terça-feira, 27 de maio de 2014

A POTÊNCIA DA IMAGEM EM OUTONO/O JARDIM PETRIFICADO, DE MÁRIO PEIXOTO E SAULO PEREIRA DE MELLO: PARTE II


Mário Peixoto

O conto Missa do Galo, de Machado de Assis, foi publicado em livro pela primeira vez em 1899, em Páginas Recolhidas, sete anos antes do lançamento de Relíquias de Casa Velha, em 1906. Páginas Recolhidas apresentava como epígrafe a seguinte frase de Montaigne, extraída do primeiro livro dos Essais: “Quelque diversité d´herbes qui´il y ayt, tout s´enveloppe sous le nom de salade”. A presença de Montaigne não é fortuita na obra. Ela se justifica na variedade do livro, uma espécie de “salada”, reunião de textos como crônicas, contos e novelas, muitos dos quais publicados inicialmente nas folhas de jornais da época, em datas diversas.
O contexto do qual participa a publicação do livro é de grande euforia no cenário cultural. No ano anterior, Machado fora eleito presidente da Academia Brasileira de Letras. Em 1900, a Garnier publica integralmente o romance Dom Casmurro. Acontecimentos como o suicídio de Raul Pompéia, em 1895, e o fim de Canudos, em 1897, ainda ressoavam enquanto se anunciava um novo Rio de Janeiro, que passaria por grandes transformações em sua reurbanização, iniciada em 1904, pelo prefeito Pereira Passos, uma espécie de Barão Haussmann dos trópicos. Brito Broca (1960), em A vida literária no Brasil - 1900, assinala que a transformação da paisagem urbana se refletia na paisagem social e igualmente no quadro de nossa vida literária. Tais mudanças anunciavam não apenas uma nova paisagem a ser descrita, mas principalmente novos modos de operar na literatura as complexas relações entre o homem e o mundo[1]. Na mesma época, José do Patrocínio traz da Europa para o Rio parisiense o automóvel, fazendo todo mundo correr espantado “para contemplar aquela máquina diabólica, de que se desprendia muita fumaça e um cheiro insuportável de gasolina” (BROCA, 1960). Entre a derrocada de um sistema messiânico, que resultaria na morte de Antônio Conselheiro, e o anúncio de um Brasil moderno, pautado pelo nascimento do século XX, uma Missa do Galo.


 Difícil dizer se a Conceição pintada por Machado seria uma femme fatale ou uma femme fragile; um tipo de personagem presente em outros textos do escritor, e que encontraria em Capitu sua fórmula máxima. É provável que essa margem de indecisão seja o fator primordial do fascínio da personagem de Missa do Galo em outros escritores. Não muito distante estaria Salomé, figura bíblica que inspirou várias representações na pintura, no cinema e na literatura, principalmente no século XIX. Salomé ora seria uma espécie de anjo, mesmo no momento em que pede a cabeça de João Batista, ora uma devassa, como fora representada na peça homônima de Oscar Wilde. É justamente por aparecer e desaparecer, como que escorregando para o vazio, delicadamente envolta em levíssima musselina de um amarelo junquilho pintalgado de preto, que Salomé, de Jules Laforgue, ganha contornos de um anjo que seduz ao mostrar e não mostrar ao mesmo tempo o seu corpo. Visão semelhante é a do narrador que contempla o “aparecer” e “desaparecer” do corpo de Conceição:

Pouco a pouco, tinha-se reclinado; fincara os cotovelos no mármore da mesa e metera o rosto entre as mãos espalmadas. Não estando abotoadas as mangas, caíram naturalmente, e eu vi-lhe metade dos braços, muito claros, e menos magros do que se poderia supor (...).

Deu volta à mesa e veio sentar-se do meu lado, no canapé. Voltei-me, e pude ver, a furto, o bico das chinelas; mas foi só o tempo que ela gastou em sentar-se, o roupão era comprido e cobriu-as logo. Recordo-me que eram pretas (MACHADO DE ASSIS, 1959).

A frase bastaria para fundamentar a própria teoria implícita na produção imagética de Mário Peixoto, que, por sinal, era avesso a teorizações. Blanchot nos diz que ver supõe a distância, “a decisão separadora, o poder de não estar em contato e de evitar no contato a confusão” (1987). Se tomássemos esse contato meramente como um completo aparecimento, deveríamos concordar que tal experiência, mais do que trazer confusão, esvaziaria o próprio contato. Falemos então em aparecimento-desaparecimento. O que parece interessar a Mário é justamente o hífen (hímen), aquilo se apresenta como resto no jogo do aparecer e do desaparecer, um entre-lugar. Dessa maneira, o que vemos à distância pode também sugerir um tipo de “toque”. O hífen não seria mais que o erótico, fundamentando a lógica de suas imagens. Se fosse pornográfico, o excesso resultaria numa espécie de falta; não seria mais que um contato esvaziado pela própria presença. Questão semelhante nos é apresentada por Roland Barthes, um escritor que soube muito bem identificar na linguagem o que anteriormente chamamos de hífen:

O lugar mais erótico de um corpo não é lá onde o vestuário se entreabre? Na perversão (que é o regime do prazer textual) não há ‘zonas erógenas’ (expressão aliás bastante importuna); é a intermitência, como o disse muito bem a psicanálise, que é erótica; a da pele que cintila entre duas peças (as calças e a malha), entre duas bordas (a camisa entreaberta, a luva e a manga); é essa cintilação mesma que seduz, ou ainda: a encenação de um aparecimento-desaparecimento (BARTHES, 2002).

No roteiro, o jogo mostrar-não mostrar, criado por Machado, é mantido:

114. CORTE. MEDIUM CLOSE SHOT
(...) uma expressão de aborrecimento se desenha, e ela se inclina em direção ao chinelo que caiu. Ao fazê-lo, o pano da gola do robe, que bambeara, abre-se, revelando o começo dos seios e a separação entre eles (2000).
(...)
374. CORTE. CLOSE MEDIUM SHOT
do primeiro plano do joelho de Helena. Câmera baixa; ao fundo, Abel. Helena segura a bandeja. O robe começa a abrir.
375. CORTE. CLOSE MEDIUM SHOT
de Helena segurando a bandeja, com a mão em primeiro plano. Ao fundo o robe que acaba de abrir vendo-se a parte interna do joelho (2000).

Uma das diferenças significativas do roteiro em relação ao conto é que os personagens são apresentados com outros nomes: Conceição agora é Helena; Nogueira é Abel. Outro fator importante é que Helena possui uma feição sedutora mais nítida do que Conceição. Em vários momentos, impõe-se o desejo feminino como um dos motes que conduzem o encontro. Criar uma imagem que represente esse fato é uma das preocupações dos roteiristas, o que esclarecem numa das notas presentes no scenario: “A decisão de seduzir o rapaz deve expressar-se claramente – mas não é uma sensualidade puramente carnal: há uma certa espiritualidade nela, indefinível ternura, grande doçura e muita delicadeza” (2000). Essa delicadeza se apresenta de maneira contundente numa das cenas mais bonitas do roteiro, aquela em que o contato é traduzido em imagem, num crescendo que culmina no ato mínimo do gesto:

428. CORTE. MEDIUM CLOSE-UP
de Helena. Câmera aproxima-se dela. Pára. Mão de Abel entra em quadro pousa nos cabelos de Helena, acaricia-os, depois penetra por eles sob a cabeça e puxa para a objetiva até o máximo.
429. CORTE. CLOSE-UP
do rosto de Abel crescendo para a câmera até o máximo.
430. CORTE. EXTREME BIG CLOSE-UP
dos lábios. De lado: entram em quadro e lentamente se tocam – depois se unem -, se esmagam.
431. CORTE. EXTREME BIG CLOSE-UP
de pingo de água na janela – “explode” em luzes... (2000).
 
Julio Bressane, um cineasta que se interessou pela obra de Machado de Assis, e que criou uma versão de Memórias Póstumas de Brás Cubas, em 1985, observa que o que é fundamental nesse tipo de atividade é a tradução criativa, uma desleitura capaz de forçar os limites do meio traduzido: “tradução em cinema faz-se com luz-movimento-angulação-montagem” (BRESSANE, 2000). Essa espécie de tradução identificadora poderia ser pensada como uma espécie de profanação - tal como aquela desenvolvida pelo grupo de Osman Lins -, que não estaria preocupada nem em repetir o original, o que seria mesmo impossível; nem em destruí-lo, o que anularia a própria idéia de uma possível desleitura. Lembremos com Giorgio Agamben (2007) que profanar não significa destruir, mas aprender a fazer um uso novo do objeto profanado. O espaço profanador em que circula tal prática seria responsável por fundar uma maneira diferente de operar a própria noção de transformação:

Descobrir a luz, o ritmo, o fino fio de uma tradição de clichês cinematográficos que, transformados, transvalorados, recriados, reinventados, podem, de alguma maneira, nos sugerir, nos remeter, dar-nos uma idéia do formalismo do texto, do objeto, do humor, do mau humor, do original (BRESSANE, 2000).

Mario Peixoto e Saulo Pereira de Mello trabalharam em Outono/O jardim petrificado em prol da desleitura, o que faz com que o roteiro ganhe um traço poético fortemente marcado pela justaposição de planos sugeridos.
Julio Bressane, no artigo intitulado “Brás Cubas”, presente em Cinemancia, observa: “Brás Cubas filme começa por objetos sólidos, passa às águas de um poço e depois ao mar. De líquido torna-se fumaça, neblina, nuvem e termina no céu gasoso. De imagem saturada a imagem rarefeita. Do figurativo ao abstrato. De todas as cores ao branco” (2000). Essa valorização do branco, uma espécie de procura do Neutro, em que as imagens rarefeitas ganham força, já pode ser encontrada na definição apresentada por Saulo Pereira de Mello sobre o cinema de Mário Peixoto: “Em cinema tudo deve ser indireto. Esta formulação simples, como todas as de Mário Peixoto, resume, na verdade, toda a poética do cinema silencioso do qual seu filme Limite é a obra final, resumo e remate” (2001). Esse reino absoluto do indireto poderia ser lido como uma perversão da própria linguagem. Nesse reino, acredita-se na infinita possibilidade narrativa da imagem. 

(Fotograma da transcriação de Bressane para a obra de Machado de Assis)

É como se as imagens tivessem vida e pudessem se relacionar umas com as outras. Aliás, uma das cenas de Outono/O jardim petrificado nos faz lembrar uma das passagens de Dom Casmurro, aquela em que o narrador descreve os olhos de ressaca de Capitu: “442. CORTE. LONG SHOT de Helena – como no shot número 250. Onda se formando, erguendo-se – quebrando e correndo – câmera segue até que “explode” em rochedo. Ruído de mar” (2000). Esse parentesco entre passagens, seja do roteiro com outros textos, ou entre as próprias cenas, é um sintoma de imagens que funcionam como uma espécie de mônada leibniziana. Ou seja, em cada cena do roteiro estaria presente a dobra da cena anterior e o desdobramento da cena seguinte, ou mesmo todo o roteiro. Os corpos de Helena e Abel seriam também o espectro das duas estátuas que aparecem no início do texto, povoando o jardim petrificado, à espera de um incidente que possa mudar o seu estado de pedra, dar-lhe vida, permitir-lhe o amor. O incidente poderia ser uma folha que cai no outono. Poderia também ser o encontro enigmático entre um jovem e uma mulher casada, um encontro que transforma em imagem o gesto de um amor que não se realiza; o único amor que se concretiza aqui é entre o cinema e a literatura. Para finalizar poderíamos perguntar: “Por que dois títulos?” Outono é de Mário. O Jardim Petrificado é de Paulo. Talvez o conto de Machado de Assis nos responda.



[1] Talvez seja na modalidade da crônica que Machado apresente de maneira mais contundente os reflexos do processo de modernização do país. Não que seus romances não o façam, mas é por meio de uma literatura não institucionalizada como a da crônica produzida no final de século XIX que tais questões aparecem com mais freqüência. É o que Ana Luiza Andrade analisa em Transportes pelo olhar de Machado de Assis: “Machado de Assis foi um leitor de seu tempo e do nosso. De seu olhar transicional entre oitocentistas e novecentistas despontam radicais transformações, substituições e deslocamentos culturais, a partir da industrialização. No trânsito finissecular para a modernidade, coincidente com os inícios da reprodutibilidade técnica e com a chegada da imprensa de maior circulação, Machado se projeta, entre o feitiço do olhar e o fetiche do capital, sobre a crônica como metonímia abreviada e desligada de uma literatura institucionalizada” (1999, p.18).  

quinta-feira, 15 de maio de 2014

A POTÊNCIA DA IMAGEM EM OUTONO/O JARDIM PETRIFICADO, DE MÁRIO PEIXOTO E SAULO PEREIRA DE MELLO



Em 1964, o escritor pernambucano Osman Lins e a escritora paulista Julieta de Godoy Ladeira elaboraram, cada um a seu modo, versões do conto Missa do galo, de Machado de Assis. Treze anos depois, Osman retomou o projeto e convidou um grupo de contistas para que fizessem o mesmo[1]. Os textos produzidos foram reunidos e publicados sob o título: Missa do Galo (de) Machado de Assis; variações sobre o mesmo tema. O livro trazia, além das variações, o conto original do bruxo do Cosme Velho. Os novos textos evocavam não só a marca da repetição, pautada na releitura de um conto já consagrado, mas principalmente o traço da diferença, marcada por uma espécie profanação, entendida aqui como uma desleitura criativa, capaz de devolver potência ao texto de Machado. Talvez fosse melhor, assim, falarmos em iterabilidade e não em repetição.  Ao revisitar o conto, a antologia apostou na disseminação de outros pontos de vista sobre uma mesma situação: o amor impossível do adolescente pela mulher adulta, casada.
Curiosamente, no mesmo ano, o roteirista gaúcho Saulo Pereira de Mello também se interessou pelo conto. Na introdução do livro Outono/O jardim petrificado, que traz o scenario homônimo, escrito em parceria com o cineasta Mário Peixoto, Saulo lembra que, na época, recebera de um produtor de filmes publicitários a proposta de co-dirigir com ele um longa-metragem. Saulo deveria partir de um argumento inicial e finalizá-lo. Tratava-se da história de um homem que, tiranizado pela mulher, decide sair à noite e perambular pelo centro do Rio de Janeiro. Quando volta para casa, é outro homem. Quando a mulher tenta impor a sua tirania, percebe que o marido tinha mudado – a submissa, agora era ela. Saulo tentou concluir o roteiro, mas não conseguiu criar as imagens necessárias que pudessem representar os conflitos entre o pólo feminino/masculino. Foi então que lembrou de Missa do Galo:

O conto de Machado sempre tinha me impressionado muito por ter conseguido tornar concreta (e quase visível) – pelo menos para mim – a situação de uma tensa polaridade entre o feminino e o masculino; elementar, primeva, originária e toda uma gama de relações diferenciadas que podem existir nela (2001).

O que Saulo queria era tornar visível o próprio amor, por um “puro jogo cinematográfico de imagens”. Queria imagens e não palavras. Foi então que pensou em Mário Peixoto. Pediu que o autor de Limite o auxiliasse na confecção do roteiro. A partir de então, trabalharam juntos em um scenario que viria a ser conhecido como Outono/O jardim petrificado, e que jamais seria filmado.

Mario Peixoto

Pelo fato de não ter sido filmado, Outono/O jardim petrificado manteria na potência as imagens criadas pela dupla de roteiristas. Walter Salles pensou filmá-lo, mas desistiu da ideia, confessando que só Mário Peixoto poderia fazê-lo. Nesse sentido, o fato de não ter sido filmado não necessariamente deveria fazer do filme um projeto não realizado: “Compreendi, também, que existem roteiros que nasceram para viver dentro de nós, sugerindo imagens que guardaremos para sempre, mesmo se não as virmos jamais na tela grande” (SALLES in PEIXOTO e MELLO, 2001). Encontramos implícita nessa frase de Walter Salles uma concepção de arte que vê na potência do não realizado uma possibilidade de força da obra. Um filme de todos e ao mesmo tempo de ninguém. Ao apresentar o roteiro, Saulo Pereira de Mello afirma: “Todo o filme está aí – mas apenas em potência -, obscuramente ainda para nós” (2001). Saulo Pereira de Mello lembra que Mário Peixoto resistiu a todas as pressões que recebeu para dirigir o roteiro: “Este cineasta extremamente responsável com a sua arte não fazia concessões nem se deixava dobrar por interesses imediatos. (...) Eu tinha sido ingênuo ao pensar que o convenceria a dirigi-lo – ou, principalmente, que o filme poderia ser realizado” (2001). O fato nos faz lembrar de uma passagem de A comunidade que vem, de Giorgio Agamben, intitulada “Bartleby”. Lembrando do famoso personagem de Herman Melville, Agamben observa a existência de dois tipos de potência: a potência de ser e potência de não ser. A potência de ser pressupõe a passagem a um certo ato, no sentido em que, para ela, energein, só pode significar passar a essa atividade determinada. Para a potência de não ser, ao contrário, o ato não pressupõe um trânsito de potentia ad actum. É um tipo de potência que tanto pode a potência como a impotência. Essa seria uma forma de potência suprema. Agamben nos diz: “Se toda a potência é simultaneamente potência de ser e potência de não ser, a passagem ao ato só pode acontecer transportando (Aristóteles diz ‘salvando’) no ato a própria potência de não ser”. O gesto de Mário Peixoto, “I would prefer not to”, à maneira de um Bartleby do Brasil, seria como uma espécie de potencialização dessa potentia potentiae. Não seria fortuito lembrar que a obra máxima de Mário recebera o título de Limite, um lugar sem lugar, onde se marca um ponto entre a potência de ser e de não ser. Poderíamos comparar Mário Peixoto a Bartleby, ainda que a título de ficção. Tanto o ato de escrever quanto o de dirigir um filme provém não só de uma potência, mas principalmente de uma impotência que se vira para si própria: “Bartleby, isto é, um escrivão que não deixa simplesmente de escrever, mas ‘prefere não’, é a figura extrema desse anjo, que não escreve outra coisa do que a sua potência de não escrever” (AGAMBEN, 1993).


Não são raros os roteiros que não chegaram a ser filmados, ou os filmes que não foram concluídos. Poderíamos lembrar de Tecnicamente Doce, roteiro que Michelangelo Antonioni escreveu em parceria com Tonino Guerra e Mark Peploe, nos anos 60. O cineasta italiano planejara rodá-lo em Brasília e na floresta amazônica, retratando um triângulo amoroso em meio a uma vegetação selvagem[3], mas o projeto foi vetado pelo produtor que cortou seu financiamento. No texto “Minha batalha contra a obra”, Antonioni comenta o projeto: “A minha intenção era fazer desse ‘fragmento de filme’ uma espécie de oposição crua entre a luta de dois organismos humanos e a de outros organismos, vegetais e animais. Mas ainda queria falar de uma outra luta ainda mais aterrorizante, aquela que ocorre entre as plantas que lutam pelos poucos raios de sol. E a dos animais, à cata de qualquer tipo de alimentação. Minha intenção, em resumo, era tocar no tema do canibalismo, declinando sob todas  as suas formas” (ANTONIONI, 2008).
Outro exemplo pode ser encontrado no roteiro A viagem de Giuseppe Mastorna, inspirado em um conto de Dino Buzzati, e que seria dirigido por Fellini. As primeiras filmagens chegaram a ser feitas em 1966, mas o projeto foi abandonado pelo próprio Fellini.

 Fellini e Mastroiani em uma cena do filme abandonado

O filme Outono/O jardim petrificado existe não necessariamente porque o roteiro foi escrito, mas porque uma potência de ser/não ser lhe confere existência. Maurice Blanchot, em um dos ensaios de O livro por vir, lembra de Joubert, um escritor que nunca escreveu um livro, apenas preparou-se para escrever um. Esse fato já permite que Blanchot o considere um escritor, um dos primeiros completamente modernos, aquele que preferiu o “centro à esfera, sacrificando os resultados à descoberta de suas condições (...)” (2005). Não é à toa que Mallarmé tenha sido reivindicado por Blanchot em vários momentos de sua trajetória. Tal atitude inscreve-se, de certa maneira, nas obras do tempo presente ao compactuar com elas uma determinada noção de “abandono do projeto”. Assim como Joubert não escreveria apenas para acrescentar um livro a outros, Mário e Saulo estavam conscientes da potentia potentiare que a tarefa pressupunha: “(...) éramos capazes de sonhar e planejar um filme, pouco ligando se ele pudesse ou não ter qualquer base real de realização. Amávamos o cinema” (2001).



[1] No prefácio do livro, Osman Lins esclarece: “Imaginava um certo número de ficcionistas, cada um deles aceitando o desafio de refazer, com maior ou menor aproximação, o texto machadiano, que sabíamos insuperável. Este fator, aliás, se era próprio a fazer-nos perder o ânimo, também aliviava-nos: partiríamos para uma aposta antecipadamente perdida” (1977). Completaram o grupo de Osman Lins e de Julieta de Godoy Ladeira os contistas Autran Dourado, Antonio Callado, Lygia Fagundes Telles e Nélida Piñon.

terça-feira, 13 de maio de 2014

Fragmentos rachados de uma Venus rachada





O texto desnudo, a Venus rachada. 
A Venus desnuda, o texto despedaçado. 
A leitura deve ter a precisão cirúrgica de um corte. 
A leitura é uma fissura e a Venus seu norte.

“(...) El corazón de ese cuerpo nos resulta impenetrable, a pesar de ofrecerse a nuestras miradas en su más completa desnudez. Su especie de soledad pensativa lo aleja de nosotros como de su propia existencia sexual. Se diria que esta mujer está olvidando – o que aún no lo sabe – lo que significa y representa plenamente para los seres humanos el Amor, cuya divindad, como todo el mundo sabe, ostenta ella”. 

Um ano depois de pintar O nascimento de Venus, Botticelli coloca o rosto de Vênus em um retrato de Maria, em La Virgen de la granada (1487).

Entre o nu e a nudez: o nu é forma artística ideal, a nudez é embaraçosa.

“Se o nu é uma forma artística isso significa que se deveria poder desembaraçá-lo de sua nudez”.   

Didi-Huberman observa uma tensão inerente ao trabalho de Botticelli:

“Warburg había advertido muy pronto en Botticelli un dualismo entre la implicación personal y la distancia. Visualmente esto significa que las obras del pintor se hallan atravesadas por una contradicción tan extraña como admirable: los sujetos – los cuerpos, los rostros, las miradas – permanecen impasibles interiormente, al tiempo que toda la pasión correspondiente a las escenas representadas se desplaza hacia fuera, la mayoría de las vezes muy cerca, a la orilla de los cuerpos”

“Decir aqui que la representación se halla sometida al síntoma es constatar que su estabilidad aspectual – su vocación de suscitar um cierto reconocimiento de las formas, una certa referencialidad – se halla sometida a algo que se presenta a la vez como surgimiento, aparición de un rasgo inesperado, impensable, en la trama de lo representado, y como disimulo, desaparición del mundo donde ese mismo rasgo sería pensable”.

“Se observou em ocasiões que O nascimento de Vênus toma emprestado de Batismo de Cristo seu próprio esquema de composição: A água, a nudez, a unção e o recebimento do corpo nascente por um ou vários personagens que desempenham o papel de ministros do sacramento. Por outra parte, Botticelli não pintou unicamente nus pagãos”.

“A nudez seria bem mais esse processo de vertente dual que tão bem nos sugere Georges Bataille: Por um lado, a imagem do corpo se oferece, mostrando-se prontamente aos olhares, constituída como um conjunto orgânico que pode eventualmente recobrir-se como ícone de Efebo ou de Vênus; por outro lado, se abre, como se o movimento de desnudar-se – tirar a roupa – tivera que prolongar-se mais adiante da pele. Nesse instante, o tato de Eros conhece seu destino mortífero. Não existe imagem do corpo sem imaginação de sua abertura” 

Barthes que o diga!

terça-feira, 6 de maio de 2014

Império Caboclo: A literatura e o Contestado



Ao longo do século XX, não foram apenas os historiadores que se interessaram pelo Contestado. Vários escritores se dedicaram a fazer literatura tendo o conflito como mote. Entre eles, destacam-se Frederecindo Marés de Sousa, com Eles não acreditavam na morte (datado de 1958, mas publicado apenas em 1978); Noel Nascimento, com Casa Verde (1963); Guido Wilmar Sassi, com Geração do Deserto (1964); e Jean-Claude Bernardet, com Guerra camponesa no Contestado (1979). Dos mais recentes, sobressaem-se O Bruxo do Contestado, de Godofredo de Oliveira; e Império Caboclo, de Donaldo Schüler (1994). Cada uma das obras citadas possui as suas peculiaridades e, assim como os documentos jornalísticos ou historiográficos referentes ao conflito, muitas vezes caíram no binômio mocinho/bandido. Algumas delas reiteram o discurso oficial – entenda-se o discurso militar e político -, que muitas vezes delegou aos caboclos o papel de fanáticos e bandidos, tratando-os como agentes de uma barbárie que se situaria no oposto da civilização, entendida como superior ao universo sertanejo. Segundo essa visão, o “fanático” seria fruto de um “meio não-civilizado”, ou de uma “degeneração da raça” – concepção adepta das teorias científicas do final do século XIX e início do século XX. Outras obras, alimentadas por um discurso sociológico, polemizam, desconstruindo as narrativas tradicionais, invertendo os papéis, e consignando aos caboclos o título de vítimas ou heróis, visão que, de certa forma, “ao assumir a função de porta-voz do oprimido, em geral, cai no extremo oposto e equivalente, ratificando a divisão entre bons e maus” (WEINHARDT, 2000). Mas há ainda um terceiro caminho, aquele onde as veredas se bifurcam. É esse que escolhemos trilhar.
Dentre as obras citadas, uma chama a atenção, em especial, por embaralhar os pontos de vista, re-montando a história de uma maneira bastante criativa. Trata-se de Império Caboclo. Proponho neste artigo uma leitura do livro de Donaldo Schüler, levando em conta não apenas o diálogo entre a história e a literatura, mas principalmente entre as múltiplas vozes que se instalam em sua narrativa, bem como a montagem operada pelo autor.


 Penso que a prosa fragmentada de Schüler pode ser lida como um conjunto de imagens dialéticas, para usar uma terminologia de Walter Benjamin; imagens que desestabilizam não apenas a narrativa tradicional, mas também o próprio discurso histórico. Por lançar mão de várias vozes, a sinfonia polifônica e dissonante de Império Caboclo produz aquilo que Marilene Weinhardt chamou de saturação ideológica ou flutuação de ideologias, característica do discurso romancesco, aquele em que a significação surge da convivência e do embate das diversas ideologias: “Na medida em que o universo é constituído de uma multiplicidade de vozes, nenhuma é absoluta (WEINHARDT, 2001). E é nesse reino do não-absoluto, do entre-lugar e da diferença, que se situa a obra de Donaldo Schüler. Trata-se de um jogo literário que propõe uma forma de conhecimento não fascista da história.
Na mesma época em que a Guerra do Contestado eclodiu no sul do Brasil, o mundo preparava-se para a I Grande Guerra e a Europa assistia ao surgimento e à disseminação das Vanguardas Européias. Em 1912, no mesmo ano em que se dava o estopim do conflito armado entre os caboclos e os militares no Paraná e em Santa Catarina, o italiano Filippo Tommazo Marinetti publicava o segundo manifesto do movimento futurista, que glorificava na arte a máquina e a guerra. No mesmo ano, na Alemanha, Kurt Hiller lançava a primeira antologia de poetas expressionistas. O movimento vinha se delineando desde o final do século XIX, mas só ganhou força a partir de 1910, com a revista Der Sturm. O único manifesto verdadeiramente expressionista, escrito por Kasimir Edschmid, só seria publicado em 1918, algum tempo depois da assinatura do acordo de limites entre os Estados do Paraná e Santa Catarina.
Na obra expressionista, a representação expressiva da realidade física e psíquica ganhava a atenção dos artistas. O mundo interior, obscuro e ilógico era valorizado em detrimento do equilíbrio clássico. Podemos facilmente imaginar uma guerra como a do Contestado ganhando contornos expressionistas nas mãos de Edvard Munch. O semblante apavorado do homem retratado em O Grito (1893) poderia ser o de qualquer sertanejo que assiste ao terror desfilando em um campo de batalha. O Soldado Morrendo (1924), de Otto Dix, poderia ser o desenho de um subordinado do Coronel João Gualberto tombando no front. A xilogravura intitulada Memorial para Karl Liebknecht (1920), de Käthe Kollwitz, poderia ser a representação das exéquias do monge José Maria, em Irani. Mas não é só a guerra que poderia ser considerada surrealista ou expressionista. 


Soldado Morrendo (1924), de Otto Dix


Memorial para Karl Liebknecht (1920), de Käthe Kollwitz

A narrativa de Donaldo Schüler também, já que materializa as dúvidas e dores que eram traduzidas pelo expressionismo na mesma época. Gritos, mortes, cartas e depoimentos constituem uma prosa experimental, no que ela tem de fragmentária, elíptica e caleidoscópica.
O romance Império Caboclo, ao desmontar e re-montar a história, como o quebra cabeça de uma colagem cubista – Guernica de horrores no sul do Brasil -, ou mesmo como um quadro abjeto e expressionista, alcança, assim, uma dimensão não explorada pelo discurso histórico ou sociológico. Problematizando as verdades construídas ao longo dos tempos, o livro faz uma provocação não apenas aos mocinhos e bandidos, santos e pecadores, mas também àqueles que se encarregaram de escrever a sua história: “(...) a estória, em rigor, deve ser contra a história”, diria Guimarães Rosa.
A epígrafe apresentada por Donaldo Schüler em Império Caboclo é um fragmento do poema em prosa “Vulda”, de Cruz e Sousa, que integra o livro Evocações, publicado em 1898: “Ele evoca-me o colorido extravagante, exótico, de uma Flor selvagem e rara destas prodigiosas florestas da ampla e verdejante América”. Ele quem? O livro, a terra, o monge ou a luta? A presença do poeta de Desterro na epígrafe não é fortuita. O simbolismo foi o movimento poético fomentado no Brasil no final do século XIX e que sobreviveu nas primeiras décadas do século XX, época do surgimento do Contestado. Rubén Dario é outro poeta simbolista que aparece no livro, citado em um dos fragmentos que compõe o diário de Kaspar Hauser. 



Depois da epígrafe, apresenta um preâmbulo que, proliferando os sentidos da floresta citada por Cruz e Sousa, poderia ser lido como um discurso profético e alucinado do monge que motivou o messianismo sertanejo. O fragmento chama a atenção não só para o fato histórico, mas também para o desenvolvimento estético e lingüístico que percorre toda a obra: “Caminhos... a floresta tem mil caminhos e não tem caminho nenhum. Caminhos que se abrem e se fecham (...)”. A floresta do Contestado faz lembrar o sertão de Guimarães Rosa, que é todo lugar e lugar nenhum. Nesse sentido, a prosa de Donaldo parece, à maneira de Os Sertões, de Euclides da Cunha, transformar um conflito em literatura, mas, nesse caso, dando continuidade às conquistas estéticas da literatura no século XX, levando em conta as inovações das vanguardas européias, de Oswald de Andrade, de Guimarães Rosa, e até mesmo de James Joyce, escritor irlandês estudado e traduzido por Donaldo Schüler. Edélcio Lopes observou que a heteroglossia presente no universo do Contestado foi fundamental para a formação de Schüler como tradutor de James Joyce:

A mistura poliglota inserida pela Guerra do Contestado também faz o escritor perceber que ter vivido na região atingida pelo conflito e, por conseqüência ter tido relação direta com a história que dele restou, foram fundamentais para a tradução de “Finnegans Wake”, de James Joyce.A obra do escritor inglês, autor do clássico “Ulisses”, era, até então, considerada intraduzível devido à grande quantidade de neologismos inventados pelo autor. Schüler conseguiu decifrar linha por linha do volume, que foi composto utilizando 60 idiomas. “Só posso acreditar que a pluralidade da região de onde vim tenha ficado em mim de uma forma muito intensa. Por isso, acho coerente ter conseguido efetivar a tradução”, analisa (LOPES, 2010).

Depois do preâmbulo, há um prólogo que é de suma importância para o desenvolvimento da obra. Convém comentá-lo brevemente para situarmos a nossa leitura. O narrador, de nome Alfredo, se identifica como um marido querendo viajar para Florianópolis para comemorar dez anos de casamento com Evangelina. Ele se diz interessado nela história do Contestado. Está buscando farta bibliografia sobre o tema, por isso liga para Iaponan, especialista no assunto. O amigo lhe entrega vários livros e ainda indica lugares em que Alfredo poderia pesquisar. No mesmo dia, o narrador recebe de um “moço” misterioso um pacote contendo documentos inéditos sobre o conflito. Os textos foram encontrados na casa que pertencia ao coronel Henrique Rupp Júnior. Alguns instantes depois de receber o material, o narrador começa a ser perseguido pela polícia, por possíveis relações com Raul Teixeira, o jovem que lhe entregara os textos. O quarto de hotel em que estava hospedado foi invadido, mas os textos sobreviveram. Fica sugerida a ideia de que o acontecimento se deu em um momento obscuro de nossa história, a ditadura militar. Raul Teixeira preparava uma reportagem sobre o Araguaia. Para ele, Canudos e Contestado estavam ligados. Alfredo liga para o amigo César Aleixo, que lhe diz ter sido um erro se interessar pelo Contestado naquele momento, tendo em vista que foi o maior levante popular do Brasil. O narrador, então, abre o pacote:

Eram documentos reunidos por alguém das relações de Henrique Rupp Júnior – entrevistas, cartas, relatórios, diários... – para informar os Hauser, da Alemanha, sobre Kaspar, misteriosamente aparecido e desaparecido no Contestado. Poucos papéis estão identificados. Somos obrigados a contentar-nos com o documento sem conhecer o autor (SCHÜLER, 2005).

A estratégia de Donaldo Schüler é bastante sugestiva. O autor arma um mosaico anônimo que o permite passear pelo conflito com uma liberdade jamais conferida pelo discurso historiográfico ou sociológico. Segundo Lauro Junkes, a própria estrutura narrativa de Império Caboclo assume o novo, a ruptura da continuidade diegética e da concepção historicista de uma visão plena e acabada: “Dessa forma, por sua estrutura aberta e pelos enfoques a extrapolar o estrito episódio histórico, o romance convida o leitor a prazerosas andanças e parcerias construtivas” (2010). Essa estrutura aberta, pautada pela montagem, é semelhante à lógica cinematográfica:

(...) cada ato se fragmenta dinamicamente em inúmeras cenas, depoimentos, fragmentos individuais ou comentários avaliatórios, desconsiderando qualquer continuidade necessária, por autêntica montagem cinematográfica, quando a irrequieta e como que onipresente câmara recorta excertos de ações, lances de reportagens, ou assume a visão do interior de diferentes personagens, externando o fluxo do seu pensamento. Essa fusão de partículas narrativas torna-se responsável pela multiplicação de perspectivas, permitindo compor-se gradativamente um imenso painel, um mosaico multicolorido, integrado por incontáveis pedrinhas organizadas, uma vigorosa polifonia em que vozes diversificadas se associam, cruzam ou contrapõem, deixando ao leitor a tarefa de interligar, confrontar e concluir esses fragmentos para consolidar sua visão dos acontecimentos - o que pressupõe um leitor implícito de vasta cultura, sensibilidade, perspicácia e senso crítico. Não se espere, pois, que a estrutura do enredo se revista organicamente de continuidade lógica, aproximando-se mais do tipo globalizador, devido à descontinuidade fragmentária, à despreocupação com formalizações lógicas, aos saltos constantes, à mobilidade ágil da câmara cinematográfica nos seus registros de tomadas por vezes brevíssimas (JUNKES in LOPES et al., 2010).

Numa dos fragmentos de Império Caboclo, Schüler apresenta os dilemas do compilador, aquele que é responsável pela organização do arquivo, da coleção, chamando a atenção para a lógica teatral e cinematográfica da montagem:

- Você já notou que no seu quebra-cabeça há peças que não se ajustam? Você não violenta os fatos? A visão teatral ou cinematográfica é sua. Os fatos não são teatrais nem cinematográficos nem romanescos. Seu erro está aí. Os fatos não se ajustam a seu esquema.
- E os fatos o que são?
- Ora, os fatos são os fatos (SCHÜLER, 2005).

Nesse sentido, o romance se aproxima não só de uma montagem cinematográfica como a de História do Cinema, de Godard, mas também de livros-montagem como Guerra camponesa no Contestado, de Jean-Claude Bernardet, e O mez da grippe, de Valêncio Xavier. Marilene Weinhardt lembra que tanto Bernardet quanto Valêncio Xavier estão ligados à prática cinematográfica. Em ambos, o princípio da montagem é explorado com presteza e a narrativa é composta por um conjunto de reportagens, depoimentos, cacos da história que desconstroem a linearidade tradicional, bem como o discurso unívoco: “Contemporaneamente, quando o narrador se disfarça atrás de recortes e colagens, não busca a objetividade, mas pluralidade. Ele não aparece, mas existe, está sempre lá, em cada escolha, espiando pelas fendas entre os fragmentos (WEINHARDT, 2000). 


Os discursos contraditórios vão aparecendo a todo o momento no mosaico de Schüler. É o que pode ser percebido em duas passagens do livro. A primeira se refere à carta que um imigrante alemão que vivia na região do Contestado endereça a sua filha. O documento reproduz o discurso cientificista do final do século XIX, que perdurou na época do conflito:

O que me preocupa és tu, minha filha, o sangue que deverás conservar puro. Sangue, uma vez maculado, não se purifica nunca mais. A macha fica. (...) O caboclo é uma raça degenerada e doente, irrecuperavelmente doente. Há doenças que só se extirpam com o aniquilamento dos doentes. Vê a preguiça. A preguiça é a doença da raça inferior (SCHÜLER, 2005).

O segundo fragmento questiona a polarização do binômio civilização-barbárie, desconstruindo o discurso tradicional:

Não caia no equívoco de enquadrar o Império Caboclo na surrada antinomia civilização-barbárie. Se você quiser aplicá-la ao século XIX, vá lá. Mas tome cuidado. Se funcionou em José de Alencar, em Machado de Assis não funciona mais. (...) Bárbaro o caboclo não é. Quero acompanhá-lo em todas as suas contradições (SCHÜLER, 2005).

Os dois momentos, o tradicional e o crítico, se chocam, produzindo aquela flutuação de ideologias a que se refere Marilene Weinhardt. Em meio à narrativa de Donaldo, a montagem vai criando um estranhamento, desautomatizando, assim, a nossa percepção dos próprios fatos narrados. Entre o duelo de caboclos e militares, encontramos propagandas da época, documentos militares ou notas jornalísticas. No entanto, Donaldo não pretende fazer historiografia, mas sim literatura.