REENCONTRANDO O TEMPO DESPERDIÇADO

Eu mesmo guardo com carinho uma Madeleine, mas a minha não é comestível. É uma arma. Quando criança, ganhei um canivete de meu avô. Durante muito tempo pensei tê-lo perdido. Não o meu avô, mas o canivete. E quando perdi meu avô, foi graças a esse pequeno instrumento cortante (a memória opera por corte e repetição – uma ilha de edição, já disse!) que pude reencontrá-lo. Como você pode perceber, também perdi meu avô, mas isso foi depois do canivete, o que é uma pena porque se tivesse perdido apenas o canivete teria ainda a presença de meu avô como consolo. Reencontrei a infância por meio desse instrumento querido assim como Proust reencontrou o tempo degustando a madeleine. Somos algozes e vítimas do próprio passado.

O narrador de Quase memória observa que o seu tempo não era um tempo perdido, mas sim desperdiçado. Mas não podemos desconsiderar que tanto a obra de Proust quanto o relato de Cony são tecidos por um objeto muito sutil da memória: a Madeleine em um, o embrulho do pai em outro. Tudo começa quando o narrador recebe um embrulho sem remetente. Ele desconfia imediatamente que se trata de uma correspondência enviada pelo pai: “Era a letra de meu pai. A letra e o modo. Tudo no embrulho o revelava, inteiro, total. Só ele faria aquelas dobras no papel (...)”. A partir da dobra, Cony vai desdobrando o passado, tocado por um olhar do presente, tecendo outros agoras, outras dobras, outros nós: “E havia sobretudo o nó. Depois de tanto contemplá-lo à distância, com receio de tocá-lo, dele me aproximei não mais para lhe sentir o cheiro – ou os cheiros – mas para admirar o nó perfeito, justo, obra de arte de que só o pai era capaz”. A vida como obra.
É como se o narrador, à maneira de Proust, mordesse o embrulho-madeleine e pudesse então reescrever a sua própria história. Um naco do passado lhe chega sem compostura a tocar-lhe a memória, escavada agora por um exímio jornalista-escritor. Um detalhe curioso: “Estávamos em novembro de 1995. E o pai morrera, aos noventa e um anos, no dia 14 de janeiro de 1985”. Cony parece concordar apenas em parte com Waly, já que se dá por pago ao circunscrever a memória a seus limites. Diferente do pai, uma figura que fazia do imaginário uma carruagem de aventuras, e dos pequenos acontecimentos do cotidiano grandes feitos heróicos, o narrador confessa ter perdido essa capacidade de alterar o sentido, o eixo da memória: “O máximo que consigo é segregá-la”. Assim, obedece ao território traçado, chegando a conviver pacificamente com ela, a memória. Poderíamos arriscar dizer que o embrulho nada mais é que a própria MEMÓRIA. Para saber não é preciso chegar ao final do livro. Não quero entregar troféus ao leitor que ainda não se deparou com a narrativa de Cony, muitas vezes ainda obliterado dos estudos acadêmicos, por isso não revelo o final. Há alguns dias, estava pensando nos personagens que são maiores que a própria literatura, como Quixote e Macunaíma. Todos nós temos um em nossa família. No cinema, figura semelhante ao pai do narrador de Quase Memória pode ser conhecida na diviníssima interpretação de Dani De Vito, em Peixe Grande, um grande contador de estórias, bem como Tom Hanks, em Forrest Gump.
c.moreira
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