segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

Sobre dedicatórias alheias gravadas nos livros usados que compramos

 


Livros são objetos que contêm e possuem histórias. Para onde voam, em que lares, fazer sua morada depois de editados e vendidos por alguma livraria? Às vezes, passam de mão em mão e vão parar em algum sebo até que um aventureiro os colha de uma prateleira empoeirada, resgatando-os de um limbo silencioso qual museu. Quando adquiro um livro usado, fico a matutar – além de pensar sobre o afeto com que devo regá-lo na beleza da adoção -  quem já os leu, quantas mãos folhearam o volume, ou por que os antigos proprietários deixaram de desejá-lo. Cada livro de estória tem a sua história cujo conteúdo nos é vedado. A não ser que surja em meio às primeiras páginas alguma dedicatória a nos falar de um encontro, de um amor, de uma admiração, o que consigna a ideia de que quem dá um livro a alguém o faz com um gesto que transcende o mero presentear. Dar um livro é mais que um regalo, é ofertar uma história.

Como me encanta ler as dedicatórias de alguém que não conheço para alguém que desconheço nas páginas de um livro usado. Quando abro uma edição surrada de Gonçalo Tavares, o livro “O Senhor Swedenborg”, que me chegou pelo correio, descubro que um tal Hugo está indo dormir morrendo de saudade de um tal Grandão. Quem será este, cujo apelido é tão misterioso quanto engraçado? Ali, Hugo se declara para o amado, continuando: “Só vou te ver na quarta. Ainda bem que chega logo! Na quarta-feira, vou te dar este livro. Quando ler isso, olha para minha cara de felicidade! Você me faz feliz! Te adoro!”. Uma certeza: Hugo é uma pessoa romântica. Como Gonçalo Tavares é um grande escritor, o amado soube escolher.


Abro outro livro adquirido em um sebo. É um exemplar de “Comício de Tudo”, do poeta carioca Chacal. É uma daquelas edições que integrou nos anos oitenta a série Cantadas Literárias, da Editora Brasiliense. Descubro no interior da contracapa o texto que um Vitinho escreve para uma Claudinha: “Romário é carioca e você também. As tribos, os tipos, a energia do rio, passeia por essas páginas. Tape o nariz e mergulhe, o rio e as pessoas te amam! Um grande beijo nativo”. O texto tem o cheiro hippie, jovem e malandro dos poemas de Chacal. Vitinho parece ser uma pessoa legal, Claudinha também. Dois malucos belezas. O tom combina com a página manchada e com as pequenas avarias que olhadas de perto revelam a intervenção de alguma traça esperta. São palavras roídas pela matéria memória. Talvez a obra tenha sido uma companheira de viagem para Claudinha em uma Kombi e seus passeios pela serra do Rio de Janeiro, movidas ao som de Blitz e erva. 

 


Mas nem sempre tudo são flores. As dedicatórias, às vezes, vêm cheias de rancor, com a tristeza do abandono ou da incompreensão. Abro uma edição de “As Annamárias”, de Lindolf Bell, adquirida em uma loja de usados. Na primeira página, uma tal Tude escreve para Assis. É mais que uma dedicatória, é uma carta. Longa. Ocupa toda a página. Nela, Tude derrama poeticamente suas lamentações. Diz presentar Assis com a obra, porque sempre se deu a ele. Tude é também o próprio livro: “Sim, eu sou uma obra que ficou dez anos numa prateleira empoeirada e esquecida entre teus outros livros”. O tom é forte. Tude não está para brincadeira. É severa com Assis: “Não quisestes sequer abri-la, quanto mais se deter em valorizá-la”. À medida que escreve, a autora da missiva dá mais ênfase ao protesto: “Conhecer o verdadeiro, o autêntico, a pureza de atitudes e ações não faz o teu gênero”. O que deve ter sentido Assis ao ler a ácida dedicatória em um livro tão doce?: “Preferes ir apanhando o que te aparece mais fácil e mesquinho, fugaz e fútil”. Ao passo que escreve, Tude vai dando ao texto mais informação e personalidade: “Enfim, sei que as palavras são palavras, o que vale para mim são os valores mas como vou ser sempre a velha, a caipira de Blumenau, que fez Letras, por isso repito mais uma vez esta frase que não é minha: Ninguém melhor que o tempo para nos mostrar as razões”. 

Surpreso e apreensivo fico me perguntando o que Assis deve ter feito para Tude. Ou melhor, o que deixou de fazer por ela. Antes de terminar a carta, desculpando-se pelo desafeto e agressões, ela arremata: “Por tudo o que não quisestes fazer por mim e para mim, e por tudo o que me fizeste”. A data do texto é de 10 de agosto de 1982. Quase quarenta anos já se passaram. Onde estarão Assis e Tude? O que pensariam em reler a dedicatória tanto tempo depois desse vendaval? O que sentiriam ao saber que espio suas intimidades? O que fazer com a memória dos outros, com as ruínas desse (des)encontro doloroso? Sinto-me como que devassando a janela de uma casa alheia. Talvez a resposta para todas essas perguntas esteja guardada lá no próprio livro, no último poema, onde Bell escreve: 

“Amor mais perfeito
não é feito do fácil. 
Floresce por dentro 
embora se pretenda 
que cesse. 
E quando nas águas da pressa 
foge o amor mais depressa, 
é tempo de saber 
quanto dura 
o tempo de não saber”. 

Às vezes, os livros acabam longe de suas próprias histórias. Resta-nos perguntar: Quanto tempo dura essa distância? Quanto tempo dura esse não saber? Na vida, em que prateleira vão parar nossas lembranças?   

Caio Ricardo Bona Moreira

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