sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

IVONNICH FURLANI, O CANTO DO POETA ESTRANGEIRO

Octavio Paz, poeta e crítico mexicano, numa das passagens do livro O arco e a lira, observa que a poesia é um alimento que a burguesia - como classe – tem sido incapaz de digerir. Poderíamos acrescentar mais um detalhe à sua observação: a burguesia, além de ser incapaz de digerir a poesia, tem sido no mundo capitalista a principal responsável por seu aniquilamento. Podemos perguntar para os habitantes de nossas cidades quem são os políticos proeminentes, os principais empresários, os padres, as famílias tradicionais. É provável que todos ou quase todos saibam responder. Se perguntarmos quem são nossos poetas, talvez a resposta seja mais difícil de ser encontrada. Não que não haja poetas. Mas quem ainda quer ouvi-los?

No entanto, prefiro que este espaço não seja de lamento. Quem disse que os poetas estão ligando para isso? É justamente por possuir uma fala desvinculada de todas as utilidades imediatas, de todo preço, vontade de poder, ou necessidade de bens de consumo que o poeta parece ser uma das vozes mais interessantes que circulam numa cidade. Lembro de uma entrevista em que o poeta Ferreira Gullar falava que se dependesse dos poetas, nem o prego teria sido inventado, oxalá um canhão e a bomba atômica. Paulo Leminski costumava dizer que o poeta não é uma excrescência ornamental, um ser de luxo, mas uma necessidade orgânica da sociedade; ela precisa da ruptura que ele representa para poder respirar. O fato de ser margem não o faz um excluído, mas apenas um estrangeiro, já que ele próprio, por meio de sua linguagem, inventa nossas formas de comunidade, outras maneiras de (con)viver e de agir no mundo, construindo novas realidades, mágicos sistemas de pensamento, tendo o verso como instrumento.

Também temos nossos poetas; um deles é Yvonnich Furlani. Apesar de não ter nascido em nossas cidades - fato que o fez se considerar um estrangeiro, como cantou em verso - Furlani soube desde cedo que os laços afetivos com uma comunidade são mais fortes que qualquer outro detalhe: “Afundei raízes / bebi água do Iguaçu / não sei o que possa hoje / separar-me de ti, Porto União / (...) Este é o canto do estrangeiro / que tu acolheste um dia”. Fincar raízes como um pé de chorão à beira do Iguaçu é um bom motivo para o poeta dizer “Eu fico aqui”, aliás, título de um dos poemas mais bonitos já escritos sobre as cidades de Porto União da Vitória. O sentimento que transforma o eu-lírico na própria natureza descrita é forte o suficiente para não deixá-lo se abalar por intempéries da vida, como se a poesia fosse assim uma espécie de remédio para a alma: “E se a tempestade / de algum dia negro / me chicotear a copa / e eu sentir doridos / meus galhos / meus músculos / meu dorso / minha seiva / não faz mal / eu fico aqui”.
Yvonnich Furlani, à maneira de Vinícius de Moraes, encontrou no amor um dos temas mais pungentes de seus poemas. Mas não se trata de um amor piegas, presente em tantos candidatos a poetas e na própria idéia que os leitores geralmente fazem da poesia. Em Furlani, o amor é uma celebração da vida por meio da palavra: “Hoje, amo tudo o que me rodeia! / Amo, sobretudo, as flores, / porque dentro de mim é primavera”. E tal amor existe para ser cantado. Yvonnich, segundo depoimento de amigos, era um exímio declamador, fato que por si só já justificaria nosso respeito por ele, pois a poesia é acima de tudo uma voz que existe para voar do livro e atingir, audaz, um coração aberto. Como não lembrar de um outro poeta catarinense, Lindolf Bell, fomentador do movimento de catequese poética, que acreditava no potencial transformador da poesia por meio das declamações. Imagino como seria festivo o encontro desses dois poetas apaixonados pela palavra, pela música, pela vida. Ambos, curiosamente, nasceram na mesma região, Lindolf, em Timbó; Ivonnich, em Rodeio. É provável que as bonitas paisagens do Vale do Itajaí tenham contribuído para despertá-los para a literatura. Vale lembrar que Yvonnich iniciou seus estudos em Timbó, Santa Catarina.

O pintor Amadeu Bona, no prefácio do livro Eu sou o verso, publicação que reuniu textos do escritor, observou que Ivonnich foi um poeta romântico que, com a alma impregnada de otimismo, nos deixou a experiência, o prazer de quem dá, a gratidão de quem recebe, a sinceridade da amizade autêntica, o amor sentido em seus versos. Não seria fortuito lembrar que um dos méritos da poesia é justamente nos reconciliar com a experiência. E se falei que o amor, para Furlani, é uma celebração da vida é porque tal impressão é suscitada por quase todos os seus versos. No final da leitura de cada texto bem poderíamos erguer a taça e fazer um brinde. Tal comemoração traria o mesmo gosto de um “poeminha” de Antonio Carlos de Brito, o Cacaso: “Poesia / eu não te escrevo / eu te vivo / e viva nós!”. Ivonnich também viveu a poesia, seja nos encontros sociais, em que fez da palavra uma arte, seja nas serestas, em que fez da poesia uma música.

Poderão dizer que o poeta estava mais preocupado com a expressão do sentimento do que com a elaboração estética dos poemas, mas não podemos desconsiderar que as duas coisas não estão completamente dissociadas. A despeito disso devemos lembrar que o poeta, ao invés de transformar o texto em um mero ornamento, como fez a poesia parnasiana, estava mais interessado em comunicar, ou transformar em poesia, um determinado estado de espírito: “Mando-te um verso / saído, agora, há pouco / desta oficina sentimental... / não aquele verso parnasiano, / bem cuidado, / feito com esmero, sem igual!... / Não! Minha oficina é modesta / e faltam-lhe recursos; / apenas, é pretensiosa por demais: / quando fala de amor, este coração / anda perdido de emoção”.

Para finalizar poderíamos observar que ao pessimismo de Octavio Paz, Furlani, talvez sem sabê-lo, responde com uma flor. Provavelmente não acreditava na desintegração da poesia na sociedade contemporânea e, otimista, afirmou: “Parece que o insano dinamismo / a velocidade, este transformismo, / até o próprio verso silenciou!... / - Mentira! Tudo passa nessa vida! / Só não passa esta frase comovida / que o teu coração pronunciou!”. Contra a falta de lirismo que impera na sociedade contemporânea e o excesso de um pragmatismo que vem moldando cada vez mais as relações sociais, a fala de um poeta como Ivonnich consegue resgatar um estado de magia capaz de nos fazer lembrar que o amor e a delicadeza sempre serão necessários para a vida e para a poesia.

c.moreira
(texto publicado originalmente no jornal O Comércio, de União da Vitória, PR, 2008)

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