quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

A FARMÁCIA DE ENRIQUE VILA-MATAS

A utopia da literatura em Mal de Montano é um elogio à sobrevivência do literário

Em Mal de Montano, de Enrique Vila-Matas, o narrador, ao constatar que vive rodeado de citações de livros e autores, confessa ser um doente de literatura: “Asfixia-me cada vez mais a literatura. Nos meus cinqüenta anos, angustia-me pensar que meu último destino seja me tornar um dicionário de citações ambulante." Sofrer de literatura poderia ser inicialmente visto como um mal, um mal que paralisaria o próprio processo de criação. Aqui, o caso parece ser o oposto de Bartleby e Companhia. Não é o escritor que recusa a literatura, mas é o escritor impossibilitado de abandoná-la, por isso abandonado, doente de citações.

Mas engana-se quem pensa que o que impera em Vila-Matas é o lamento pela suposta morte da literatura, pelo esgotamento das narrativas. Pelo contrário. Como um bom leitor de Benjamin, que por sinal é citado no livro, o escritor sabe que a colagem de citações, fragmentos, ecos de outras obras, não é apenas um capricho de montagem, mas o princípio constitutivo da própria sobrevivência do literário. Se, como dizia Nietzsche, a vida já não reside na totalidade, num todo orgânico e completo, poderíamos concordar com o autor de Mal de Montano no fato de que uma vida pode ser muitas vidas, uma “pavorosa conjunção dos mais diversos destinos”. Inventar essas outras vidas, ou mesmo inventariar a partir dos passos de outros escritores, como Fernando Pessoa, é um procedimento que o escritor consegue com destreza e que o permite potencializar outras realidades: "Talvez a literatura seja isso: inventar outra vida que bem poderia ser a nossa, inventar um duplo. Ricardo Piglia diz que recordar com uma memória estranha é uma variante do duplo, mas é também uma metáfora perfeita da experiência literária. Termino de citar Piglia e constato que vivo rodeado de citações de livros e autores”.

Ao longo da narrativa, Vila-Matas vai desenhando um jogo que inverte o processo. O que antes era visto como um mal, uma doença, passa a ser visto como um bem, uma força, mesmo que a doença continue existindo: “Desejo livrar-me do mal de Montano, mas queiram os deuses e Kafka que não consiga”.

Em uma recente entrevista concedida a José Castello, para o jornal Rascunho, Vila-Matas, seguindo os passos do narrador de Mal de Montano, observou que “saber-se doente é mais inteligente que se considerar saudável”. Contra a concepção de que vivemos em um mundo de gente saudável (mundo ocidental), o escritor louva, talvez ironicamente, o surgimento da classe dos doentes, por que não dizer dos apaixonados por literatura (a paixão pode ser entendida como um tipo de doença, por que não?): “(...) é de se aplaudir que quando todo mundo, menos Kafka, tenha se tornado kafkiano, apareça no horizonte uma categoria de seres, os doentes, que buscam se distanciar da loucura oficial e ter uma doença própria, defender sua singularidade diante do estridente e vulgar kafkianismo geral”.
Poderíamos pensar que o Mal de Montano seduz o narrador justamente no momento em que ele percebe que manejar com destreza a memória literária (administrar a dose do phármakon), “jogar” com ela, potencializá-la a partir da montagem, é uma maneira muito interessante de sobreviver na literatura. Por isso os fatos, nesse livro, parecem ficar em segundo plano, já que o que é colocado em ênfase é a "busca" da obra e não a obra. Para consignar a posição, poderíamos lembrar de Maurice Blanchot, figura recorrente na obra de Vila-Mattas, desde Bartleby e Companhia, que diria no texto “O desaparecimento da literatura”: “O que atrai o escritor, o que impulsiona o artista não é diretamente a obra, é a sua busca, o movimento que conduz a ela, a aproximação que torna a obra possível: a arte, a literatura e o que essas duas palavras dissimulam”.

Talvez possamos agora entender um pouco melhor o “jogo” proposto por Vila-Mattas. Os vários livros que compõe o livro, os fragmentos que vão se sobrepondo ao longo da narrativa, e que são muitas vezes propositalmente “desconstruídos” nos outros livros que compõe o livro, são o sintoma de uma literatura que está interessada em refletir sobre a própria literatura, sem fazer mera metalinguagem. Sobre esse escritor, ainda com Blanchot, poderíamos dizer: “ (...) não deseja acabar quase nada, deixando em estado de fragmentos cem narrativas que tiveram a função de conduzi-lo a determinado ponto, e que ele deve abandonar para tentar ir além desse ponto”.

Carlito Azevedo, na apresentação do livro, publicado pela Cosacnaify, observa que Mal de Montano é “uma máquina de ironia que evita o demagógico e comemora e celebra o tempo inteiro a riqueza e a força da literatura, celebra e comemora sua liberdade frente à mesquinharia e tacanhez da vida tal como nos é oferecida em tempos de obediência e submissão”. Carlito ainda chama a atenção para a utopia afirmada por Vila-Matas, a utopia da literatura que nos oferece uma alternativa à tirania das linguagens da política, do trabalho e da família.

A utopia da literatura encarnada em Mal de Montano é um elogio à sobrevivência do literário. Quem não percebê-la, não passou das primeiras páginas, em que o phármakon é apresentado ainda como um veneno.

c.moreira

5 comentários:

Anônimo disse...
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SPA-PGET (Organização) disse...
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SPA-PGET (Organização) disse...
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SPA-PGET (Organização) disse...

Caio, com O mal de Montano o Vila-Matas colocou o dedo na minha ferida. Legal ler algo sobre ele por aqui.

Abraço.

Ops: A primeira tentativa de comentário foi excluída porque não tinha percebido que estava usando a conta da Elis.

Anônimo disse...

Exmos senhores,

Gostaríamos de informar que no mesmo dia da estreia de “Sentido Portátil”, pelas 18h30 Enrique Vila-Matas estará presente no CCB para “café Perec” - um encontro com escritor.
Para mais informações poderá aceder ao nosso site:

www.jumpcut.pt