domingo, 4 de janeiro de 2009

REENCONTRANDO O TEMPO DESPERDIÇADO

Todos nós temos as nossas Madeleines. O cidadão Kane, por exemplo, viveu toda a sua vida agarrado à lembrança daquele trenó, Rosebud. O narrador de Em busca do tempo perdido degustou com paixão aquele biscoitinho misterioso. Só nós sabemos o que esses objetos particulares podem significar. Possuem uma aura cujo valor não se pode medir. A memória é acima de tudo um produto de nossa imaginação. Não quero fantasiar os fatos, só quero admitir que sou o próprio artista de minhas lembranças. Como dizia Waly Salomão, “a memória é uma ilha de edição”. Talvez Waly estivesse apenas acendendo uma vela para Henri Bergson, no entanto a frase é perfeitamente exata na sua mais complexa inexatidão.

Eu mesmo guardo com carinho uma Madeleine, mas a minha não é comestível. É uma arma. Quando criança, ganhei um canivete de meu avô. Durante muito tempo pensei tê-lo perdido. Não o meu avô, mas o canivete. E quando perdi meu avô, foi graças a esse pequeno instrumento cortante (a memória opera por corte e repetição – uma ilha de edição, já disse!) que pude reencontrá-lo. Como você pode perceber, também perdi meu avô, mas isso foi depois do canivete, o que é uma pena porque se tivesse perdido apenas o canivete teria ainda a presença de meu avô como consolo. Reencontrei a infância por meio desse instrumento querido assim como Proust reencontrou o tempo degustando a madeleine. Somos algozes e vítimas do próprio passado.

O caso de Quase memória, de Carlos Heitor Cony, não é muito diferente. Segundo as palavras de Ruy Castro, com Quase Memória Cony escreveu o seu Amarcord particular. Amarcord quer dizer, em um dos dialetos do interior da Itália, EU ME RECORDO. O romance do Cony bem poderia ter sido filmado por Fellini, claro. Numa das cenas mais típicas do filme, uma família italiana briga homericamente durante um almoço. Os gritos do pai poderiam fazer acordar a lembrança de qualquer membro de uma legítima família italiana. Quem faz parte de uma entende o que estou falando. Mas não é apenas pelo lembrar que Quase Memória, do Cony, e Amarcord, do Fellini, se aproximam. Em ambos, há certa doçura nesse gesto de ricordare – como se dissessem: “Que venha o passado, fonte da mais misteriosa matéria-memória, mas que seja, sobretudo, agora”. Talvez fosse melhor dizer que nas duas obras o que ocorre não é um reencontro com o tempo perdido, mas sim um encontro. As duas coisas têm um sabor bastante diferente, mesmo que o reencontro não seja mera repetição.

O narrador de Quase memória observa que o seu tempo não era um tempo perdido, mas sim desperdiçado. Mas não podemos desconsiderar que tanto a obra de Proust quanto o relato de Cony são tecidos por um objeto muito sutil da memória: a Madeleine em um, o embrulho do pai em outro. Tudo começa quando o narrador recebe um embrulho sem remetente. Ele desconfia imediatamente que se trata de uma correspondência enviada pelo pai: “Era a letra de meu pai. A letra e o modo. Tudo no embrulho o revelava, inteiro, total. Só ele faria aquelas dobras no papel (...)”. A partir da dobra, Cony vai desdobrando o passado, tocado por um olhar do presente, tecendo outros agoras, outras dobras, outros nós: “E havia sobretudo o nó. Depois de tanto contemplá-lo à distância, com receio de tocá-lo, dele me aproximei não mais para lhe sentir o cheiro – ou os cheiros – mas para admirar o nó perfeito, justo, obra de arte de que só o pai era capaz”. A vida como obra.

É como se o narrador, à maneira de Proust, mordesse o embrulho-madeleine e pudesse então reescrever a sua própria história. Um naco do passado lhe chega sem compostura a tocar-lhe a memória, escavada agora por um exímio jornalista-escritor. Um detalhe curioso: “Estávamos em novembro de 1995. E o pai morrera, aos noventa e um anos, no dia 14 de janeiro de 1985”. Cony parece concordar apenas em parte com Waly, já que se dá por pago ao circunscrever a memória a seus limites. Diferente do pai, uma figura que fazia do imaginário uma carruagem de aventuras, e dos pequenos acontecimentos do cotidiano grandes feitos heróicos, o narrador confessa ter perdido essa capacidade de alterar o sentido, o eixo da memória: “O máximo que consigo é segregá-la”. Assim, obedece ao território traçado, chegando a conviver pacificamente com ela, a memória. Poderíamos arriscar dizer que o embrulho nada mais é que a própria MEMÓRIA. Para saber não é preciso chegar ao final do livro. Não quero entregar troféus ao leitor que ainda não se deparou com a narrativa de Cony, muitas vezes ainda obliterado dos estudos acadêmicos, por isso não revelo o final. Há alguns dias, estava pensando nos personagens que são maiores que a própria literatura, como Quixote e Macunaíma. Todos nós temos um em nossa família. No cinema, figura semelhante ao pai do narrador de Quase Memória pode ser conhecida na diviníssima interpretação de Dani De Vito, em Peixe Grande, um grande contador de estórias, bem como Tom Hanks, em Forrest Gump.

c.moreira

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