quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

NEM FICÇÃO, NEM DOCUMENTÁRIO
OU UM POUCO DISSO, UM POUCO DAQUILO, ou ainda mais um pouco:
Contra a guerra das nomenclaturas

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Um debate muito interessante sobre o cinema-documentário está “rolando” há algum tempo. Essa discussão não está acontecendo apenas no ambiente acadêmico, no trabalho dedicado de intelectuais das mais diversas patentes, brasões e estirpes (filosofia, cinema, antropologia, lingüística, literatura, história, e outros blás: Folha de São Paulo, Estadão, USP, UNICAMP), mas principalmente na própria prática de um cinema que já não pode ser caracterizado como documentário, pelo menos não como tradicionalmente o entendíamos. É claro que o rótulo é sempre menos importante que a sardinha que se encontra dentro da lata (apesar de que uma embalagem às vezes é melhor que o produto nela guardado). Mas não me parece significativo gastar um longo tempo procurando um termo específico que possa qualificar um determinado gênero como documentário e ficção. Isso porque, para mim e para milhares de outras pessoas também, o documentário não está tão distante da ficção como pode parecer. Inventar nomes, tal tarefa nos levaria a uma guerra babélica de nomenclaturas. Os mortos e feridos seriam incontáveis (o cinema dever ser sempre contra a guerra). Já não podemos desconsiderar que o documentário não deve ser entendido como o registro “verité” de uma determinada realidade, uma “cópia do real” – a velha história de Platão nos assustando novamente. O documentário como verdade não me interessa. Leminski dizia mais ou menos assim: “Fiquem com essa realidade baixo astral em que tudo entra pelo cano. Eu fico com o sonho, eu fico com o cinema americano”.

Sabemos que Lula, em Entreatos, de João Moreira Salles, encena o próprio personagem durante grande parte do filme. Porém, nem tudo é também ficção. Em várias passagens não é o personagem que vemos no filme. O fato serviria para nos mostrar que o documentário é sempre menos do que pensamos e mais do que imaginamos. Encerra uma verdade que não é mais que a sua própria realidade, a cena de um documentário se olhando no espelho, penteando os cabelos e passando maquiagem. O que estou querendo dizer é que grande parte dos bons documentários brasileiros atuais (Entreatos, Santiago, de João Moreira Salles; Jogo de Cena, O fim e o princípio, Os peões, de Eduardo Coutinho; Estamira, de Marcos Prado) vêm se situando no limiar entre a ficção e o documentário, e parecem fazer isso muito bem. Por isso, e não acho que seja ruim, essa “coisa” intermediária, que poderíamos chamar de cine-documentário, vem chamando a minha atenção muito mais do que qualquer outro tipo de cinema produzido atualmente. Imagino que daqui alguns anos as pessoas olhem para nossa década como um momento especial do documentário no cinema brasileiro.

Já escrevi há algum tempo sobre Santiago, mas não escrevi nada sobre Estamira, cujo impacto me foi estrondoso. Ainda não me senti preparado para escrever nada de Estamira. Talvez só consiga fazê-lo depois de muito meditar sobre personagens como Bispo do Rosário e Gentileza. Tanto Estamira quanto Santiago fazer parte daquilo que é maior que o próprio cinema. Desconfio, mas talvez esteja errado, que qualquer cineasta conseguiria me chamar a atenção se documentasse essas duas personagens. O mordomo Santiago, por exemplo, poderia figurar como um mago portenho em algum conto perdido de Jorge Luis Borges – mas, no cinema, com candura e profissionalismo somente João conseguiria filmá-lo . É que para ele Santiago era mais que um personagem, mais que um filme, era o próprio emblema de um fracasso. Mas estou dizendo tudo isso apenas para chegar a um ponto: Santiago e Estamira, para mim, são mais literatura que cinema. Não sei explicar. Talvez os argumentos iniciais possam esclarecer algo. São filmes que estão em um limiar. Já não podem ser entendidos a partir das considerações clássicas de um documentário, ou das colocações há muito consignadas sobre a narrativa cinematográfica. Esse é um traço interessante que vem caracterizando a produção contemporânea desse tipo de cinema, a falta de um lugar, a desterriotorialização, diria-nos Deleuze.

Por mais à vontade que o cineasta deixe o seu entrevistado, é sempre um artifício que pula da tela e nos faz cócegas na ponta da orelha. Lembro de uma passagem de O fim e o princípio, do Eduardo Coutinho. Ele vai até a casa de um dos moradores daquele pequena localidade do Nordeste – como ele chegou até a cidade e o que o levou até lá só o acaso o sabe – e encontra uma espécie de Dom Casmurro do sertão. O homem que ao mesmo tempo atrai o olhar de Coutinho pela sua extrema sisudez é aquele que esbanja um grande senso de humor e um mistério que nos faz pensar: “Talvez esteja só brincando com o cineasta! Talvez seja assim mesmo, um louco!” Em ambos os casos, um ator. Um ator e personagem ao mesmo tempo. Um ator e personagem que, provavelmente, nunca foi ao cinema. Quem no cinema de ficção consegue ser ator e personagem ao mesmo tempo? Já paraste pra pensar nisso?

c. moreira

Um comentário:

L. M. de Souza disse...

vc precisa ver close-up do kiarostami.