segunda-feira, 21 de setembro de 2009

A cidade, a ilha, o homem

Até que enfim foram reunidos em livro os contos de Milton Hatoum. A antologia, que leva o nome de um dos textos do livro A cidade ilhada, traz o sabor dos romances já publicados por esse excelente escritor manauara. Alguns contos já eram conhecidos desde a década de 90, como “A ninfa do teatro Amazonas” e “A natureza ri da cultura”, publicados inicialmente no Caderno Especial, do jornal O Estado de São Paulo, em 1996. Outros são inéditos, como “Dançarinos na última noite” e “O adeus do comandante”. Outros tinham sido publicados apenas na Europa, como “Dois poetas da província”. Gostei especialmente de “Varandas da Eva”, a rememoração da primeira aventura sexual de um jovem e de seus amigos. Talvez seja um episódio das memórias do próprio Hatoum. No entanto, não podemos esquecer, o escritor tem consciência da literatura como um jogo com o tempo e com os fatos. Quando Milton Hatoum lançou Dois Irmãos, romance que considero um dos mais importantes da literatura produzida no Brasil nos últimos anos, foi entrevistado pela professora Susana Scramim, na antiga Cult. Perguntado sobre a questão da memória como elemento fundante da sua narrativa,o escritor respondeu que as memórias se desentendem, lembrando um personagem de Guimarães Rosa: “Quando um narrador ou personagem se lembra de tudo, então o passado vira um inferno, ele vive o tempo todo em vigília, vive o pesadelo da insônia, como aquele Funes, o memorioso, do conto de Borges. Talvez para um ficcionista a memória seja sinônimo de imaginação”.

Um detalhe que chama a atenção na obra de Hatoum, e que pode ser percebido com força em A cidade ilhada é a questão do território, que a professora Susana Scramim já tinha apontado em Dois Irmãos e Relato de um certo Oriente – a geografia de uma narrativa que “revela um território constituído por uma malha cultural variada”. No livro de contos esse aspecto pode ser percebido na constante troca de experiências entre personagens de culturas diferentes: o poeta Albano que viaja para a França para tentar a carreira literária, enquanto Zéfiro, um poeta mais sábio e mais velho, nunca saiu do país, no conto “Dois poetas da província”. A jovem estrangeira que seduz o narrador, no conto “Uma estrangeira em nossa rua”. O japonês que se apaixona por Manaus, em “Um oriental na vastidão”. O jovem subversivo que é exilado com a mulher na França, em “Bárbara no inverno”. Entre outros exemplos igualmente importantes. Os personagens de Hatoum, em “A cidade ilhada” estão sempre indo e vindo, formando a sua identidade a partir do contato com o outro. É o caso de “Dois tempos”, em que o narrador, reencontra a infância, o tio e a professora de piano, depois de voltar para a sua terra natal. Mais do que formar a identidade a partir do outro, os textos de Hatoum sugerem a transformação a partir do contato, da experiência com o outro. Nesse sentido, o título do livro é sintomático. Diante dos seus contos estamos diante de cidades e pessoas. Em ambos os casos, ilhas. Não à toa, Luiz Costa Lima, em um texto sobre Dois Irmãos, intitulado “A ilha flutuante” (Folha de São Paulo, 12 de Agosto de 2000), tenha percebido o mito criado e fecundado por uma obra que pressupõe uma matéria social bem diferente da ficção do Primeiro Mundo: “A casa que se destrói conta de uma sociedade absolutamente sem amarras, em que repontam poucas ilhas, que se fazem e desfazem”. Hatoum fala da ilha próxima ao igarapé, mas essa ilha é pretexto para falar de outra, aquela que transforma a vida do cientista Lavedan, que perde a esposa para um dançarino, no conto que dá nome ao livro. Nesse caso, a natureza ri da cultura (título de um outro conto do livro), pois a despeito de “dissertar sobre pássaros, símios e mariposas, ou orquídeas raras e a arquitetura móvel dos cupins”, o cientista aprende que o Bosque da Ciência nem resume toda a felicidade: “Dois dias depois, Lavedan voltou sozinho para a Europa”. Numa carta, ele escreveu que deixou Manaus e a esposa por causa de um dançarino: “Estavam numa festa do Shangri-Lá com a turma de notívagos intrépidos, e dançavam mambo e bolero numa atmosfera impregnada de álcool, suor e lança-perfume. O salão azulado do Shangri-Lá – uma maravilha, sublinhou Lavedan na carta – os envolvia, e eles trocavam de parceiro a cada música, bebiam no gargalo o melhor uísque e se enrolavam de tanto rir e falar alto, embalados pelo brilho extático dos metais. No clímax dessa euforia, um homem altivo e sério demais atravessou o salão com passos meticulosos, aproximou-se da mesa e, com um gesto reverente, pediu para dançar com Harriet”. O resto não preciso dizer.
Leyla Perrone Moisés, comentando a obra de Milton Hatoum, observou que a Manaus do escritor é uma ruína pululante de vitalidade: “O cheiro da floresta ali se mistura com o cheiro de lodo. A Cidade Flutuante (...) poderia ser uma metáfora dessa cidade suspensa na memória do romancista, cidade cujas misérias ele desejaria esquecer, e de cujos encantos ele se mantém cativo”. Aliás, a questão da ruína é recerrente em sua obra. Bastaria lembrar que a revista Babel, em 2000, publicou o seu poema “Amazonas: palavras e imagens de um rio entre ruínas”, em que Hatoum canta um rio que passeia por uma natureza caída: “Tua história é a remoção / a tua face em planície / já desabriga sonhos, e o úmido / se esvaiu no árido, se infiltrou / nas ranhuras de tantas máscaras”. No entanto, mesmo apontando para ruínas da natureza, do homem, da família, da instituição, resta um doce guardado na boca, uma beleza, uma flor (talvez de maracujá), que sobrevivem na paisagem de uma cidade e de uma literatura que mantêm cativo o escritor.


c. moreira

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