quarta-feira, 27 de abril de 2016

O velho Guaráu ou o poeta sapateiro (da série: Origens da poesia em Porto União da Vitória)


Porto União da Vitória - 1912 - Foto: Claro Janson

Curiosamente, ao ler os Apontamentos Históricos de União da Vitória (1768-1933), de Cleto da Silva, em um pequeno parágrafo, aparentemente fortuito, cuja leitura distraída poderia obliterar o fato descrito, encontramos uma informação que pode iluminar uma reflexão sobre os pioneiros da poesia em Porto União da Vitória. Em meados do século XIX, quando a cidade era uma pequena vila, um dos primeiros moradores, chamado Antonio Joaquim Castilho, mais conhecido como o velho Guaráu, era um exímio tocador e ponteador de viola. Segundo o historiador dos Apontamentos, o sujeito sabia fazer uma “porfia em regra”, bem como “não se descuidava de fazer sapatos 'grosseiros' e chinelas, pois tinha o ofício de sapateiro”. Ora, fazer porfia com a viola significa duelar em forma de versos, à moda do repente, que é uma das manifestações mais expressivas da literatura oral popular. Se estivéssemos buscando o nosso primeiro poeta, o que de fato não é nossa preocupação, talvez o encontrássemos nas porfias do velho Guaráu. Dos poemas escritos um de nossos primeiros registros pode ser encontrado também nos Apontamentos de Cleto da Silva. Trata-se de uma passagem assinada por F. de Castro em um documento referente à demarcação de limites entre o Brasil e a República Argentina datado de 8 de Novembro de 1889, momento em que o Império agonizava enquanto a República se preparava para nascer. Uma semana depois da assinatura do documento pelos componentes da comissão, proclamava-se a República no Brasil. Os versos de F. de Castro parecem prefigurar os acontecimentos iminentes: “O progresso é uma força que não para / Está no alto mar, está no Sahara / Em toda parte está / Gravitando co´os os céos / vôa co´os ventos / E dilatando a esfera dos pensamentos / A luz também lhes dá” (apud SILVA, 2006, p. 55). 

terça-feira, 26 de abril de 2016

Joaquim Serapião do Nascimento (da série: Origens da poesia em Porto União da Vitória)


Em 2016, comemora-se 100 anos da intervenção poética de Serapião do Nascimento na cidade de União da Vitória, quando no dia da inauguração da Ponte Machado da Costa, em novembro de 1906


Em União da Vitória, o nome do professor Serapião é associado à escola que leva seu nome. Sabe-se que o poeta nasceu em Iguapé, no Estado de São Paulo, em 1847 e que, ainda jovem, veio para o Paraná, onde abraçou o magistério. Dirigiu o Colégio Nossa Senhora da Luz, em Curitiba, e fundou o Colégio Santana do Iapó, no município de Castro, em 1882. Veio para União da Vitória em 1901, onde lecionou durante vários anos, vindo a falecer em Curitiba , em 11 de junho de 1911. Serapião foi também dramaturgo, deixando as seguintes peças de teatro: "13 de Maio", "O Cocheiro", "Arte na Roça", "José do Egito", "O Nascimento de Jesus", "O Filho Pródigo", "O Sr. Aprígio em Apuros", "A Carta que Dá Dinheiro", a "Vítima do Jogo" e "Honrarás teu Lar". Aliás, estas duas últimas, montadas na década de 50 pelo Teatro Experimental do Guaíra e dirigida por nada mais nada menos que Dalton Trevisan.

Fora isso, pouco se sabe sobre sua vida e sua obra. Quem visitar as dependências da escola Serapião do Nascimento não encontrará fotos de seu patrono. E se procurar sua imagem em arquivos públicos, tampouco. Até o momento não há fotografias conhecidas do eminente professor. Sua imagem sobrevive no legado da obra e em um desenho de Dirceu Marés de Souza, provavelmente produzido a partir de descrições, pois quando Dirceu nasceu o poeta já havia morrido. É possível que a imagem tenha sido inspirada nas mesmas descrições apontadas por Alvir Riesemberg, em um texto lido no Clube Apolo, em comemoração ao centenário do Grupo Escolar Professor Serapião, que descreve o mestre: Estatura alta e compleição robusta. O cabelo branco atirado para trás, o bigode torcido em gui fina, o cavanhaque prolongando-se em ponta. Expressão franca, olhar inteligente, gesto largo. Indumentária sóbria e bem cuidada"um 'croisé' de alasticotina emoldurado com a gola de seda o peito engomado da camisa, sobre cuja alvura nitente enlaçava-se a gravata preta" (apud MELO JÚNIOR, 1990, p.110). 

A descrição reproduz o depoimento de seus contemporâneos. Dupla condição do fato: Alvir relembra Serapião, mas o que lembra é a lembrança de outros. Difícil saber onde termina a realidade e começa a ficção.      

Estamos diante de um mistério. Seria o seu cabelo tão avolumado quanto nos mostra o esboço? Seriam o seu bigode e cavanhaque tão discretos assim? Os traços de Dirceu fazem de seu modelo uma figura semelhante a Trotsky. Não apenas pelo cabelo e cavanhaque mas também pelo rosto anguloso e olhar profundo e revolucionário. Se o desenho não condiz com a realidade, não importa. A ilustração de Dirceu nos legou um Serapião. Temos uma imagem para o poeta. E ela nos basta. Talvez algum dia uma fotografia apareça. E se a imagem de Serapião for o seu avesso, não faz mal. Teremos a foto em que o poeta é e  o desenho onde ele é o que poderia ter sido. Por enquanto, fiquemos com a imagem de poeta e professor revolucionário que já atuava no magistério quando o líder bolchevique nasceu.



Lev Davidovich Bronshtein, "Lvov", "Pero", "Trotsky"


Uma outra observação pode nos ajudar a formar uma imagem do poeta-professor. Alvir Riesemberg escreve que um antigo aluno de Serapião o comparou aos Mosqueteiros de Dumas, "não só pela aparência física, mas também pela reação pronta e viva do espírito, sempre segundo a mais bela padronagem moral, em face das solicitações da vida"(apud MELO JÚNIOR, 1990, p. 111).


Douglas Fairbanks como D'Artagnan, em 1921, no cinema

Chama a atenção não apenas a esparsa obra do intelectual, cujos originais em sua maioria foram extraviados, mas principalmente a atitude poética presente na trajetória de Serapião, provavelmente nosso primeiro poeta performático. Há um episódio que ilustra bem esse fato. No dia 26 de novembro de 1906, em comemoração à inauguração da Ponte Ferroviária Machado da Costa, o poeta escreve um famoso poema dedicado à União da Vitória e o espalha pela cidade no grande dia. Aquele era um momento de grande otimismo não só na cidade mas em todo o mundo, tendo em vista que vivíamos uma época de intensas transformações técnicas e mecânicas. Nesse sentido, "progresso" era uma palavra de ordem que aparecia no poema de Serapião como sintoma de seu tempo.

Vale lembrar que no mesmo ano em que se deu a inauguração da ponte - que para o município simbolizava uma época desenvolvimentista -, Santos Dumont realiza seus voos em Paris com o 14BIS. Em 12 de novembro de 1906, em Bagatelle, duas semanas antes de Serapião escrever o poema, o pai da aviação aprimora sua máquina de voar, realizando com o Oiseau de Proie III o voo que lhe rendeu o Prêmio do Aeroclube da França e o reconhecimento internacional.

Segundo o registro de Alvir Riesemberg, o dia de inauguração da ponte foi magnífico. A cidade decorada com bandeiras e guirlandas comemorava ouvindo a banda de música de João Holmann, que viera de Ponta Grossa especialmente para o evento. Foguetes eram lançados ao céu e, à noite, em uma sessão solene no Clube União, uma "cabocla bonita do jararaca", a Luíza Amâncio, descalça e toucada de flores, representava União da Vitória: "Diante dela, o Professor Serapião declamou, fremido, o poema que compusera naquele dia" (apud MELO JÚNIOR, 1990, p. 113):    

Selvagem qual bugre nu:
Banhada pelo Iguaçu,
À beira dele nasceste,
Linda cabocla indolente!
A dormir em mata ingente,
Entre colinas cresceste! 

Como criança da roça,
Foi teu berço uma palhoça
Erguida em férteis zonas,
Foi teu primeiro luzeiro
O vaporzinho CRUZEIRO
Do Coronel Amazonas! 

Qual cordilheira dos Andes,
Vazada em cadinhos grandes,
Cogitavas inativa! 
Então ribombou por tudo,
Assim como um grito agudo,
A voz da locomotiva. 

Do ventre a saltar fumaça,
Ei-la ligeira que passa
Do Estado a maior ponte:
É o progresso nos trilhos
Em procura de outros brilhos
De cintilantes horizontes! 


Eis a cabocla bendita
De pé, no banco da glória!
Cercada de lindas flores,
Ao som de cantos de amores,
Eis a UNIÃO DA VITÓRIA! 

O poema composto predominantemente por sextilhas, em um conjunto de versos heptassílabos com rimas emparelhadas - esquema muito comum na tradição da poesia popular de língua portuguesa -  faz lembrar a estrutura rítmica romântica de Castro Alves e Casimiro de Abreu, cuja lírica é exaltante e grandiloquente, ou seja, entendida como linguagem em estado de ânimo. Como era comum no final do século XIX e início do século XX a leitura dos poetas do romantismo, é provável que Serapião tenha deles sofrido forte influência. Não seria fortuito comparar o sentimento de amor por União da Vitória em seus versos com o ufanismo da "Canção do Exílio", de Gonçalves Dias, cujo poema é também formado por sextilhas emparelhadas - como em Castro Alves e Casimiro de Abreu, no entanto, agora de versos heptassílabos. A diferença é que nos versos de Serapião não estamos diante de um exilado e sim de alguém que adotou a terra estrangeira como seu legítimo chão. Dificilmente, um estrangeiro conseguiria traduzir com eficiência um sentimento tão forte pela terra que lhe deu guarida se não considerasse seu espírito como parte dessa realidade.      

O fato de o poema na sua última estrofe contar com apenas cinco versos, e não seis como nas estâncias anteriores, cria um efeito inusitado - semelhante ao do soneto que nas duas últimas estrofes possuem um verso a menos do que nos quartetos iniciais -, pois à medida que deixa a impressão de estar faltando o último verso, como que deixando o leitor a espera de um final, desloca a atenção para o nome da cidade. Independente desse efeito ter sido ou não planejado pelo poeta, o seu resultado é eficiente.

Outro aspecto que chama a atenção no poema é a forte carga imagética que ele materializa, como a pintar um quadro vivo da cidade em pleno processo de transformação, do estado natural - em que a cidade é percebida e personificada como um bugre nu, uma cabocla indolente, uma criança da roça -,  passando pelo processo da colonização, figurada na referência ao Vapor Cruzeiro do Coronel Amazonas, ao momento de desenvolvimento técnico e econômico, cujo caminho é a glória. Da predominância de vocábulos com pouca sonoridade (bugre nu / Iguu / dormir), que sugerem uma espécie de estado selvagem da própria língua, o poema passa à recorrência de palavras sonoras: (glória, linda, Vitória, locomotiva), como que a constatar a metamorfose da cidade em prol do progresso e da civilização.

É uma pena que o tempo tenha tratado de apagar a obra poética de Serapião. Não encontrei mais do que seis poemas de sua verve: o poema sobre União da Vitória, o poema escrito em 1910, em homenagem a João Gualberto e aos militares do Tiro Rio Branco, depois de serem recebidos como heróis em Curitiba, dois poemas para Amélia, sua esposa, e o outro escrito quando completou sessenta e dois anos de idade que tem como tema uma reflexão sobre a sua vida.  Há também um poema sobre a cidade de Morretes: 



Caio Ricardo Bona Moreira

segunda-feira, 25 de abril de 2016

Mimoso Ruiz (da série Origens da poesia em Porto União da Vitória)



Alexandre Nogueira Mimoso Ruiz (1887-1951) é certamente uma das figuras mais curiosas e menos conhecidas da história de Porto União da Vitória. O poeta e jornalista era um português nascido em Lisboa, onde foi vice-presidente da Associação dos Trabalhadores da Imprensa de Lisboa. Em 1912, quando era redator do jornal A Nação, em Portugal, foi preso provavelmente por criticar a República recém implantada. Julgado em 1913, e condenado a dois anos de prisão, foi restituído à liberdade em 1914. Em 1922, transferiu-se para o Brasil com a finalidade de chefiar a delegação portuguesa nas comemorações do centenário da Independência do Brasil.
O poeta se instalou em Santa Catarina e interessando-se pela vida pública foi correspondente de guerra, cobrindo campanhas militares e incorporando-se como 2° Tenente voluntário à Força Pública, atingindo o posto de capitão. Em Florianópolis, dirigiu o jornal Folha Nova, lecionou na Escola Regimental Marechal Guilherme e nos cursos de Preparação Militar e de Aperfeiçoamento de Oficiais.



Pouco se sabe sobre a atuação de Mimoso Ruiz em Porto União. O que pode ser apurado é que ainda na década de 20, o poeta residiu na cidade, onde criou o jornal A Voz do Sertão, lançado em 13 de Abril de 1926. No periódico, que parece ter tido tendências políticas voltadas para o apoio a Victor Konder e a Washington Luiz, podem ser encontrados vários poemas do jornalista, que versam sobre temas variados. Em um deles, numa das dez quadras decassílabas, defende Anita Garibaldi: "Correr p'ra Garibaldi como um astro, / casar mais tarde, é ter perdido a linha? / Porventura se perdeu Ignez de Castro / a qual depois de morta foi rainha?".  Em outro, intitulado "Cantores Caboclos", de forma métrica relativamente livre, canta a sua paixão por uma cabocla. Trata-se de um poema que assimila, em um processo de obnubilação das origens portuguesas, o universo regional e popular do sul do Brasil, tanto no tema, na forma, como no vocabulário: "Ch'ucro na tropa / desta vida no rodeio / na mangueira dos teus braços / ando em busca de custeio // na herva-mate dos lábios seus / eu quisera morrer viciado / perdoe-me Deus // Oh quem pudera / ir tomar cheio de desejos / na cuia da sua boca / chimarrão feito de beijos". 
Na edição de número 12, veiculada em 4 de julho de 1926, Mimoso apresenta dois sonetos com temática polêmica. Em ambos, a igreja é o cenário de um encontro voluptuoso entre Cristo e uma fiel. No primeiro, intitulado "Jesus Crucificado", o poeta imagina ter visto uma troca de olhares entre Jesus e a moça, criticando tanto um como o outro pelo ato. O poeta se encerra com uma imagem no mínimo curiosa, A Virgem Maria sai de seu altar e se dirige ao filho para cobrar-lhe a falta. O segundo soneto, intitulado "Coração de Jesus", está diretamente ligado ao primeiro, funcionando como sua continuidade, depois da saída da jovem da igreja, o poeta volta à igreja e percebe que Jesus, com saudades da jovem, abandona o altar, deixando em seu lugar o Coração Sagrado. Trata-se de uma publicação bastante profanadora, principalmente em um jornal da pequena cidade de Porto União. Podemos imaginar a impressão de estranhamento ou revolta que pode ter causado entre os religiosos e fiéis que, por ventura ou desventura, leram A Voz do Sertão, naquele 4 de julho. Tanto um quanto o outro soneto fazem lembrar de alguns poemas de Cruz e Sousa como "Cristo de Bronze", que rebaixa a figura de Jesus, ao apresentá-lo como uma figura luxuriosa.





É provável que tenha residido também em Valões, tendo em vista que uma nota publicada na edição de número 8 do Jornal, de 06 de junho do mesmo ano, informou que Mimoso Ruiz, por ser forçado a residir em Porto União devido à publicação do jornal, solicitou ao chefe de polícia do Estado a sua exoneração do cargo de Delegado Especial de Valões. O pedido foi aceito.  

quinta-feira, 21 de abril de 2016

Cícero França (da série Origens da poesia em Porto União da Vitória)


Cícero França (1884-1908), figura quase esquecida das nossas letras, foi incluído por Andrade Muricy no Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro. Dos primeiros poetas da região, foi o que mais se projetou no cenário literário brasileiro. Filho de Napoleão Marcondes de França e de Francisca Olímpia Silveira de França, e sobrinho do Coronel Amazonas, o local de seu nascimento é incerto. Alguns biógrafos apontam a Fazendinha (Rosal do Cruzeiro), em Palmas, como sendo o local de seu nascimento. Outros indicam União da Vitória.

Como os arquivos do Cartório de União da Vitória anteriores a 1938 foram perdidos, o mistério provavelmente perdurará. Independente de sua origem, é certo que a família do poeta viveu em União da Vitória, projetando-se no cenário político e econômico da região. Com base nos poucos relatos biográficos, podemos afirmar que Cícero França possuía um espírito viajante e aventureiro, pois além de morar em União da Vitória, viveu em Curitiba, Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo.

 

Cícero França 

Raul de Almeida Faria, em seus diários, compilados por Paulo Roberto Karam, relembra sua grande amizade com o poeta de Necrotério D'Alma, nascida no Colégio Paranaense, quando eram ainda estudantes, e onde Cícero publicou seus primeiros poemas no jornal O Estudo, periódico cultural do Colégio. Raul lembra que Cícero "sempre que podia deliciava-se em estudar a metrificação do verso". Por volta de 1900,  o jovem foi à Bahia se preparar para a Faculdade de Medicina. Lá, hospedado no Hotel Sul Americano, trocou correspondência com o amigo Raul de Almeida Faria e aproximou-se do grupo simbolista Nova Cruzada. No fascículo VII da revista simbolista Nova Cruzada, de Salvador, publicada em novembro de 1901, há uma nota que informa a admissão de Cícero França como novo membro do grupo: "Em sessão extraordinária, de 21 do corrente, receberam a investidura de cavaleiros da Nova Cruzada os ilustres moços Barros Leal e Cícero França sendo respectivamente saudados por seus paraninfos Rafael Leal e Galdino de Castro". 

A pesquisadora Cecilia de Lara, que estudou a atuação do grupo simbolista baiano e a revista por ele fomentada, observou que essa sociedade literária tinha reuniões ordinárias e extraordinárias, feitas para admissão de novos sócios ou por outros motivos, e sessões comemorativas. Ela informa também que as sessões de ingresso eram memoráveis e fascinadoras pelo conjunto artístico que "apresentavam nos melhores matizes do pensamento aprimorado, perduravam nos motivos de palestras em todos os meios da velha Salvador. A revista Nova Cruzada foi uma das mais importantes do simbolismo. Não nos foi possível apurar se Cícero França chegou a conhecer e travar amizade com Pedro Kilkerry, um dos grandes poetas brasileiros do início do século que também integrou o grupo. No entanto, é bem possível que tenham se conhecido.  


 

Foto rara (sem data) de Cícero França ao lado do Dr. Helvidio Silva, publicada na revista ilustrada A Bomba, em Curitiba, 1913. O poeta está de chapéu e livro na mão:o dandismo característico dos poetas da belle époque 

Em fins de 1901, Cícero se reencontra com Raul de Almeida Faria e ambos vão para São Paulo, com a finalidade de se matricularem na Faculdade de Direito. Foram morar em um apartamento na rua José Bonifácio. Tratava-se de um quarto "nada consolador", localizado no andar superior de uma casa importadora de azeite, querosene e bacalhau que davam ao ambiente um cheiro peculiar que desagradava os seus moradores. Nesse momento se intensifica a produção de Cícero. Raul lembra do ritual segundo o qual se submetia o poeta, fumante e bebedor inveterado de café, quando escrevia: "Tinha o meu companheiro de quarto uma graciosa esquisitice: Não escrevia a não ser com as pernas estiradas numa cadeira que, cuidadosamente, punha a certa distância daquela em que se sentava". Depois de desistirem da Faculdade de Direito, os dois amigos foram para o Rio de Janeiro, em uma pensão. Cícero se aproximou do poeta Emilio de Meneses, participando, assim, do ambiente cultural da belle époque carioca. 

O diário de Raul de Almeida Faria apresenta um episódio que demonstra o gênio bondoso de Cícero França: "Espírito de uma sensibilidade excessiva, dotado de um caráter forte e de um grande coração, praticou o Bem , a Caridade com grande devotamento. Um dia chegava a pensão um moço maltrapilho que fez entrega à dona da casa de um bilhete que meu amigo lhe endereçava dando ordem para ser entregue ao portador um terno de roupa já seu usado. Por engano foi-lhe entregue roupa nova, chegada de véspera do alfaiate a quem tinha sido paga com algum sacrifício. Cícero, chegando em casa, ciente do engano, não censurou a precipitação do nosso senhorio: riu-se rematando o fato com essa expressão de bondade:...'e o manata meteu-se na minha roupa nova'". Foi nessa época que Cícero, depois de cuidar de um "serenatista" que havia contraído tuberculose, começou a piorar da doença que lhe tiraria a vida.Em Curitiba, muito doente, Cícero organiza o livro de poemas Necrotério D'alma, lançado em 1905, no mesmo ano em que fundou o jornal O Rebate, em União da Vitória. 

A obra Necrotério D'Alma, uma das mais decadentistas da moderna poesia brasileira, é comentada em jornais paranaenses, como A Notícia que, durante todo o mês de novembro daquele ano, informa que o livro estava sendo vendido na Livraria Econômica, em Curitiba, Paranaguá e Ponta Grossa. Ainda no final de 1905, entra em circulação mais uma edição da revista simbolista Stellario, de Curitiba, que conta com a colaboração de Cícero. O que demonstra que o poeta consegue se projetar na literatura paranaense que, por sua vez, era o cenário mais fecundo do simbolismo brasileiro.  


 
Propaganda do livro, veiculada em 1905 pelo jornal paranaense A Notícia 

Os primeiros poemas que integram o Necrotério D'alma são datados de 1901 e 1902 e indicam que foram escritos na Bahia, o que demonstra que a participação do poeta do grupo da Nova Cruzada foi bastante motivador para o seu trabalho. No entanto, ao folhear as páginas da revista, não encontramos nenhum trabalho seu publicado. Esse fato talvez se dê pelo pouco tempo que Cícero França passou em Salvador, pois logo voltou ao Paraná. Independente do fato de ter colaborado ou não na revista, as impressões deixadas pelo grupo no poeta foram fortes, a ponto da capa de seu livro indicar que o autor do livro pertencia ao grupo baiano. 



Poema que integra Necrotério D'Alma 

Necrotério D'Alma é composto por 26 sonetos. Em todos, o tom é cinzento e lúgubre, fazendo lembrar o tipo de melancolia presente em vários poetas simbolistas, principalmente naqueles em cujo trabalho transparece o sentimento de decadência fin du siècle. Seus versos, de métrica predominantemente alexandrina, estão atravessados pelo sentimento de spleen baudelaireano que motivou boa parte da produção poética do final do século XIX. É provável que Cícero França seja um dos poetas mais decadentistas do seu tempo. Temas como a morte, a dor e o tédio formam um eixo sob o qual se move uma poesia interessada em imagens como a da sepultura, a da caveira, a da tuberculose, a do cadáver, a das trevas, entre outras. Ao longo das páginas, à medida que lemos, assistimos a um desfile de horrores: fantasmas rindo, esqueletos nus gargalhando, corvos e mochos grasnando, sinos de igreja tocando. O sentimento de decadência é eximiamente materializado no poema "Porque", no qual observa que a rosa murcha que levava na lapela simbolizava o padecer de um torturado. A flor murcha, sintoma de uma natureza decaída, parece uma imagem bastante adequada para traduzir o spleen de um eu-lírico imerso em um sentimento de decadência.


O primeiro poema do livro, "Entrae", uma espécie de preâmbulo, é importante para situar o universo da obra. Nele, ela é apresentada como um necrotério. O poeta convida o leitor a entrar sem nojo para mirar e "autopsiar" o cadáver de sua alma. Não há podridão ou pus, já que um "cadáver de alma essas coisas resiste". Todavia, o sentimento de decomposição - decadência - percorre todas as páginas. O convite é reforçado no poema "Finis", quando o poeta constata a sua própria morte, descreve a chegada do cadáver ao necrotério e instiga o leitor a pegar o bisturi para abri-lo. A impressão é a de que estamos caminhando pelo necrotério de Paris, estabelecimento que, na segunda metade do século XX, foi aberto para visitação. Tratava-se de um espetáculo mórbido, em que a morte era transformada em show.


Capa de Necrotério da Alma (1905) 

No poema intitulado "Tédio", Cícero França explora o topos do já citado spleen baudelaireano, recorrente em vários poetas simbolistas: "Um tédio monacal - tédio feroz, maldito - / Mortifica meu peito! a gargalhar, me invade, / Sarcástico, fatal o coração precito / E deixa-m'o ferido e cheio de ansiedade." Como não aproximá-lo aqui do poema "Tédio", de Júlio Pernetta: "Vês que trago o coração sangrando / Pela perfídia de um amor enorme? / Alma de Jó, sou bem desventurado / Dentro da treva a soluçar-te o nome" (in MURICY, 1987, p. 419). Enquanto o tédio de Júlio Pernetta é alimentado pela impossibilidade de possuir a amada, em Cícero França é a própria vida, acompanhada da doença, o motivo do tédio. No entanto, o sentimento de decadência vem acompanhado de uma esperança: "E quando a extrema-uncção d'um Pôr de Sol de Agosto / No meu corpo cair bem de mansinho e brando / E a luz de outro viver banhar-me todo o rosto...". Esse é o momento em que o tédio do poeta acabará. Portanto, a morte para o poeta não tem o sentido negativo de finitude, mas sim de transcendência, uma filosofia comum no simbolismo, aproximando-se assim do poema "Tédio", de Saturnino de Meireles, publicado em 1903, e que via nesse triste desalento o sentimento de um céu que fazia fluir neblinas.


Nos versos de "Phtisica", expressão comum na época para designar a tuberculose, o poeta prevê o seu de seus dias movidos pela doença. À meia-noite, o poeta ouve o som tenebroso dos sinos de uma igreja, e tem uma visão: "É a Phtisica maldita... Essa visão fatal / Murmura ao meu ouvido um prenúncio de morte / E diz-me porque tusso e a causa do meu mal...". O poeta luta, mas sente que a tuberculose lhe rói o corpo e a alma. Em "Augural", Cícero escreve: "Segreda-me uma voz que cedo morrerei". Como o prenúncio se fez como previsto, o poema acaba por ganhar uma força bastante trágica. Não seria fortuito lembrar que o crítico simbolista Gonzaga Duque, no ensaio "Imagistas e nefelibatas", publicado na revista Kosmos, em maio de 1906, sublinha o gosto decadista pelo tema da tuberculose, vendo nela um dos traços espirituais da poesia de B. Lopes. O último poema do livro, "D'alem Túmulo" é uma espécie de texto post-mortem, pois é escrito como se o poeta já se encontrasse no além fazendo uma espécie de balanço de seus feitos na terra. Impressionou-nos o fato de termos encontrado um poema psicografado pelo médium Chico Xavier atribuído a Cícero França. O confronto da linguagem desse texto com os poemas de Necrotério D'Alma demonstra uma semelhança significativa.  

         
Fotografia do poeta publicada na revista Olho da Rua,em 7 de setembro de 1907 

Em 1908, bastante debilitado, o poeta decide visitar a família em Porto União, mas morre no Hotel Palermo, na Praça da Matriz, em Ponta Grossa, na noite de 10 de julho, sendo assistido pelo irmão mais novo Vespertino França, responsável pelo seu espólio. O corpo foi transportado para União da Vitória, onde foi cuidado pelos membros da loja maçônica Amor e Caridade. O corpo está sepultado no Cemitério Municipal. No texto que integra a segunda edição do livro, Vespertino escreveu: "(...) poucas horas antes de expirar recordou comigo passagens de nossa vida em família, fez algumas recomendações e já alta madrugada, mandou que me deitasse para repousar. Pela manhã, quando acordei, encontrei-o morto. Assim, fui eu, que contava apenas meus 12 anos de idade a única pessoa presente nas suas derradeiras horas de vida".

quarta-feira, 20 de abril de 2016

Romeu Balster (da série: Origens da Poesia em Porto União da Vitória)

Poema de Romeu Balster publicado no jornal União, em 08 de agosto de 1920. O periódico circulava em Porto União. Quem teria sido Iêdda? Teria existido? O poema é dedicado a um tal Ranulpho. Seria o pai do anjinho? A influência da "art nouveau" do início do século passado aparece nos detalhes decorativos que acompanham o poema. A poesia aparecia com frequência nos jornais de nossas cidades já naquele tempo.



Romeu Balster nasceu em Paranáguá em 1884 e faleceu em União da Vitória em 1932. Fez o curso de Humanidades em Itu, São Paulo, dedicando-se mais tarde à carreira jornalística. Em Porto União, na década de 20 fundou o jornal União. É autor do famoso "Brasilíadas", longo poema satírico que parodia os Lusíadas de Camões. são 54 composições em forma de oitavas com decassílabos. O livro foi publicado em 1926 com o pseudônimo Mephisto.  





Capa do livro Brasilíadas, desenhada por Alceu Chichorro. 


Poema que abre o livro Brasilíadas, num franco e parodístico diálogo com os Lusíadas

Em 1926, Filippo Tommazo Marinetti vem ao Brasil divulgar o futurismo italiano e proferir algumas conferências. Enquanto muitos intelectuais saúdam e ciceroneiam o vanguardista, outros veem no gesto de louvor um ato condenável pela relação de proximidade do escritor com o fascismo.  Romeu Balter, com o pseudônimo Mephisto, publica no jornal O Dia, em 14 de maio, o poema "Ao grande embrulhador". Ao se apropriar ironicamente de uma linguagem próxima às inovações futuristas, o poeta desqualifica Marinetti: "Não vejo razão de festas, / Ao Marinetti, o Brasil, / Conta escritores bastas / aos mil... // Quanto aos poetas, / patetas / Que não sabem o ABC / Ora esta é boa / À toa / por toda parte se vê... // Quanto aos pintores, / Senhores, / Marinettissimamente / No claro escuro / de um muro / quanta gente? // Nos ramos todos da Arte / Nós brasileiros podemos / Mandá-lo ir àquela parte / Pois melhor que ele já temos". O poeta forja o neologismo "marinettissimamente" para caracterizar o modo os artistas procuravam produzir a sua obra, pautados por um estilo que visava ao invés da politização da arte a estetização da política. Considerando, lucidamente, o italiano como um embuste, Romeu Balster encerra o poema concluindo que no Brasil existiam poetas melhores, aproximando-se assim de uma linhagem de escritores que viu com desconfiança a presença de Marinetti entre nós, como é o caso de Mário de Andrade e Oswald de Andrade, em São Paulo. O ativismo poético e político de Balster demonstram que o escritor estava informado sobre os acontecimentos literários que transcendiam o âmbito provinciano paranaense, o que, aliado ao seu virtuosismo poético, rendeu-lhe um poema que, "marinettissimamente" irônico, rechaçava Marinetti.       

terça-feira, 19 de abril de 2016

María Negroni e o mapa

Em 2004, o artista plástico argentino Jorge Macchi inseriu sobre um mapa de Buenos Aires uma placa de vidro partida. De um ponto preciso, na esquina entre a rua Mexico e Santiago del Estero, oito linhas de fuga foram surgindo ao azar, formando, assim, uma trajetória que percorria a cidade em várias direções. Nesses caminhos, quarenta e seis pontos de interesse foram escolhidos. Na maioria deles, tratava-se de esquinas, ou seja, de pontos de encontro, de intersecção de coordenadas que, ao azar, se encontravam na linha do quadro fissurado. O artista convidou a escritora María Negroni para escrever sobre os pontos da cidade e o músico Edgardo Rudnitzky para produzir a trilha sonora.

Vidro quebrado e itinerário de Buenos Aires traçado a partir da fissura

O resultado foi a exposição “Buenos Aires Tour”, que ocorreu entre novembro de 2003 e fevereiro de 2004 na galeria de Arte Contemporânea Distrito 4[1], em Madri. A instalação reuniu um conjunto de imagens, sons e palavras que convidavam o espectador, de maneira desinteressada, a passear por essa outra Buenos Aires. Digo desinteressada porque o acaso apontava muitas vezes para pontos contingentes, banais, transitórios, que passavam a existir plenamente, ou pelo menos ganhar atenção, a partir da exposição. Dois anos depois, María Negroni publicou o livro de poemas em prosa também chamado de Buenos Aires Tour, que revisitava o projeto. É dele que tratamos aqui. Trata-se de quarenta textos breves que formam uma publicação cuja capa apresenta um mapa da cidade de 1874, colhido do Atlas de Buenos Aires, organizado por Horacio A. Difrieri.

Mapa coletado por Difrieri que integra a capa de Buenos Aires Tour, de María Negroni

Ler o livro é refazer o percurso do acaso, promovido pela fissura de Macchi, transformando o azar em passeio, ou seja, em produtividade.  Saavedra y Belgrano, Zepita y Luna, Uruguay y Corrientes, Sarmiento y Callao são apenas alguns exemplos de ruas que se encontram e desencontram no livro de Negroni. Há também lugares precisos como o Museu de Belas Artes, o Cemitério da Recoleta, ou a fonte de Lola Mora, que em sua imprecisão convidam o leitor a perder-se pela cidade como uma forma de conhecê-la. Escrever é perder cidades, diria-nos Enrique Vila-Matas. O livro, em certo sentido, transcria a experiência da instalação no plano verbal. Sobre esse aspecto, David Oubiña, no texto “Palabras en combustión espontânea”, observa que do objeto original, ou seja, da exposição, o livro de Negroni conservou os pontos de interesse, no entanto, os organizou em uma cartografia diferente: “Aislados de las imágenes y de los sonidos para los que habían sido concebidos, los textos adquieren otro sentido, recuperan su configuración distintivamente literária” (in NEGRONI, 2006, p. 7). Os poemas não se caracterizam apenas como uma versão da exposição, mas sim como um objeto novo. Oubiña ainda escreve que “los sitios que se describen ya no son una escala dentro de un itinerario, sino pequeños destellos de una constelación imaginaria” (in NEGRONI, 2006, p. 7). Aliás, é como constelação que a cidade se apresenta para quem a sobreboa durante a noite. Buenos Aires é um palco na terra todo estrelado. É céu ao avesso.
Se por um lado o mapa poderia ser lido como um conjunto de coordenadas que visam à orientação, por outro, como sugere María Negroni no prólogo do livro, pode ser visto como um conjunto que perturba a localização, levando-nos ao cansaço e à entrega. Mapa e livro podem ser entendidos, assim, não só como guias de localização e entendimento, mas também como convite ao extravio e à deriva. Nesse jogo, é a própria escritora que aproxima as coordenadas de um mapa à escritura. Esta como aquela seriam “el sueño de unos paseos interminables por paisajes olvidados, una grafía incierta donde cada lugar es un mundo (un espacio interior) (…)” (2006, s/p). Nesse sentido, perder-se na cidade talvez seja uma forma de conhecê-la. A escritura surge como uma forma não só de perder cidades ou países, como nos indicou em poema Fernando Pessoa, mas também de imaginar outras geografias poéticas possíveis. 
A questão da cidade parece ser uma constante na obra de María Negroni. Em seu mais recente livro, o Pequeño Mundo Ilustrado, a escritora inclui dois textos sobre o tema. No primeiro, discute o projeto de vida nômade da cidade Nova Babilônia, projetada pelo arquiteto Constant, em 1956, que se transformou em um ícone da Internacional Situacionista e que estava dividido entre o mapa e o poema dadaísta. No segundo, Negroni, seguindo os passos de Baudelaire, analisa a cidade como topos privilegiado no mundo literário moderno. Em uma das passagens, comentando sobre o fascínio da cidade sobre o poeta, a escritora analisa:

Recorrer la ciudad en busca de cachivaches (o imágenes) constituye, en esencia, una forma de curiosidad, pero es también una manera de inducir, a partir de huellas o indicios, una suerte de profecía retrospectiva, como la que formularía un detective especializado en lo insoluble (…) La ciudad que emerge en ellos se parece a algo que hemos visto, pero es también, sin duda, lo que nuestro deseo imaginó o creyó robar a lo vivido, como una memoria inspirada que se anticipa a aquello que perderá (…)  (2011, p. 148).   

A alusão ao escritor como detetive, que lê a cidade a partir dos indícios, das marcas de um crime, buscando reconstituí-lo no momento de sua desaparição, faz lembrar de Roger Caillois (1972) que, ao situar a promoção do ambiente urbano à qualidade de épico no século XIX, encontra a gênese desse processo na transformação do romance de aventuras em romance policial. A questão da relação íntima entre cultura e cidade moderna, pautada na inserção da cidade como topos da literatura a partir de Baudelaire, não aparece apenas no ensaio “Paris, mito moderno”, de Caillois, mas é também constantemente tematizada por Walter Benjamin, como no projeto das Passagens e no livro sobre o poeta das Flores do Mal[2]. Raúl Antelo, no texto “De cidade/city/cite a Babel”, com o título extraído do poema sugestivo de Augusto de Campos, ao esboçar a genealogia da cidade euro-atlântica, de Nietzsche a Derrida, observa que entre a cidade entendida como sede de virtude civilizatória, em Voltaire, e a cidade como território de vício e degradação em William Blake, aparece a cidade de Baudelaire situada para além do bem e do mal. Dele, derivará a ideia de uma cidade disseminada. Para Antelo, a configuração urbana da cidade disseminada “configura uma rede incessante de deslocamentos e usos, não só do próprio e do alheio, mas também do público e do privado, em que toda noção de origem surge como plenamente ilusória” (2010, p. 2). É nessa lógica disseminada que o pesquisador insere a Buenos Aires cubificada por Duchamp, artista que não intervém na cena urbana da cidade modernizada nem para o “registro” (memória), nem para a formalização (representação). Antelo ainda nos lembra que na estereoscopia Duchamp escolhe um limite, a “orla do rio-mar”, e torna-o um “limiar”:

Duchamp posiciona-se pois no cais e nele contempla o rio-mar. É o infinito. E aí capta uma cena de origem, virando as costas, precisamente, para o nascimento da Ninfa (uma alegoria do nascimento de Vênus, e da própria Renascença como pureza, ideia materializada na escultura de Lola Mora, recém instalada naquele passeio (2010, p.3).

Para Antelo, a linha de fuga da imagem celebratória da Ninfa, sentada à beira da concha, poderia ser ilustrada com os trabalhos de Macchi e Negroni, em Buenos Aires Tour. As relações fazem sentido. No texto de número 26, intitulado a “Bienvenidos a Buenos Aires Green”, sobre a fonte de Lola Mora, Negroni simula um guia turístico convidando o turista-leitor a mirar a Fonte Monumental das Nereidas, criada pela escultora Dolores Mora Veja, vulgo Lola Mora:

Usted está aquí. Ha penetrado a La Zona por el costado Sur. No se asuste. No se desanime. No se demore. (El arte busca hacer más extraño lo extraño.) A su izquierda, La Fuente Movediza de las Conchas Gigantes y los Jinetes del Apocalipsis. A su derecha, familias con viandas y autito propio, El fin del verano y el comienzo de Otro País (2006, p. 42).

Negroni, assim como Duchamp, vira as costas para a Ninfa, dessacralizando a monumentalidade da Fonte ao associá-la a fatos corriqueiros. Na Cidade-Musa, estão contidas não apenas as esculturas mitológicas da fonte, mas também os cachorros que nela caminham, “traições passivas e ativas”, um “abismo de simulacros”, “baratas cosmopolitas”, o “trino de pássaros”. Todavia, não estamos diante do mero registro. A cidade não se entrega aos caprichos do clic fotográfico de um turista aprendiz. Também não estamos diante da mera representação, já que é impossível nomeá-la. A cidade disseminada de Negroni está repleta de silêncios. Nesse jogo de esquecimento, ruínas e imagens, talvez seja possível nomear a cidade pelo que ela não é. É assim no fragmento sobre a esquina entre Zepita y Luna, que desemboca no início da Vila 21, famosa favela de Buenos Aires. Nela, Negroni não vê nenhuma igreja. Lá, não se escutam buzinas, não existem jogadores de tênis, nem senhores bem vestidos e com cabelos cortados. Não existem cortejos fúnebres, nem liquidações de inverno. Não há lojas de flores, nem repartições públicas, nem organizações não governamentais. O que existe é a nuvem, um vazio, uma nostalgia impalpável pelo que não foi, bem como a bandeira argentina ondeando orgulhosa sobre a vila. A questão do vazio, que é recorrente em outros textos do mesmo livro, aparece, por exemplo, na esquina entre Ayacucho y Peña, onde Negroni percebe que a arquitetura está ausente, não há ateliers de artistas, nem construções impalpáveis. A esquina está desprovida de mar, de árvores, de céu. É apenas o ponto onde nasce Peña, ou morre. O que aparece como enigma, é solucionado pela escritora-detetive na esquina entre Bartolomé Mitre y Rodríguez Peña: “Las palabras no existen para nombrar sino para crear el vacío (...)” (2006, p. 45). Não interessam à escritora os feitos e os atos. Sua potência nasce da impotência. A escritura carece de inclinação para as coisas.  Seu jogo é oscilante, como tudo o que perdeu a possibilidade da história, como sugere a esquina entre Medrano y Del Signo. Sua dimensão, a la Duchamp é a da pós-história. O que restam são as ruínas, como aquelas da ditadura, sugeridas na esquina entre Chile y Perú, onde encontramos a plazoleta Rodolfo Walsh, dividida entre a tragédia política e o passeio do homem com seus cães. Nela, escreve Negroni:

Hay un hombre con dos pequineses, un banco, una palangana de plástico. Pasan taxis vacíos, un colectivo de la línea 86, un Falcon verde, con patente. Atrás, desde algún lado, una musiquita del litoral. Pobrísima La plazoleta de piedra. Compañeros Fusilados, Jorge A. Ulla, Ana Maria Vilarreal, Mario Delfino, Presentes. Disculpe, dice El hombre de los pequineses, ?qué fecha es hoy? No contesto (2006, p. 25).
      
O acaso das linhas de fuga que leva Negroni a escrever Buenos Aires Tour não está na fissura, produzida de forma proposital, mas instaura-se a partir dela. O azar reside na derivação de seu desastre, ao contrário de O Grande Vidro ou A Noiva despida por seus Celibatários, de Duchamp, que teve por acidente, parte de seu vidro rachado. Apesar das diferenças, tanto em Duchamp quanto em Macchi, o acaso produz o espetáculo. No primeiro, a incorporação do acaso transforma a obra. No segundo, cuja fissura como vimos é proposital, o acaso é a sua origem. É também proposital o furo impresso no vidro que, por meio de um tiro, outro argentino, Oscar Bony, imprime em algumas fotografias que fez de si mesmo. Ao imprimir por contato o furo no vidro que cobre a fotografia, Bony desmonta a lógica de reprodutibilidade técnica que pauta a fotografia, instaurando, assim, um descompasso, um signo outro, uma diferença, que lhe confere singularidade.

O ensaio completo que produzi sobre o livro pode ser lido no link abaixo:

http://linguagem.unisul.br/paginas/ensino/pos/linguagem/eventos/seminario/anais%201/Caio_Moreira.pdf


[1] Segundo informações do site da Galeria de Arte Contemporânea Distrito 4, Buenos Aires Tour é uma exposição de arte conceitual, com fotos, objetos e vídeos, bem como textos de María Negroni, e efeitos sonoros de Edgardo Rudnitsky:

Buenos Aires Tour consists of 8 itineraries which reproduce the network of lines drawn when a piece of glass is broken over the map of Buenos Aires. 46 points of interest have been chosen at random above these lines which match points where streets interconnect. Buenos Aires Tour presents photographic material as well as objects texts and sounds for each of these points (2004, s/p).

O site traz ainda, além da apresentação da exposição e biografia dos artistas idealizadores, várias fotos da instalação.
[2] As Passagens poderiam ser lidas, no bom sentido, como “mapa desorganizado” ou “disseminado” da vida moderna. As temporalidades implicadas em sua rede anacrônica, em sua mesa de montagem, parecem produzir um modelo alternativo de pensar a história e a vida da cidade. Nesse sentido, parece estar muito próximo do Atlas Mnemosyne, de Aby Warburg, em que a memória é pensada como um puzzle anacrônico. O acaso que muitas vezes está presente em seu modus operandi produz no conjunto das imagens montadas e remontadas novos sentidos e outras constelações possíveis.

segunda-feira, 11 de abril de 2016

"Eu existo (resisto)!": apontamentos sobre uma fotografia de Pierre Verger




Passeando por um livro de fotos do Pierre Verger, encontro uma imagem que se me afigura de uma beleza profunda ao passo que me suscita a impressão de dèjá vu. Não à toa. A legenda da foto informa ter ela sido tirada no Convento de São Francisco, em Salvador, entre 1946 e 1948. Procuro entre as fotografias que tirei na capital da Bahia, em 2014, e encontro a reprodução que fiz do mesmo afresco. Feliz coincidência! O conjunto que chamou minha atenção, imagino, tocou fundo em Pierre Verger, caso contrário não existiria a sua foto para atestar o fato. Conheço muito pouco da história do Convento e Igreja de São Francisco - chamada também de Igreja de Ouro -, mas dá para perceber os hibridismos culturais que tanto marcaram a arte latino-americana. Impressionam os elementos barrocos de uma Arte da Contraconquista (como Lezama Lima tratou o barroco latino-americano, numa alusão à forma como o movimento foi designado na Europa: arte da Contra-Reforma), já que, no interior da edificação, máscaras africanas foram esculpidas - discretamente e quase escondidas entre os pilares -, bem como bustos de mulheres nuas (possivelmente ciganas árabes). A foto de Verger e a minha não mostram, mas elas estão lá, as índias nuas, esculpidas não muito longe do altar (A igreja pudica teria mandado cobrir sua nudez em séculos posteriores). Teriam sido escravos aqueles que esculpiram ou ajudaram a talhar seus altares? Teriam deixado suas marcas ali, elementos de suas culturas, como símbolos eternos de resistência? A suntuosidade da estética europeia contrasta com os elementos das culturas africana e oriental, apontando para a antropofagia cultural que, segundo Lezama Lima, teria gerado o nosso barroco. O homem barroco latino-americano, mestiço por excelência (como foi Aleijadinho na vida e na arte), teria provado ao colonizador ser tão ou mais capaz que ele para produzir arte. Conhecendo o código europeu e, ao mesmo tempo, inserindo elementos de sua cultura em sua obra, teria assim sussurrado a futuras gerações: "Eu existo (resisto)"!.

Disseminação


 Centro não há. Disseminação. É como quando você fala. A palavra cai no ouvido desse, daquele. Você não sabe em que planta a semente vai dar. Mas que ela pega, isso te garanto. A palavra produz outras palavras que caem em outros ouvidos, lavouras e lavouras de palavras, um universo. As lavouras são de quem? Falo das palavras. De todos e de ninguém. (SCHÜLER, 2005, p. 131).

 As palavras acima, com sabor de Guimarães Rosa, são de Donaldo Schüler, no romance Império Caboclo. A partir dela, podemos traçar um breve esboço do conceito de disseminação, para Derrida, tão fecundo. Voltemos no tempo. Lembremos da conversa transcrita por Platão, em que Sócrates discute com Fedro, condenando o uso da escrita. Para o filósofo a escrita tem um inconveniente que se assemelha à pintura. Diz Sócrates:

Também as figuras pintadas têm a atitude de pessoas vivas, mas se alguém as interrogar conservar-se-ão gravemente caladas (...). Uma vez escrito, um discurso sai a vagar por toda parte, mas não só entre os conhecedores mas também entre os que não o entendem, e nunca se pode dizer para quem serve e para quem não serve.

 Sócrates trata o discurso escrito como um simulacro do discurso vivo e animado. Isso porque o texto escrito estaria distante das verdades da alma, porque é o simulacro de uma voz que por sua vez já é um simulacro dos estados da alma. É justamente essa condenação que vai levar Derrida a interrogar o pensamento platônico sobre a escrita que sobrevive na história ocidental, inclusive nos postulados linguísticos de Ferdinand Saussure que, assim como Sócrates, rebaixa a escrita. 


O filósofo da desconstrução chegou a escrever um estudo, A Farmácia de Platão, em que problematiza a escrita tratada apenas como veneno ou remédio, como aparece no mito egípcio do surgimento da escrita, figurado no diálogo entre Thoth e Tamuz, um mito que por sinal é recuperado por Platão, em Fedro. O que Derrida estava querendo dizer é que a ausência de um centro amplia indefinidamente o jogo da escritura. A questão mereceria várias páginas, mas o que nos interessa aqui é observar que tanto a escrita quanto a fala brotam da différance. A própria fala passa a ser entendida como uma forma de escrita, e ambas são destituídas de um centro, de um significado transcendental. 
Em vários momentos de sua trajetória intelectual, principalmente nos anos 70, Roland Barthes chamou a atenção para o fato de que um texto não deve ser tratado como uma estrutura de significados, mas uma galáxia de significantes. O contato com a obra de Bakhtin, via Julia Kristeva, e com os escritos de Derrida, foram responsáveis pela transformação não só das reflexões de Barthes, mas da sua própria escrita. A idéia de disseminação passa a ser constante em seus textos, a partir da publicação de S/Z. A mudança das noções de texto operam também uma radical transformação das concepções de leitura. Trata-se de entender a interpretação não mais como a busca de um significado original, de uma origem, de uma unidade de sentido, tal como postulava a hermenêutica, mas de jogar com as oposições e contradições de um texto, o que Derrida vinha pensando já no início dos anos 60, com a prática do desconstrucionismo. 


Em 1971, no ensaio “Da obra ao texto”, Barthes afirma que o Texto é plural. Com isso, não está querendo dizer apenas que um texto tem vários sentidos, mas que realiza o próprio plural do sentido. Se o texto é tratado como passagem, como travessia, não depende então de uma interpretação, mas de uma disseminação. Nota-se o quão importante foram as reflexões de Derrida para Barthes. Em uma das passagens de "Posições", o filósofo da desconstrução discorre sobre a disseminação. Vale a pena citar na íntegra suas observações:

Em última instância, Disseminação não quer nada dizer, não podendo ser reunida em uma definição. Não tentarei fazê-lo aqui e prefiro remeter ao trabalho dos textos. Se não se pode resumir a disseminação, a différance seminal, em seu teor conceitual, é porque a força e a forma de sua ação perturbadora fazem explodir o horizonte semântico. A atenção dada à polissemia ou ao politematismo constitui, possivelmente, um progresso relativamente à linearidade de uma escrita ou de uma leitura monossêmica, ansiosa por se amarrar ao sentido tutelador, ao significado principal do texto, até mesmo ao seu referente primordial. Entretanto, a polissemia enquanto tal organiza-se no horizonte implícito de uma retomada unitária do sentido, até mesmo de uma dialética - Richard fala de uma dialética em sua leitura temática de Mallarmé; Ricoeur, sua teoria Essai sur Freud (e a hermenêutica de Ricoeur, sua teoria da polissemia, tem muita afinidade com a crítica temática, o que é reconhecido por Richard), de uma dialética teleológica e totalizante que deve permitir a um momento dado, por mais distanciado que ele seja, de voltar a reunir a totalidade de um texto na verdade de seu sentido, constituindo o texto em expressão, em ilustração, e anulando o deslocamento aberto e produtivo da cadeia textual. A disseminação, ao contrário, por produzir um número não-finito de efeitos semânticos, não se deixa reconduzir a um presente de origem simples ("A disseminação", "A dupla sessão", "A mitologia branca" são re-colocações em-cena - re-colocações práticas - de todas as falsas partidas, de todos os começos, incipits, títulos, exergos, pretextos fictícios, etc.: decapitações) nem a uma presença escatológica. Ela marca uma multiplicidade irredutiva e gerativa. O suplemento e a turbulência de uma certa falta fraturam o limite do texto, interditam sua formalização exaustiva e clausurante ou, ao menos, a taxonomia saturante de seus temas, de seu significado, de seu querer-dizer.


Um significante não remete a um significado transcendental, porque estamos no universo de palavras. Palavras que nos levam a outras palavras, ad infinitum. A palavra é tratada como lavoura, semente. A própria etimologia da palavra disseminação sugere a ideia de fecundação, doação de vida por meio do sêmen.    

quinta-feira, 7 de abril de 2016

LUNETA VERSUS CACHIMBO: apontamentos sobre o Catatau, de Paulo Leminski



 Em 2006, defendi uma Dissertação de Mestrado sobre o Catatau, romance-ideia de Paulo Leminski. Depois de alguns anos, relendo o livro, comecei a pensar sobre algumas questões que não foram discutidas por mim na época e que têm, nos últimos meses, chamado a minha atenção. É o caso da lente da luneta, empunhada por Cartesius, pensada aqui como prótese do olhar. Não que a questão tenha passado despercebida na época, em minhas pesquisas, mas apenas agora começo a me ater nela. O conceito de "prótese do olhar", sem dúvida, me chega por meio de um ensaio de Susan Buch-Morss 

ENSAIO



LUNETA VERSUS CACHIMBO


Em 1989, o poeta curitibano Paulo Leminski preparou o texto intitulado “Quinze pontos nos iis”, que foi publicado pela primeira vez na segunda edição do seu romance-idéia Catatau. No texto, Leminski procura indicar alguns caminhos que poderiam orientar o leitor no processo de leitura. Poderíamos imaginar, a título de miragem, que os quinze pontos comentados pelo escritor poderiam ser nada mais do que uma armadilha criada a fim de confundir o leitor, já que Catatau, feito a visão de um Aleph borgeano, parece não se esgotar na leitura apresentada no excerto. O suplemento inserido por Leminski poderia sugerir a ideia do livro como um elemento orgânico, fadado a se transformar ininterruptamente ao longo dos anos, seja pelo poeta, que ao inserir outros comentários em edições posteriores desenvolveria assim uma espécie de work-in-progress, seja pelo próprio leitor, capaz de potencializar outros olhares, outras leituras. Chama a atenção o ponto nº 13, que comenta justamente sobre a questão do olhar:

"Catatau é um texto colocado sob o signo da Ótica, Descartes sendo um dos pais da Ótica como disciplina científica, parte da Física. Está cheio de anomalias óticas: refrações, difrações, desvios, que incidem sobre as palavras, as sentenças, a linguagem e a lógica".


A luneta poderia ser lida como um símbolo do programa científico e da razão européia; o cachimbo, como um símbolo da confusão tropical, que não se encaixava no programa racionalista de Descartes. Mas a questão parece não se esgotar nessas conclusões. 


Luneta Astronômica, de Galileu

O próprio Descartes, numa das passagens do Discurso do método, um de seus textos mais conhecidos, observou que a intuição que o levou a formular a hipótese do cogito, seu princípio da dúvida, nasceu justamente de uma alucinação. Ironicamente, um dos pressupostos mais conhecidos da filosofia moderna – cogito, ergo sum – surgiria justamente de um desvario. O efeito da droga poderia assim ser problematizado. Baudelaire, em Paraísos Artificiais, descreve os efeitos de uma droga, o haxixe. A cena poderia servir para ilustrar a experiência de Cartésio: 

"As alucinações começam. Os objetos exteriores tomam aparências monstruosas. Revelam-se a você sob formas desconhecidas até então. Em seguida, eles se deformam, se transformam e enfim entram em seu ser, ou melhor, você entra neles. Sucedem-se os equívocos mais extraordinários, as transposições de idéias mais inexplicáveis. Os sons têm uma cor, as cores têm uma música. As notas musicais são números e você resolve com uma rapidez espantosa prodigiosos cálculos de aritmética à medida que a música se desenrola em seus ouvidos".


Cena do filme: O homem com uma câmera na mão, de Diziga Vertov

Não seria fortuito observar que Barthes, no curso O Neutro, lembra da descrição dos efeitos do haxixe feita por Baudelaire: “A grande idéia de Baudelaire sobre o H é que ele não altera o indivíduo (a consciência), não o faz ser outro, não o altera (contrariando a dóxa), mas que o amplia, o exagera, o desenvolve em excesso (...)”. Se a droga amplia o indivíduo, impossível no Catatau, dissociar cachimbo e luneta. Não poderíamos esquecer o efeito benéfico do phármakon. Essa hipótese colocaria em questão qualquer tipo de “corte” que concebesse o phármakon apenas como veneno. O que, como mostrou Derrida, aboliria o jogo da escritura.Falo isso pensando em mostrar que se o cachimbo é a causa da confusão, a luneta também não deixa de ser, até porque nos momentos iniciais da narrativa, quando Cartésio empunha o instrumento, já percebemos que a lógica tradicional é posta em xeque:

"Ponho mais lentes na luneta, tiro algumas: regulo, aumento a mancha, diminuo, reduzo a mancha, melhoro a marca. O olho cresce lentes sobre coisas, o mundo despreparado para essa aparição do olho, olho passeia não cresce mais luz, onde faz o deserto chamam paz (...). Imprimindo prosseguimento à análise, um olhar sem pensamento dentro, olhos vidrados, pupilas dilatadas, afunda o vidro, mergulha nessa água, pedra cercada de rodas, o mundo inchando, o olho cresce".


Descartes

Aqui, o pensamento é puro vidro de luneta. O próprio olhar é só palavra: “Trago o mundo mais para perto ou o mando desaparecer além do meu pensamento”.A luneta, erroneamente apresentada como símbolo da razão, poderia ser pensada - e essa é a hipótese que lanço nesta leitura – como uma espécie de prótese do olhar, tal como Susan Buch-Morss, referindo-se ao cinema, analisa no texto “A tela do cinema como prótese de percepção: uma explicação histórica”.

DEPOIS DAQUELE FILME

 Leminski, enquanto escrevia o Catatau, preparava também a sua oficina de criação. Registrado em rabiscos pertencentes hoje ao acervo da Fundação Cultural de Curitiba, esse material ainda não foi devidamente analisado por pesquisadores. Interessa-me aqui comentar apenas uma das anotações. Numa folha solta, datilografada e aparentemente estranha ao conjunto dos demais textos, o escritor curitibano apresenta uma série de nomes de livros e filmes. São eles: Esperando Godot, de Samuel Beckett; Salambô, de Flaubert; Gargantua, de Rabelais; Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis; Robinson Crusoe, de Daniel Defoe; Viagem ao Redor do meu Quarto, de Xavier de Maistre; Galáxias, de Haroldo de Campos; Finnegans Wake, de James Joyce; Assim Falava Zaratustra, de Nietzsche; Rear Window, de Alfred Hitchicock; e Blow-up, de Michelangelo Antonioni. A página é desprovida de comentários. Por um lado, os títulos anotados não possuem relação alguma como o texto de Leminski, por outro, poderíamos imaginar uma rede de associações capazes de aproximar universos tão distantes, praticando assim uma espécie de ficção do olhar.Se tratarmos aqui da lente como prótese de percepção, que se transforma no próprio livro, prótese de prótese, notaríamos imediatamente que a presença de Blow-up (1966), na oficina do Catatau, não é sem propósito. 


Cena de Blow up

Comecemos lembrando que o filme foi lançado no mesmo ano em que Leminski imaginou uma possível visita do filósofo René Descartes ao Brasil – que poderia ser lida como uma metáfora da transposição da lógica racionalista européia para o mundo “bárbaro” tropical. Poderíamos fantasiar imaginando o poeta curitibano saindo eufórico do cinema, lembrando de sua aula de história, das invasões holandesas entusiasmado agora com a “estória” do fotógrafo Tomas, de Antonioni. Blow-up é um filme bastante diferente da estética que Antonioni explorou no chamado movimento neo-realista italiano. Cumpre ressaltar que o seu cinema é tocado intensamente pelos acontecimentos da guerra e do pós-guerra, o que já serviria para demonstrar que seus filmes trariam a marca daquele dilaceramento do olhar, minuciosamente analisado por Martin Jay em Downcast eyes

Se os primeiros filmes de Michelangelo Antonioni, filiados à proposta do cinema verdade – como Roma, Cidade Aberta (1945) -, estavam preocupados com os problemas sociais, sejam eles rurais ou urbanos, presentes na Europa do pós-guerra, os filmes posteriores colocariam em xeque a própria capacidade do cinema em contar uma história. Dessa maneira, as questões políticas seriam apresentadas no nível na linguagem e não mais numa tentativa desenfreada de “copiar” o real. É como se o cineasta percebesse que a tela do cinema não seria mais uma janela para o mundo, mas sim uma prótese de percepção que “não só duplica a percepção cognitiva humana, mas transforma a sua natureza”. Por meio desse olhar, uma câmera não poderia ser vista como um instrumento que capta e reproduz uma realidade, mas como um instrumento que transforma a própria realidade. 

Argumento semelhante pode ser encontrado num dos textos que compõe Sobre a Fotografia, de Susan Sontag, que não se refere necessariamente sobre o cinema, mas que permitiria uma aproximação, já em ambos a existência da câmera é fundamental: “Embora em certo sentido a câmera de fato capture a realidade, e não apenas a interprete, as fotos são uma interpretação do mundo tanto quanto as pinturas e os desenhos”. Isso vale para o cinema.Convém sintetizar algumas cenas do filme para que possamos estabelecer um laço e um desenlaço entre a narrativa experimental de Leminski e o filme de Antonioni. 



Blow-up é um filme que chama de imediato a atenção para a questão dos limites entre o real e a representação. Thomas é um fotógrafo que, cansado do cotidiano estéril de horrível fixidez – lembrando das palavras do poeta Waly Salomão – decide sair para passear por Londres. O personagem, sempre acompanhado de sua câmera fotográfica, depois de visitar uma loja de antiguidades, decide entrar em um parque situado nos arredores da cidade. Lá, encontra um homem e uma mulher. Começa a fotografá-los. A mulher, que percebe o voyeur, não aceita o fato de estar sendo fotografada e tenta convencer Thomas a entregar os negativos. Ele recusa, mas promete devolvê-los em seu estúdio. Passado algum tempo, revela as fotografias e percebe num dos cantos da imagem uma mão que, supostamente, segura uma arma. Nota também que atrás de uma árvore aparece um corpo deitado. Thomas amplia várias vezes a imagem e cada vez acredita mais na sua hipótese. A câmera registrou um assassinato. Será? 



À noite, ele se dirige até o parque e encontra o cadáver. No dia seguinte, tenta convencer os amigos do viu, ou imaginou ter visto. Pensa em avisar a polícia, volta até a cena do crime e não encontra mais o homem morto.Percebe-se que o próprio fotógrafo chega a desconfiar das imagens, ou mesmo de sua percepção das coisas – imagens de imagens. Suas hipóteses e o próprio encontro com o cadáver talvez não fossem nada mais do que uma alucinação provocada pela imagem revelada na foto. A cena final é bastante esclarecedora (ou não). 

O fotógrafo sai do parque e encontra um grupo de mímicos que simulam uma partida de tênis. A bola é imaginária, a raquete é imaginária. Ele se distrai assistindo ao suposto jogo até o momento em que a “bola” sai da quadra e uma jogadora solicita que Thomas apanhe o objeto. Ele hesita, mas cede. Recolhe a bola e a devolve ao grupo. A cena final poderia ser lida da seguinte maneira: Thomas aceita viver o mundo como uma grande rede de imagens. Curiosamente, no mesmo ano, em Havana, Lezama Lima, o poeta da imago, publicava o seu livro Paradiso



Não nos surpreende o fato de que Blow-up tenha sido inspirado no conto de Julio Cortázar “Las babas del diablo”, presente no livro Las armas secretas. O conto ora é narrado em primeira pessoa (Roberto Michel como narrador), ora em terceira (narrador indefinido). Os acontecimentos se passam em Paris. O narrador protela ao máximo o desencadeamento dos fatos ocorridos. As primeiras páginas refletem longamente sobra a dificuldade de narrar:

"Ya sé que lo más difícil va a ser encontrar la manera de contarlo, y no tengo miedo de repetirme. Va a ser difícil porque nadie sabe bien quién es el que verdaderamente  está contando, si soy yo o eso que ha ocurrido, o lo que estoy viendo (nubes, y a veces una paloma) o si sencillamente cuento una verdad que es solamente mi verdad, y entonces no es la verdad salvo para mi estómago, para estas ganas de salir corriendo y acabar de alguna manera con esto, sea lo que fuere".

No conto, como a questão do olhar é significativa para a prática do modo de narrar, a fotografia, como uma espécie de personagem, cumpre o papel de apresentar a realidade, no entanto é a própria fotografia que apresenta os limites de tal realidade. Depois de passear pela cidade, Michel encontrou uma mulher e um menino. Achou a cena convidativa para uma boa fotografia, mas percebeu que se fotografasse estaria interferindo naquela realidade. Sabia que tinha o poder de transformá-la, por isso hesitou em fotografar:

"Michel esperaba, sentado en el pretil, aprontando casi sin darse cuenta la cámera para sacar una foto pitoresca en un rincón de la isla con una pareja nada común hablando e mirándose (...) Levanté la cámera, fingí estudiar un enfoque que no los incluía, y me quedé al acecho, seguro de que atraparía por fin el gesto revelador, la expresión que todo lo resume, la vida que el movimiento acompasa pero que una imagen rígida destruye el seccionar el tiempo (...)."

Depois de fotografar, Michel revela e amplia as imagens. Em seu estúdio, analisa-as com precisão e percebe determinados elementos que não tinha notado durante o momento em que fotografou. Pela foto, começou a reconstituir a cena e agora imaginava que o menino provavelmente seria vítima de um crime. A mulher poderia não ser a sua mãe.

A experiência de Michel só se concretiza completamente na imagem. Ele só consegue ver o conjunto de todos os fatos quando está em seu estúdio e “demora o olhar” na foto. É na foto que percebe um possível crime. E é somente pela foto que o impede quando grita em seu estúdio até que o menino fuja: “Lo importante, lo verdaderamente importante era haber ayudado al chico a escapar a tiempo”. Assim como Thomas, Michel é incapaz de sair da caverna de Platão, o que não é de todo ruim. O personagem entra no jogo das sombras e aceita a realidade como uma grande ficção, ou a única condição para a verdade. A lente não seria mais que um instrumento de construção da própria realidade. Foi a foto que levou Thomas a devolver a bola, poderíamos pensar. Aqui, o filme seria apenas uma prótese de outra prótese, a foto. 



Quando Susan Buch-Morss fala do cinema como uma prótese de percepção, está se referindo ao “ato puro de ver” estudado por Husserl. O cinema protético, levando em conta o jogo inerente do simulacro, colocaria o elemento corpóreo em suspensão.Susan Buch-Morss parte de algumas palestras apresentadas por Edmund Husserl, em 1907, em Götting sobre “A Idéia da Fenomenologia”. O objetivo principal das palestras era evidenciar um método de cognição que, “enquanto mantivesse a análise 'imanente' aos conteúdos da consciência, ainda podia chegar a um conhecimento 'absoluto' e 'universal'”.

A proposta básica de Husserl, que por sua vez se tornaria uma das propostas da Fenomenologia ao longo do século XX, era fazer conhecer o pensamento em sua forma pura, essencial no mundo da experiência. A noção de “experiência”, um dos conceitos fundamentais da Fenomenologia, foi comentada por Merleau-Ponty, em A Fenomenologia da Percepção. O filósofo entende a fenomenologia como uma filosofia que repõe as essências na existência, não acreditando que se possa compreender o homem e o mundo de outra maneira senão a partir de sua “facticidade”. Impossível estocar o conhecimento, impossível a própria possibilidade de conhecimento antes da experiência. Talvez por isso Susan Buch-Morss tenha sugerido que para termos uma visão precisa do objeto puro a que se refere Husserl melhor seria abandonar o texto e ir ao cinema. A partir da experiência do cinema entenderíamos o que Husserl queria dizer com o pensamento-absoluto.
Buch-Morss encontra no cinema as “reduções fenomenológicas” de Husserl. Tais “reduções” colocam entre parêntesis os objetos do ato mental e o sujeito que os pensa. Tanto a proposta de Husserl, quanto a de Susan Buch-Morss, pretende examinar esses objetos. Com isso, a autora do texto não está querendo dizer que o cinema é algo imanente e que questões sociais, históricas ou culturais não devem ser levadas em conta num processo de análise. O que ela pretende mostrar é que a imagem do cinema é o traço gravado de uma ausência. Logo, não seria mais relevante perguntar se as imagens representadas no cinema seriam reais ou não:

"O que conta é o simulacro, o objeto não corpóreo por detrás. Na cognição protética do cinema, a diferença entre documentário e ficção, portanto, é apagada. Claro que ainda “sabemos” que são diferentes. Mas habitam a superfície da tela como equivalentes cognitivos. Ambos o acontecimento real e o encenado estão ausentes".

O texto ainda nos apresenta um paradoxo. Por um lado, a imagem do cinema é construída pelo diretor, pelo homem que opera a câmera, pelo editor, o que faz com que seja possível uma consciência intencional; por outro, os “pedaços” do filme podem ser percebidos como algo “dado”, o que faz com que a verdade não seja intencional. Nesse contexto, esse fato torna possível uma espécie de violência. Uma violência que não diz respeito apenas à montagem que corta a realidade, mas à violência da “própria percepção protética”.

Susan Buch-Morss fundamenta suas questões filosóficas apresentando exemplos do cinema soviético e americano. Não caberia aqui estender a discussão, já que se trata de pensar como o conceito da prótese do olhar pode potencializar uma leitura do romance-idéia Catatau. Poderíamos concluir, com base no argumento da autora, que em alguns filmes soviéticos do início do século XX, por exemplo, a extensão do olhar por meio da prótese foi responsável por fazer a “massa” perceber não apenas as cenas, os personagens, a sua história, mas principalmente ver “(...) a idéia de unidade dos povos revolucionários, a soberania coletiva das massas, a idéia de solidariedade internacional, a própria idéia de revolução”. Lembremos que tratamos de uma prótese do olhar, portanto o que está em questão são os sentidos.

As reduções fenomenológicas de Husserl, que Buch-Morss encontrou nas cenas de cinema, poderiam, ao meu ver, serem encontradas também no Catatau.Lembremos que o livro foi confeccionado a partir de pedaços de papel que o escritor, posteriormente, organizava no corpus textual. Alguns desses fragmentos podem ser encontrados na oficina do Catatau, demonstrando assim que o próprio título do texto admite a potencialização de um sentido de valorização do fragmento: Catatau – Um calhamaço de fragmentos. Muitos deles parecem usar uma lógica semelhante à do haicai.



A DEMORA DO OLHAR QUE VEMOS NO QUE NOS OLHA

 Em janeiro de 1980, alguns meses antes de sua morte, Roland Barthes escreveu o texto “Caro Antonioni”, que seria publicado em maio do mesmo ano nos Cahiers du Cinema. Barthes, ao comentar as três forças que constituem o artista (vigilância – sabedoria – fragilidade), presta uma homenagem ao cineasta de Blow-up. Gostaria aqui de comentar apenas uma das virtudes abordadas, aquela que diz respeito à questão do olhar como fator de fragilidade. Essa fragilidade, que não deixa de ser uma virtude, está ligada à questão do tempo. O artista, segundo Barthes, nunca sabe se a obra que propõe é produzida pela mudança do mundo ou pela mudança de sua objetividade. Para Barthes, Antonioni tinha a consciência dessa relatividade do tempo. Outro motivo de fragilidade seria a firmeza e a insistência de seu olhar:
 "O poder, seja qual for, por ser violência, nunca olha; se olhasse um minuto a mais (um minuto demais), perderia sua essência de poder. O artista, porém, pára e olha demoradamente (...). Isso é perigoso, pois olhar por mais tempo do que o solicitado (insisto nesse suplemento de intensidade) desarranja todas as ordens estabelecidas, sejam elas quais forem, uma vez que, normalmente, o próprio tempo do olhar é controlado pela sociedade".

É justamente essa capacidade de “demora do olhar”, o mesmo gesto praticado pelos fotógrafos Thomas e Michel, e também por Cartésio, que faz do texto algo monstruoso e provocador. Talvez seja essa mesma demora responsável por fazer com que aquilo que vemos também nos olhe, apontando para além de si mesmo, numa espécie de cisão do olhar. Didi-Huberman lembra que o ato de ver não é o ato de uma máquina de perceber o real enquanto composto de evidências tautológicas: “Dar a ver é sempre inquietar o ver, em seu ato, em seu sujeito”. 

O que causa tamanha inquietação não seria pautado necessariamente nem pela falta de sentido, nem pelo seu excesso, mas pelo limiar entre aquilo que vemos e aquilo que nos olha. O que faz com que Didi-Huberman recuse duas posturas que poderíamos chamar de modalidades do olhar: uma delas é a tautologia, em que aquilo que vemos é somente aquilo que vemos; a segunda é a crença, em que o sentido estaria guardado, escondido, sempre em um outro lugar: “Estamos de fato entre um diante e um dentro. E essa desconfortável postura define toda a nossa experiência, quando se abre em nós o que nos olha no que vemos”. Na esteira de Walter Benjamin, Didi-Huberman credita à imagem dialética a superação tanto da crença quanto da tautologia.

Tanto a luneta de Cartésio quanto a câmera fotográfica de Tomas poderiam revelar uma nova realidade como aquela natureza descrita por Baudelaire no poema “Correspondências”, que parece personificar exemplarmente a imagem dialética de que nos fala Benjamin:

La nature est un temple où de vivants piliers 

laissent parfois de confuses paroles

L`homme y passe à travers des forêts de symboles

qui l `observent avec des regards familiers

Talvez a noção da prótese nos ajude a pensar na noção de limiar, trabalhada por Didi-Huberman, ajudando-nos a superar as duas perspectivas do olhar: a modalidade tautológica e a modalidade da crença. Entre o excesso e a falta, a prótese-luneta, em Catatau, apontaria para um texto que não seria uma mera algaravia de palavras, sem sentido algum. Se compactuássemos dessa ideia, diríamos: o que vemos é só o que vemos, uma bagunça, nada mais. 

A tautologia estaria formada. Também não poderíamos concordar com a afirmação de que a verdade estaria escondida e caberia ao leitor decifrá-la. Essa colocação, fundamentada numa pretensa hermenêutica, defenderia que aquilo que vemos nunca é aquilo que vemos.
A luneta de Cartésio, afim das concepções de Susan Buch-Morss sobre a prótese, não estaria nem ampliando nem reduzindo a percepção cognitiva, mas “transformando a sua natureza”, construindo assim uma nova realidade, que é a realidade do texto. Um texto-prótese.
Tida Carvalho aponta para a função invertida que a luneta ganha no contexto do livro, provocando uma visão semelhante à de uma sala de espelhos no qual se criam ilusões de grandeza e proporção:

 "O essencial na luneta não é que aproxime ou aumente os objetos contemplados, mas que transforme o próprio ato de ver, fazendo-o resultar de um ato de pesquisa e reconhecimento. No contexto de Catatau, o aproximar/distanciar é um indício de incongruência, pois o que é aproximado se distancia, perde-se como possibilidade infinita, para se tornar classificável".

No parque tropical, a função do olho não é a mesma da perspectiva cartesiana. Aqui, o olhar não vê com a intenção de aproveitar o que se vê para provar um determinado conhecimento. O olhar de Cartésio tenta reproduzir a realidade sensível. A linguagem cumpriria o papel da própria extensão do olho, a prótese. Os sentidos seriam a crítica da sua razão. Ver e escrever, nas imagens profanas do Catatau, são experiências que não poderiam ser dissociadas. 

Penso nessa questão porque ouço com freqüência, de pessoas que leram o Catatau, a afirmação de que o texto não tem significado. Mas que é o significado senão um deslizar constante que se ramifica feito uma cadeira rizomática? É pelo signo se constituir a partir de diferenças que Derrida observa a impossibilidade de um significado transcendental, pois cada elemento só existe a partir de sua relação com os outros. Esse significado, então, acaba indo sempre para um outro lugar, agora destituído de início, impossibilitado de ser fixado, multiplicando-se no jogo da significação. Essa reflexão é pertinente na leitura de um texto que não só traz a marca desse movimento, inerente a todo processo de intervenção, mas que afirma constantemente o seu devir: “O discípulo descobre o pulo, o centro sai por um furo nessa periferia de truques”. O elogio ao movimento de Heráclito destrona o SER de Parmênides: “(...) dias não dou nem dois pra deixar de onde e mudar de idéia antes que a próxima venha” (...).

O texto não poderia ser pensado sob esse ponto de vista nem como pura presença, nem como pura ausência. Isso acontece porque cada elemento só se constitui a partir de seu “rastro”, um jogo formal de diferenças que, para Derrida, gera um encadeamento, um texto que “não se produz a não ser na transformação de um outro texto”.  Em Catatau, a luneta e o cachimbo parecem formar a figura dessa différance, ao colocarem de lado a presença confortante de uma pura presença do sentido transcendental. O escrever do olhar de Cartésio é lido aqui como superação do fechamento do ver. É como se Cartésio só pudesse escrever vendo e ver escrevendo. O pensamento que não pode ser dissociado dos sentidos do “olhar” poderia assim dizer: “Olho, logo existo!”. Cartésio, tocado pelo olhar de Leminski, talvez preferisse dizer: “Que os sentidos sejam a crítica da minha razão”.