: “Melhor ser filho da outra / outra realidade menos morta / tanta mentira, tanta força bruta”. A surpresa ativaria uma área específica do cérebro, causando um certo prazer. Recordo que passávamos o ano com os aprendizes de publicidade imaginando soluções criativas que pudessem surpreender Broca, um exercício auspicioso para o universo da propaganda, já que essa situação traria eficácia para o texto publicitário.

Lembrei disso quando li o curioso livro “Área de Broca”, de Luciana Tiscoski, publicado recentemente pela Editora Nave. Aqui, estamos na seara da literatura, distantes da comunicação social, embora a autora do livro seja também uma jornalista. A publicação não tem nada a ver com a publicidade e eletrifica bem mais a minha atenção e curiosidade do que qualquer propaganda. A literatura, pouco afeita a questões comerciais, no entanto, sabe vender bem mais o seu peixe.

Fico pensando quais reações químicas no cérebro do leitor o livro de Luciana Tiscoski consegue produzir. Cada frase dos seus contos é seguida por outra completamente inusitada. A autora nos oferece, assim, sempre uma surpresa. Ela ativa de fato nossa área de Broca. Por exemplo, depois de dizer “O frio em mim vinha das suas palavras úmidas”, escreve “A carta ainda nas minhas mãos, tremulante folha que se desintegrará com o tempo, como tudo, como nós”. Qual relação entre uma frase e outra?

O leitor caminha em busca de um centro, de um território, de uma zona de conforto, de um sentido, mas uma crise da representação se impõe, porque o significado sempre escapa. Quando imaginamos que uma frase vai complementar a anterior, explicá-la, o texto mantém a tensão, e aquele que lê deve continuar na corda bamba, dançando no abismo. É um movimento perpétuo. É um jogo. Godot nunca chega.  

 Importante lembrar que a capacidade de produzir estranhamento é uma das qualidades mais caras da boa literatura. O inusitado é o curinga da arte. No livro, as frases são cenas estranhas e curiosas como os sonhos: “Saiu do metrô e a sensação de ser uma toupeira só aumentava”. Ou: "Olhares ursobranquefeitos invadem o trajeto dos meus olhos em direção à porta do bar”. Ou: “Há muitos sóis que se prometia chuva. Caudalosa, há muito escaldada no sal, querendo ser uma corrente d´água se esvaindo, derramando-se na terra”.

Luciana Tiscoski (Fonte: Revista Gulliver)

A todo instante algo inesperado nos contos acontece. Sua narrativa é sempre vertiginosa. Os cenários são variados, os narradores estão sempre em deslocamento. De um bar na Alemanha à cidade murada de Kowloon, em Hong Kong, de uma estação em Paris a uma Praça de Porto Alegre, seus lugares viajam e se confundem, bem como seus tempos e personagens. De uma boneca que deseja um humano a um palhaço-fotógrafo em Berlim, de uma praticante de kinbaku a uma apaixonada por Monet, as personagens do livro são desencantadas, mas nos encantam pela singularidade com que são construídas.

Passeamos pelas páginas de Tiscoski como nas Passagens parisienses, com suas múltiplas entradas e nenhuma saída. A misteriosa chama do livro está também na sofisticação literária com a qual seus textos são permanentemente revestidos. Luciana di Leone escreveu na orelha da obra que sua linguagem é “terrivelmente sofisticada”, mas que nos chega “de modo fácil”, permitindo construir imagens raras. As referências, quase sempre indiretas, vão de Hilda Hilst a Wilson Bueno, de Rilke a Caravaggio, de Maiakósvski a Baudelaire e Alfred Jarry.  Com uma boa dose de nonsense a lembrar alguns quadros ou escritos surrealistas, “Área de Broca” é esse palco no qual a autora-fotógrafa-pintora leva a escrita criativa à expansão do pensamento, às raias da poesia. 


Gabinete de Curiosidades - Triscele

O livro assume o risco de apostar no jogo como uma forma possível de fazer da literatura uma máquina de imagens inusitadas. Os contos, com ar retrô, são textos-passagens nos quais tudo é sonho. Ali, encontramos uma mulher com cabelos cor de fotografia, a saber “cinza tempo ido”. Ali, vislumbramos alguém dividido entre os ensaios sobre Rilke e uma mulher misteriosa que poderia se chamar Mirtza. Ali, espiamos o colecionador H e sua boneca Olímpia a mirar o flâneur, esse “homem flamante que flanava felino”. Ali, conhecemos a prostituta Maria Elvira e seu vestido amarelo que vai sendo manchado, como a vida, ao longo da trama. Tudo acontecendo no movimento entre um lugar e outro, por isso o livro é passeio, como no itinerário Nanterre – Saint Cloud. Entre um ponto de partida e outro de chegada, o que temos são digressões, puro monólogo interior, o deslimite da palavra.

Musei Wormiani

Tentações de Santo Antão, de Hieronymus Bosch


Viajando no livro, percebemos o quanto suas histórias são tocadas pelos limiares poéticos entre a literatura e outras artes, e como os contos são quadros ou fotografias que nascem, antes de tudo, das ideias. É como, por exemplo, fotograficamente, Tiscoski escreve o conto “Umbo”.

Há um desfile de certos horrores no livro, como nas Tentações de Santo Antão, de Flaubert, que vai lembrando uma visita a um gabinete de curiosidades. Um “ovo”, de Hilda Hilst - bem poderia ser de Clarice -, um “touro branco” de Málaga, um inseto numa cena de kinbaku, uma toupeira, uma cobra, um templo poético construído só por mulheres. O livro é esse museu, esse quarto das maravilhas, esse jardim das delícias, onde tudo pode acontecer. Que este texto meu sobre a “Área de Broca” seja mais que uma mera propaganda. Como nos sonhos, seus contos, no fundo, são falados pelo desejo. A publicidade, em busca da sedução, bem soube tirar proveito disso. Manejar palavras é uma forma de encantar as ideias. O livro despedagogicamente ensina.  


Caio Ricardo Bona Moreira

Publicado no jornal Caiçara (União da Vitória - 2021)


Informações da Editora:


“Área de broca”, de Luciana Tiscoski, reúne 13 contos e um texto dramatúrgico breve, escritos com uma potente voz narrativa atravessada pela polifonia e por tempos e espaços tão díspares quanto as ruas de Paris e Berlim, a favela de Hong Kong ou o Mercado Público de Porto Alegre. Livro de estreia da Doutora em Literatura e integrante do coletivo de poetas “Abrasabarca” (Florianópolis), “Área de broca” apresenta, nas palavras de Luciana di Leone, “uma linguagem terrivelmente sofisticada que chega, no entanto, de modo fácil, permite construir imagens raras e avançando na exploração de vozes (des)marcadas pelo gênero”.    

   

Título: Área de broca

Contos de Luciana Tiscoski

Ilustrações: Cathy Burghi

Apresentação: Luciana di Leone

Prefácio: Paulino Júnior

 

104 páginas

Ano: 2021

Formato: 14 x 21 cm.

Peso: 150 g.