quinta-feira, 9 de julho de 2020

A poesia de Cristiano Moreira: carpintaria, tipografia e dentes de cachorro



Foto: Acervo Cristiano Moreira


Apreciador da produção literária paranaense - dos simbolistas aos contemporâneos -, confesso que, ao longo de minha vida, dediquei pouco tempo à leitura de autores catarinenses. A arte da palavra é uma coisa que não tem fronteiras, mas acabamos sempre associando autores a seus espaços sociais. E, de certa forma, aqueles que escrevem são influenciados por esse fator, sendo ao mesmo tempo elementos capazes de transcender a tal espaço. Para escritores, não existem limites, mas apenas limiares.  Tudo isso para dizer que um escritor está dentro e fora de sua própria casa. De longa data, sou um admirador de Cruz e Sousa, Ernani Rosas, Lindolf Bell e Péricles Prade. Já li com prazer livros da Urda Alice Kluger, Enéas Athanázio, Salim Miguel entre outros. Dos contemporâneos conheço quase nada. No entanto, há algumas semanas tenho descoberto e lido com muito encanto e interesse poetas do presente como Dennis Radünz e Cristiano Moreira.
Cristiano Moreira, além de poeta, é o idealizador de um belo refúgio integrado à Mata Atlântica, no interior do município de Rodeio, em Santa Catarina. Trata-se da Quinta da Gávea, uma propriedade rural que foi transformada num quintal criativo. Lá, o visitante pode, além de se integrar à bela natureza do Vale do Itajaí, vivenciar uma experiência poética, conhecendo a Biblioteca Rural, coordenada pelo Instituto Caracol, bem como a Oficina Tipográfica Papel do Mato, dirigida pela Papaterra Editora e Produções Culturais. Portanto, a Quinta da Gávea, trabalhando com o conceito de economia criativa, alia o serviço de hospedagem a um espaço de arte e educação. Com recorrência, Cristiano promove eventos culturais naquele curioso lugar, que é uma espécie ecológica de reserva poética.  

Foto: Acervo Cristiano Moreira

Foto: Acervo Cristiano Moreira

Foto: Acervo Cristiano Moreira


Foto: Acervo Cristiano Moreira


Há alguns anos, li dele o belo “Dengo Dengo” (Papaterra, 2016), um livro infantil para todas as idades. Ilustrado pela artista argentina Yannet Briggiler, o poema, em seu costado e convés, é uma obra marítima com gosto de sal e cais. Trata de narrar a aventura de um barco durante uma tormenta em alto mar. Ele só poderia ter sido escrito por alguém que ama as águas profundas e a elas é fiel. Aliás, Cristiano, esse calafate de palavras, já morou em Navegantes, onde foi ajudante de carpinteiro naval. A história do barco e de seu sonho é um livro sobre o amor e a esperança, evocando em minha memória afetiva o clássico “O velho e o mar”, de Ernest Hemingway, com o sabor sonoro de um João Cabral de Melo Neto. 
O trabalho de carpintaria é uma atividade que nos ajuda a dimensionar a arte de Cristiano Moreira. Recentemente, o poeta escreveu e confeccionou em sua Oficina Tipográfica o precioso “Imagens da Madeira” (Papel do Mato, 2019), que reúne um conjunto de poemas inspirados no trabalho dos mestres carpinteiros e calafates, artesãos da ribeira do Itajaí-Açu. Um deles: “O carpinteiro sob sol / segura cunha contra o barco / como farpa / dentro de um olho vê / o barco, esta palavra / crescer em seu corpo”. O livro foi impresso pelo próprio Cristiano e contou com o projeto gráfico de Jakson Chiappa. A tiragem foi de 25 exemplares. Carpintaria e Tipografia são artes que combinam e inspiram o trabalho literário do escritor.

Foto: Acervo Cristiano Moreira

Foto: Acervo Cristiano Moreira

Foto: Acervo Cristiano Moreira

A tipografia, que alia um tipo de artesania a um tipo de técnica, no sentido da maquinaria que permite a reprodução (o assunto convida a muitas reflexões no âmbito da literatura), inspira um dos mais recentes livros de Cristiano Moreira. Refiro-me ao “Dente de Cachorro” (Nave Editora, 2018), que me surpreendeu pela beleza poética, aliando com força o minucioso trabalho verbal a uma atualidade política que traz a poesia para o debate de nosso tempo. O livro merece certamente uma leitura muito mais minuciosa do que aquela presente nas vagas e imprecisas impressões que apresentamos aqui. Esse dente merece um longo texto só para ele, um artigo ou um ensaio que esmiuçasse os sentidos do poema que dá nome ao livro, que lesse de maneira mais aprofundada a beleza dos espaços entre suas palavras, espaços que fazem jus ao seu título, já que “dente de cachorro” significa aqui “erro tipográfico caracterizado pela inserção exagerada de espaços entre letras e palavras”. Esse vácuo, essa lacuna, esse hiato, esse dente de cachorro aqui se transforma em recurso, em imagem espacial que dá potência à poesia. Seria necessário atentar para a fotografia da capa trazendo um tipo gráfico dentro da boca de um cão, o Sumério. Entre seus dentes, a palavra afiada e potente como um latido. O poeta não morde, late, mas o latido morde o mundo. Parafraseando o poeta Pádua Fernandes, que figura em uma das epígrafes do livro, o que temos aqui não são poemas e sim latidos. Não há um autor, mas uma fera. É uma imagem bonita. No entanto, é claro, existe o poeta e suas armas são as palavras: “(...) no estado de exceção / importa resistir à investida / com poemas / e outras formas de vida”. Os versos aqui não conseguem reproduzir o aspecto visual do poema que é fundamental para a sua apreciação. Há que se ler no livro.


“Anti-tipografia”, o primeiro poema da obra (na verdade o segundo, porque o primeiro está na capa), nos mostra em que terreno pisamos. A arte da tipografia dá lugar a primeira (má) impressão, infelizmente aquela que fica. Trata-se do que temos visto reinar atualmente no Brasil: “[bois sem canga no planalto] / puseram o país na prensa / com imprensa um tanto torpe / lavraram leis, livraram réus / chutaram alto / e passaram a imprimir o golpe”. “Anti-tipografia” é uma arte que aponta para a ausência de arte na política de nossa governança, que nem chega a estetizá-la.            
O clima de intranquilidade e a consciência da desgraça vai imprimindo ao longo das páginas o tom do livro. O poema “Sinuca”, que imagina uma conversa do poeta com o pai, inspira-se no jogo aclamado pelo escritor João Antônio para falar de tempos difíceis. Estamos numa sinuca, diz o ditado popular. O boteco é um microcosmo do país. Lá o taco ataca a bola como “lá fora o pau come / bala de borracha / acerta o estudante / feito bola 8”. “Sinuca” aponta para a vida como uma política de jogo. O que de certa forma vemos também no poema “Infância do pife”, que a partir de um jogo de cartas elabora um rico jogo de imagens. A escritura como jogo. Em “Desmoradas”, o poeta aponta para a despolitização dos corpos e de suas moradas desmoronadas. Em “Novena contra chumbo”, os versos nos convidam a seguir adiante, já que “o poema ainda é à prova de balas”. Cristiano Moreira faz o levante com a voz. O enigma de textos como “Deserto, de resto” e “Zezuíííno”, este um dos mais bonitos do livro, já alimentou muitas releituras de minha parte. Outro dos mais complexos, pela sua riqueza, é o poema “A palha alegra o homem”, que insere no mesmo mosaico figuras como o Mágico de Oz, Osman Lins, Oliverio Girondo, Walter Benjamin, Katharina Detzel, entre outras, que devolvem potência à imagem do espantalho. Há ali, a meu ver, o verso mais belo do livro, polifônico com seu sotaque catarinense, “lá há só eco seco sobre saco de supilho”.
Leio e releio o livro de Cristiano Moreira. Sinto-me transformado em um cão. O livro afina o meu faro para o presente da literatura do Estado em que nasci, e afia os meus dentes para o presente desse país exilado em que ainda vivo.  

Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR)